NICK DUNNE

A NOITE DO REGRESSO

 

Fui à esquadra buscar a minha mulher e fui recebido pela imprensa como se fosse uma estrela de rock, um presidente triunfante, o primeiro homem a pisar a Lua, tudo junto num só. Tive de resistir para não levantar as mãos entrelaçadas sobre a cabeça, na saudação de vitória universal. Estou a perceber, pensei, agora estamos a fingir que somos todos amigos.

Entrei numa cena que parecia uma festa que deu para o torto — algumas garrafas de champanhe pousadas em cima de uma secretária, rodeadas por copos de papel minúsculos. Palmadinhas nas costas e vivas para todos os polícias, e depois mais vivas à minha pessoa, como se aquela gente não me andasse a perseguir um dia antes. Mas eu tinha de alinhar. Oferecer as costas para me darem palmadinhas. Oh, sim, agora somos todos amigos!

A única coisa que interessa é que Amy está salva. Tinha andado a praticar aquela deixa vezes sem conta. Eu tinha de parecer o marido aliviado e carinhoso até saber o rumo que as coisas iam tomar. Até ter a certeza de que a polícia tinha rompido a sua teia de mentiras pegajosa. Até ela ser presa — chegaria a esse ponto, até ela ser presa, e depois conseguia sentir o meu cérebro a expandir-se e a esvaziar-se em simultâneo — o meu próprio zoom de Hitchcock ao cérebro — e pensava: A minha mulher assassinou um homem.

— Esfaqueou-o — disse o jovem polícia designado como agente de ligação com a família. (Esperava nunca mais voltar a ter uma ligação destas com ninguém, por nenhum motivo.) Era o mesmo miúdo que tinha tagarelado com Go sobre o seu cavalo, sobre a rutura do lábio glenoidal e a alergia aos amendoins. — Cortou-lhe a jugular. Com um corte desses, ele esvai-se em sangue em sessenta segundos.

Sessenta segundos é muito tempo para se saber que se está a morrer. Conseguia imaginar Desi com as mãos à volta do pescoço, a sensação do próprio sangue a jorrar-lhe por entre os dedos a cada pulsação, e Desi a ficar mais assustado e a pulsação a ficar mais rápida... e depois a abrandar, e Desi ciente de que o abrandamento era pior. E durante todo esse tempo, Amy fora do seu alcance, a analisá-lo com o olhar culpado e enojado de uma estudante liceal de biologia confrontada com o feto de um porco a pingar. Com o pequeno escalpelo ainda na mão.

— Cortou-o com uma velha faca de talhante — estava o miúdo a dizer. — O tipo costumava sentar-se na cama ao lado dela, cortava-lhe a carne e alimentava-a. — Parecia mais enojado com isto do que com o esfaqueamento. — Um dia, a faca escorrega do prato e ele nem repara...

— Como é que ela usou a faca, se estava sempre amarrada? — perguntei.

O miúdo olhou para mim como se eu tivesse acabado de contar uma piada sobre a mãe dele.

— Não sei, senhor Dunne, tenho a certeza de que estão a recolher os pormenores neste momento. O que interessa é que a sua mulher está salva.

Viva! O miúdo roubou-me a deixa.

Avistei Rand e Marybeth através da entrada da sala onde tínhamos dado a nossa primeira conferência de imprensa, há seis semanas. Estavam encostados um ao outro, como sempre, com Rand a beijar o alto da cabeça de Marybeth e esta a retribuir-lhe o aconchego, e eu tive uma sensação de ultraje tão penetrante que quase lhes atirei com um agrafador. Vocês os dois, seus idiotas veneráveis e extremosos, criaram aquela coisa que está ao fundo do corredor e soltaram-na no mundo. Vede, que alegria, que monstro perfeito! E são castigados? Não, nem uma só pessoa veio questionar o seu carácter; a única coisa que sentiram foi uma onda de amor e apoio, e iam recuperar Amy e toda a gente a amaria ainda mais.

A minha mulher era uma sociopata insaciável, antes. No que se tornaria agora?

Avança com cuidado, Nick, avança com muito cuidado.

Rand viu-me e fez um gesto para me juntar a eles. Apertou-me a mão para alguns repórteres exclusivos a quem tinha sido concedida uma audiência. Marybeth não se mexeu: eu continuava a ser o homem que tinha enganado a filha. Fez um aceno brusco e afastou-se.

Rand inclinou-se na minha direção, de tal forma que conseguia cheirar a sua pastilha de hortelã-pimenta.

