DESAPARECIDA HÁ CATORZE DIAS
Acordei no sofá da minha irmã com uma violenta ressaca e o impulso irresistível de matar a minha mulher. Isso era bastante comum nos dias a seguir à Entrevista do Diário com a polícia. Imaginava encontrar Amy escondida num spa qualquer da Costa Leste, a bebericar sumo de ananás num divã, com as suas preocupações a voar para longe, por cima de um perfeito céu azul, e eu, sujo e malcheiroso devido ao corta-mato urgente, de pé diante dela, a tapar-lhe o sol até ela levantar os olhos, e depois as minhas mãos à volta da sua garganta perfeita, com os seus tendões e concavidades e o pulso a latejar, primeiro com urgência e a seguir lentamente, enquanto nos olhamos olhos nos olhos e compreendemos finalmente alguma coisa.
Eu ia ser preso. Se não fosse hoje, amanhã; se não fosse amanhã, no dia seguinte. Eu tinha interpretado o facto de a polícia me ter deixado sair da esquadra como um bom sinal, mas Tanner tinha-me calado:
— Sem corpo, é incrivelmente difícil conseguir uma condenação. Eles estão apenas a pôr os pontos nos is e os traços nos tês. Passe estes dias a fazer aquilo que precisar de fazer, porque assim que a detenção acontecer, vamos estar ocupados.
Conseguia ouvir o ruído surdo dos operadores de câmara do lado de fora da janela — homens a cumprimentarem-se uns aos outros e a darem os bons-dias, como se estivessem a picar o ponto numa fábrica. As máquinas faziam clique como gafanhotos irrequietos, a captar imagens da fachada da casa de Go. Alguém tinha deixado escapar a notícia da descoberta do meu «santuário masculino» cheio de bens na propriedade da minha irmã e da minha detenção iminente. Nenhum de nós se atrevera sequer a afastar uma cortina.
Go entrou na sala vestindo boxers de flanela e a sua t-shirt Buthole Surfers dos tempos de liceu, com o computador portátil debaixo do braço.
— Toda a gente te odeia outra vez — disse ela.
— Vira-casacas!
— A noite passada, alguém revelou a informação sobre o barracão, sobre a carteira de Amy e o diário. Agora, é só: Nick é um mentiroso, Nick é um assassino, Nick é um assassino mentiroso. Sharon Schieber acabou de difundir um comunicado a dizer que ficou muito chocada e desapontada com o rumo que o caso está a tomar. Oh, e toda a gente sabe do material pornográfico, Mata as Cabras.
— Magoa a Cabra.
— Oh, desculpa lá — disse ela. — Magoa a Cabra. Portanto, Nick é um assassino mentiroso-barra-sádico sexual. Ellen Abbott vai ficar enfurecida. Ela é completamente antipornografia.
— É claro que é — disse eu. — Tenho a certeza de que Amy sabe muito bem disso.
— Nick! — disse ela na sua voz de acorda! — Isto é mau.
— Go, não importa o que as outras pessoas pensam, precisamos de nos lembrar disso. Aquilo que importa neste momento é o que Amy está a pensar. Se ela estará a amolecer em relação a mim.
— Nick, tu achas mesmo que ela pode passar assim tão depressa de te odiar dessa forma a apaixonar-se outra vez por ti?
Era o quinto aniversário da nossa conversa sobre este tema.
— Sim, Go, acho. Amy nunca foi uma pessoa com especial sensibilidade para detetar mentiras. Se dissesses que ela estava linda, ela sabia que isso era um facto. Se dissesses que ela era brilhante, não era lisonja, era merecido. Por isso, sim, creio que uma boa parte dela acredita realmente que, se eu conseguir ver o erro do meu comportamento, é claro que me voltarei a apaixonar por ela. Pois por que diabo não havia de voltar?
— E se por acaso ela tiver desenvolvido um detetor de mentiras?
— Tu conheces Amy; ela precisa de ganhar. Está menos zangada com o facto de a ter traído do que com ter escolhido alguém em seu detrimento. Ela vai-me querer de volta, só para provar que ganhou. Não concordas? O simples facto de me ver a implorar-lhe que volte para a poder adorar convenientemente... Vai ter dificuldade em resistir, não achas?
— Acho que é uma ideia decente — disse ela da forma como se deseja boa sorte a alguém na lotaria.
— Olha, se tens alguma coisa melhor, faz favor...
Agora, estávamos sempre a embirrar um com o outro. Nunca o tínhamos feito antes. Depois da polícia ter descoberto o barracão da lenha, interrogaram duramente Go, tal como Tanner previra: Sabia daquilo? Tinha ajudado?
Esperava que ela voltasse para casa nessa noite a transbordar de palavrões e fúria, mas a única coisa que vi foi um sorriso envergonhado, quando passou por mim para se esgueirar para o seu quarto na casa sobre a qual fizera uma segunda hipoteca para cobrir o pagamento inicial de Tanner.