— Digo-te, Nick, estamos tão aliviados por ter Amy de volta. Também te devemos um pedido de desculpa. Dos grandes. Vamos deixar Amy decidir o que é que sente em relação ao vosso casamento, mas quero, pelo menos, pedir desculpa pelo rumo que as coisas tomaram. Tens de compreender...

— E compreendo — repliquei. — Compreendo tudo.

Antes que Rand pudesse pedir desculpa ou dizer mais alguma coisa, Tanner e Betsy chegaram juntos, parecendo uma capa da Vogue — calças impecáveis e camisas em tons de pedras preciosas, relógios e anéis de ouro reluzentes — e Tanner inclinou-se em direção ao meu ouvido e sussurrou: Deixe-me ver em que ponto estão as coisas, e depois chegou Go a correr, de olhos arregalados e cheia de perguntas: O que é que isto significa? O que é que aconteceu a Desi? Ela apareceu simplesmente à vossa porta? O que é que isto significa? O que é que vai acontecer agora?

A sensação que dava era a de um ajuntamento bizarro: não era bem uma reunião, não era bem uma sala de espera em hospital... era um ambiente de celebração, mas carregado de ansiedade, como um jogo de salão onde ninguém sabia as regras todas. Entretanto, os dois repórteres que os Elliotts deixaram entrar no santuário privado estavam constantemente a fazer-me perguntas: Que tal a sensação de ter Amy de volta? Até que ponto se sente maravilhosamente bem, neste momento? Até que ponto se sente aliviado, Nick, com o regresso de Amy?

Sinto-me extremamente aliviado e muito feliz, dizia eu, trabalhando a minha própria declaração de RP insípida, quando as portas se abriram e Jacqueline Collings entrou, com os lábios transformados numa cicatriz vermelha retesada e o pó de arroz sulcado pelas lágrimas.

— Onde é que ela está? — perguntou-me. — Onde está essa cabrazinha mentirosa? Ela matou o meu filho. O meu filho. — Começou a chorar, enquanto o repórter tirava umas quantas fotografias.

Como é que se sente com o facto de o seu filho ter sido acusado de rapto e violação?, perguntou um repórter em voz fria.

— Como é que eu me sinto? — perguntou ela. — Está mesmo a falar a sério? As pessoas respondem a perguntas destas? Essa rapariga má e sem alma manipulou o meu filho a vida inteira — escreva isto — manipulou-o, mentiu-lhe e, por fim, assassinou-o, e agora, mesmo depois de ele ter morrido, continua a usá-lo...

— Senhora Collings, nós somos os pais de Amy — começou Marybeth. Tentou tocar no ombro de Jacqueline, mas esta sacudiu-a. — Sinto muito pela sua dor.

— Mas não pela minha perda. — Jacqueline era uma boa cabeça mais alta do que Marybeth; fuzilou-a de cima com o olhar. — Mas não pela minha perda — reafirmou.

— Sinto muito por... tudo — disse Marybeth, e depois Rand pôs-se ao lado dela, uma cabeça mais alto do que Jacqueline.

— O que é que vão fazer em relação à vossa filha? — perguntou Jacqueline. Virou-se para o nosso jovem agente de ligação, que tentou aguentar firme. — O que é que está a ser feito em relação a Amy? Porque ela está a mentir quando diz que o meu filho a raptou. Ela está a mentir. Ela matou-o, ela assassinou-o enquanto dormia, e ninguém parece levar isto a sério.

— Tudo está a ser levado muito, mas muito a sério, minha senhora — redarguiu o jovem.

— Pode fazer uma declaração, senhora Collings? — perguntou o repórter.

— Acabei de vos dar a minha declaração. Amy Elliott Dunne assassinou o meu filho. Não foi um ato de legítima defesa. Ela assassinou-o.

— Tem provas disso?

É claro que não tinha.

A história do repórter iria relatar o estado de exaustão do marido (o seu rosto abatido denunciava demasiadas noites confiscadas pelo medo) e o alívio dos Elliotts (os pais agarram-se um ao outro, enquanto esperam que a sua única filha lhes seja oficialmente devolvida). Iria debater a incompetência da polícia (era um caso difícil, cheio de becos sem saída e descaminhos, com o departamento da polícia centrado teimosamente no homem errado). O artigo iria falar de Jacqueline Collings numa única linha: Depois de uma discussão embaraçosa com os pais Elliott, a amargurada Jacqueline Collings foi levada para fora da sala, afirmando que o seu filho estava inocente.

Jacqueline foi realmente levada para fora da sala e conduzida a uma outra, onde a sua declaração seria registada e onde seria mantida à margem de uma história muito melhor: O Triunfante Regresso da Incrível Amy.