Tinha posto a minha irmã em risco financeiro e jurídico devido às minhas péssimas decisões. Toda a situação fazia com que Go estivesse ressentida e eu envergonhado, uma combinação letal para duas pessoas encurraladas num pequeno espaço.
Experimentei um assunto diferente:
— Tenho andado a pensar em telefonar a Andie, agora que...
— Sim, isso seria digno de um génio, Nick. Assim, ela pode voltar ao Ellen Abbott...
— Ela não foi ao Ellen Abbott. Deu uma conferência de imprensa realizada pelo Ellen Abbott. Ela não é uma pessoa perversa.
— Deu a conferência de imprensa porque estava chateada contigo. Chego a desejar que tivesses continuado simplesmente a comê-la.
— Que bonito!
— E o que é que tu lhe ias dizer?
— Estou arrependido.
— Não há dúvida de que estás mais do que arrependido — murmurou ela.
— É que... detesto a forma como acabou.
— Da última vez que estiveste com Andie, ela mordeu-te — disse Go numa voz manifestamente paciente. — Não creio que vocês os dois tenham mais alguma coisa a dizer. Tu és o principal suspeito numa investigação de homicídio. Perdeste o direito a romper a relação de forma tranquila. Por amor de Deus, Nick!
Estávamos a ficar cada vez mais fartos um do outro, algo que eu nunca pensei que pudesse acontecer. Era mais do que puro stresse, mais do que o perigo que eu largara à porta de Go. Aqueles dez segundos há uma semana, quando eu abrira a porta do barracão da lenha e ficara à espera que Go me lesse o pensamento, como sempre, e o que ela lera foi que eu tinha assassinado a minha mulher... Eu não conseguia ultrapassar aquilo e ela também não. Apanhava-a a olhar para mim, de vez em quando, com a mesma frieza implacável com que olhava para o nosso pai: mais um homem merdoso a ocupar espaço. Tenho a certeza de que, às vezes, olhava para ela através dos olhos desprezíveis do nosso pai: mais uma mulher bonita ressentida comigo.
Suspirei, levantei-me, apertei-lhe a mão e ela fez o mesmo.
— Acho que é melhor ir para casa — disse eu. Senti uma onda de náusea. — Já não consigo suportar isto. Não suporto estar à espera de ser preso.
Antes que ela me pudesse impedir, agarrei nas chaves, abri a porta, e as máquinas fotográficas começaram a disparar e os gritos explodiram de uma multidão ainda maior do que receara: Eh, Nick, matou a sua mulher? Eh, Margo, ajudou o seu irmão a ocultar as provas?
— Cambada de idiotas! — exclamou Go. Ficou ao meu lado como forma de solidariedade, com a sua t-shirt Buthole Surfers e de boxers. Alguns manifestantes empunhavam letreiros. Uma mulher de cabelo louro oleoso e óculos de sol agitou um cartaz: Nick, onde está AMY?
Os gritos tornaram-se mais altos, frenéticos, visando a minha irmã: Margo, o seu irmão matou a mulher? Nick matou a mulher e o bebé? Margo, também é suspeita? Nick matou a mulher? Nick matou o filho?
Aguentei-me, tentando manter a posição, recusando-me a recuar para dentro de casa. De repente, Go estava agachada atrás de mim a abrir a torneira junto aos degraus. Ligou a mangueira no máximo — um jato forte e constante — e virou-a contra todos aqueles operadores de câmara, manifestantes e jornalistas bonitos nas suas fatiotas televisivas, pulverizou-os como animais.
Estava a dar-me fogo de cobertura. Desatei a correr até ao carro e arranquei, deixando-os a pingar no relvado, por entre as gargalhadas estridentes de Go.
Levei dez minutos desde o caminho de entrada da minha casa até à garagem, avançando de forma desesperadamente lenta, rompendo o mar zangado de seres humanos — havia pelo menos vinte manifestantes em frente da minha casa, para além dos operadores de câmara. A minha vizinha Jan Teverer era um deles. Os nossos olhares cruzaram-se e ela virou o seu cartaz para mim: ONDE ESTÁ AMY, NICK?
Por fim, consegui entrar, e a porta da garagem fechou-se com um zumbido. Fiquei sentado no calor do espaço em betão, a respirar.
Agora, todos os sítios me pareciam prisões — portas que se abriam e fechavam, abriam e fechavam, e eu nunca me sentia em segurança.
Passei o resto do dia a imaginar como iria matar Amy. Era a única coisa em que conseguia pensar: descobrir uma forma de acabar com ela. Eu a esmagar o cérebro atarefadíssimo de Amy. Tinha de dar a Amy o que ela merecia: podia ter andado a dormir nos últimos anos, mas agora estava completamente desperto. Estava novamente elétrico, como estivera nos primeiros tempos do nosso casamento.
Queria fazer alguma coisa, fazer acontecer alguma coisa, mas não havia nada que pudesse ser feito. Ao final da noite, os operadores de câmara tinham-se ido embora, mas eu não me podia arriscar a sair de casa. Apetecia-me caminhar. Conformei-me em andar de um lado para o outro. Estava perigosamente nervoso.