Quando Amy nos foi devolvida, começou tudo de novo. As fotografias e as lágrimas, os abraços e os risos, tudo para desconhecidos que queriam ver e saber: Como é que foi? Amy, qual é a sensação de escapar ao seu captor e de voltar para o seu marido? Nick, qual é a sensação de ter a sua mulher de volta e de recuperar a liberdade, tudo de uma vez?

Permaneci basicamente em silêncio. Estava a pensar nas minhas próprias perguntas, as mesmas perguntas em que pensara durante anos, no sinistro refrão do nosso casamento: Em que é que estás a pensar, Amy? Como é que te estás a sentir? Quem és tu? O que é que fizemos um ao outro? O que é que vamos fazer?

 

 

Era um ato benevolente e majestoso da parte de Amy querer voltar para casa, para a nossa cama de casados, com o traidor do marido. Toda a gente estava de acordo em relação a isso. Os meios de comunicação seguiam-nos como se fôssemos um cortejo de casamento real, os dois a passar a grande velocidade pelas ruas de Cartago cheias de néon e de restaurantes de fast food até à nossa McMansão junto ao rio. Amy tem uma graciosidade, uma coragem... A princesa de um livro de histórias. E eu, é claro, era o marido corcunda e servil, que iria fazer vénias arrastando o pé para o resto dos meus dias. Até ela ser presa. Se alguma vez fosse presa.

O facto de ter sido libertada era uma preocupação. Mais do que uma preocupação, um perfeito choque. Vi-os a saírem todos da sala de conferências onde a tinham interrogado durante quatro horas, para depois a deixarem ir-se embora: dois tipos do FBI com cabelo alarmantemente curto e rostos inexpressivos; Gilpin, com aspeto de quem tinha engolido o melhor bife da sua vida; e Boney, a única com lábios finos e cerrados, e a testa franzida. Olhou-me de relance ao passar por mim, ergueu uma sobrancelha e desapareceu.

Depois, demasiado rapidamente, eu e Amy estávamos de volta à nossa casa, sozinhos na sala, com Bleecker a observar-nos de olhos brilhantes. Do lado de fora das cortinas, as luzes das câmaras de televisão continuavam, inundando a nossa sala de um brilho alaranjado bizarramente luxuriante. Parecia que estávamos à luz das velas, numa atmosfera romântica. Amy estava absolutamente linda. Eu odiava-a. Tinha medo dela.

— Nós não podemos dormir na mesma casa... — comecei.

— Eu quero ficar aqui contigo. — Agarrou-me na mão. — Quero estar com o meu marido. Quero dar-te a oportunidade de seres o tipo de marido que queres ser. Eu perdoo-te.

— Tu perdoas-me? Amy, porque é que voltaste? Por causa do que eu disse na entrevista? Dos vídeos?

— Não era isso que tu querias? — disse ela. — Não era esse o objetivo dos vídeos? Eram perfeitos... fizeram-me lembrar aquilo que costumávamos ter e que era tão especial.

— Aquilo que eu disse, era apenas eu a dizer o que tu querias ouvir.

— Eu sei... dá para ver como me conheces bem! — exclamou Amy, sorrindo abertamente. Bleecker começou a passar-lhe por entre as pernas. Ela agarrou nele e afagou-o. O seu ronronar era ensurdecedor. — Pensa nisso, Nick, nós conhecemo-nos um ao outro. Agora, melhor do que qualquer outra pessoa no mundo.

Era verdade que eu também tinha tido esse sentimento no mês passado quando não desejava mal a Amy. Ocorria-me em momentos estranhos — a meio da noite, quando me levantava para fazer chichi, ou de manhã, quando enchia a tigela de cereais. Detetava uma pontinha de admiração e, mais do que isso, ternura pela minha mulher, mesmo no meio de mim, mesmo nas entranhas. O facto de ela saber exatamente aquilo que eu queria ouvir naqueles bilhetes para me voltar a apaixonar por ela, e até prever todos os meus passos em falso... aquela mulher conhecia-me em absoluto. Conhecia-me melhor do que qualquer outra pessoa no mundo. Todo este tempo, pensara que éramos uns estranhos, e afinal conhecíamo-nos um ao outro de forma intuitiva, nos nossos ossos, no nosso sangue.

Até era romântico. Catastroficamente romântico.

— Não podemos recomeçar simplesmente no ponto em que estávamos, Amy.

— Não, não no ponto em que estávamos — disse ela. — Mas naquele em que estamos agora. Em que me amas e não voltarás a proceder mal.