Andie tinha-me tramado, Marybeth tinha-se virado contra mim, Go tinha perdido a fé em mim. Boney tinha-me encurralado. Amy tinha-me destruído. Servi-me de uma bebida. Dei um trago, apertei os dedos à volta das curvas do copo, depois arremessei-o à parede, vi o vidro explodir em fogo de artifício, ouvi o horrível estilhaçar, cheirei a nuvem de bourbon. Raiva nos cinco sentidos. Aquelas malditas cabras!
Toda a minha vida tentara ser um tipo decente, um homem que amava e respeitava as mulheres, um tipo sem complexos. E aqui estava eu, cheio de pensamentos sórdidos sobre a minha gémea, sobre a minha sogra, sobre a minha amante. A imaginar-me a esmagar o crânio da minha mulher.
Bateram à porta, um bang-bang-bang furioso que me arrancou ao pesadelo do meu cérebro.
Abri a porta de par em par, saudando fúria com fúria.
Era o meu pai, especado à minha porta como um horrível espetro convocado pelo meu carácter odioso. Estava com uma respiração pesada e a suar. Tinha uma manga da camisa rasgada e o cabelo desgrenhado, mas os seus olhos tinham a vivacidade sinistra habitual que o fazia parecer perigosamente são.
— Ela está aqui? — perguntou ele bruscamente.
— Quem, pai, de quem é que está à procura?
— Tu sabes de quem. — Empurrou-me para passar, começou a andar pela sala, deixando um rasto de lama, com os punhos cerrados, a gravidade a impeli-lo demasiado para a frente, obrigando-o a continuar a andar ou a cair no chão, murmurando cabracabracabra. Cheirava a menta não fabricada, e vi que ele tinha uma nódoa verde nas calças, como se tivesse passado pela horta de alguém.
Aquela cabrazinha aquela cabrazinha, continuava ele a murmurar. Através da sala de jantar, na cozinha, a ligar as luzes. Uma barata de água subiu rapidamente pela parede.
Segui-o, a tentar fazer com que ele se acalmasse. Pai, pai, porque é que não se senta, pai? Quer um copo de água, pai?... Desceu as escadas lá para baixo, com bocados de lama a cair-lhe dos sapatos. As minhas mãos cerraram-se. É claro que aquele filho da mãe tinha de aparecer e piorar ainda mais as coisas!
— Pai! Caramba, pai! Não está cá ninguém, a não ser eu. Só eu. — Ele abriu a porta do quarto dos hóspedes e depois subiu novamente para a sala, ignorando-me... — Pai!
Não queria tocar-lhe. Tinha medo de lhe bater. Tinha medo de chorar.
Barrei-lhe a passagem, quando ele tentou ir lá acima ao quarto. Pus uma mão na parede e outra no corrimão — uma barricada humana.
— Pai! Olhe para mim!
As palavras saíram-lhe num jato furioso:
— Diz-lhe, diz a essa cabrazinha feia que não acabou. Ela não é melhor do que eu, diz-lhe isso. Não é demasiado boa para mim. Ela não tem voto na matéria. Essa cabra feia tem de aprender...
Juro que vi uma brancura perfeita por um segundo, um momento de claridade chocante e completa. Por uma vez, deixei de tentar bloquear a voz do meu pai e deixei-a ecoar nos meus ouvidos. Eu não era aquele homem: eu não odiava nem receava todas as mulheres. Eu era um misógino de uma só mulher. Se eu apenas desprezasse Amy, se focasse toda a minha fúria, raiva e veneno na única mulher que os merecia, isso não fazia de mim o meu pai. Isso fazia de mim uma pessoa mentalmente sã.
Cabrazinha cabrazinha cabrazinha.
Nunca odiei tanto o meu pai por me ter feito gostar verdadeiramente daquelas palavras.
Maldita cabra maldita cabra.
Agarrei-o pelo braço, com força, e levei-o até ao carro, batendo com a porta. Ele repetiu aquela fórmula encantatória durante todo o caminho até Comfort Hill. Estacionei na entrada reservada às ambulâncias, fui até ao lado dele, abri a porta, puxei-o pelo braço e levei-o lá para dentro.
Depois, virei costas e fui para casa.
Maldita cabra maldita cabra.
Mas não havia nada que eu pudesse fazer, exceto implorar. A cabra da minha mulher tinha-me deixado atado de pés e mãos, sem nada que pudesse fazer, a não ser implorar-lhe que voltasse para casa. Na imprensa, online, na televisão, onde quer que fosse, a única esperança que me restava era que a minha mulher me visse a representar o papel de bom marido, a dizer as palavras que ela queria que eu dissesse: Capitulação, completa. Tu estás certa e eu estou errado, sempre. Volta para casa (sua maldita cabra!). Volta para casa, para eu te poder matar.