— Tu és louca, és literalmente louca se pensas que vou ficar. Tu mataste um homem — disse eu. Virei-lhe as costas, e depois imaginei-a com uma faca na mão e a boca a retesar-se ao ver-me desobedecer-lhe. Voltei-me outra vez. Sim, a minha mulher tem sempre de ser enfrentada.

— Para lhe escapar.

— Tu mataste Desi para poderes ter uma nova história, para poderes voltar e ser a adorada Amy e não teres de arcar com as culpas daquilo que fizeste. Não percebes a ironia, Amy? Foi o que sempre detestaste em mim, o facto de eu nunca lidar com as consequências das minhas ações, certo? Bom, sofri bem as consequências disto tudo. Então e tu? Tu assassinaste um homem, um homem que presumo te amava e te estava a ajudar, e agora queres que fique nesta casa e te ame e te ajude e... eu não consigo. Não consigo fazê-lo. Não irei fazê-lo.

— Nick, acho que recebeste informações erradas — disse ela. — O que não me surpreende, com todos os boatos que correm por aí. Mas nós precisamos de esquecer isso tudo, se quisermos seguir em frente. E nós vamos seguir em frente. A única coisa que a América quer é que sigamos em frente. É a história de que o mundo precisa neste momento. Nós. Desi é o mau da fita. Ninguém quer dois maus da fita. Eles querem poder gostar de ti, Nick. A única forma de voltares a ser amado é ficares comigo. É a única forma.

— Conta-me o que aconteceu, Amy. Desi esteve a ajudar-te todo este tempo?

Ela encolerizou-se com aquilo. Ela não precisava da ajuda de um homem, embora fosse óbvio que tinha precisado da ajuda de um.

— É claro que não! — respondeu bruscamente.

— Conta-me. Que mal faz? Conta-me tudo, porque nós não podemos seguir em frente com esta história ficcionada. Vou estar em guerra contigo a cada passo do caminho. Eu sei que pensaste em tudo. Não estou a tentar que cometas um deslize... estou farto de tentar antecipar os teus pensamentos, não faz parte da minha natureza. Apenas quero saber o que aconteceu. Eu estive a um passo do corredor da morte, Amy. Tu voltaste e salvaste-me, e agradeço-te por isso... estás a ouvir? Eu agradeço-te, por isso não digas mais tarde que não o fiz. Eu agradeço-te. Mas preciso de saber. Tu sabes que eu preciso de saber.

— Despe a roupa — disse ela.

 

 

Ela queria certificar-se de que eu não tinha um aparelho de escuta. Despi-me à frente dela, fiquei em pelo, e depois ela inspecionou-me, passou-me a mão pelo queixo e pelo peito, pelas costas abaixo. Apalpou-me o rabo e deixou escorregar a mão entre as minhas pernas, pôs a mão em concha nos meus testículos e agarrou-me o pénis flácido, segurou-o na mão por um momento para ver se acontecia alguma coisa. Não aconteceu nada.

— Estás limpo — disse ela. Foi dito como um gracejo, uma piada, uma referência cinematográfica de que nos riríamos os dois. Quando eu não disse nada, ela recuou e disse: — Sempre gostei de te ver nu. Fazia-me feliz.

— Não havia nada que te fizesse feliz. Posso voltar a vestir a roupa?

— Não. Não quero estar preocupada com aparelhos de escuta escondidos nos punhos ou nas bainhas. Além disso, precisamos de ir para a casa de banho e de pôr a água a correr. Para o caso de teres instalado aparelhos de escuta na casa.

— Viste demasiados filmes — disse eu.

— Ah! Nunca pensei ouvir-te dizer uma coisa dessas.

Ficámos em pé na banheira e abrimos o chuveiro. A água molhou-me as costas nuas e pulverizou a frente da camisa de Amy até ela a tirar. Tirou todas as suas roupas, num alegre striptease, e atirou-as por cima da proteção do chuveiro com a mesma atitude sorridente e arrojada que tinha quando nos conhecemos — estou pronta para tudo! — e virou-se para mim, e fiquei à espera que ela sacudisse o cabelo à volta dos ombros, como fazia quando namoriscava comigo, mas o cabelo estava demasiado curto.

— Agora, estamos quites — disse ela. — Parecia má educação ser a única pessoa vestida.

— Creio que já passámos a fase da etiqueta, Amy.

Olha-a apenas nos olhos, não lhe toques, não deixes que ela te toque.

Avançou na minha direção, pôs uma mão sobre o meu peito, deixou a água correr-lhe por entre os seios. Lambeu uma gota de água do lábio superior e sorriu. Amy detestava o chuveiro. Não gostava de ficar com o rosto molhado, não gostava da sensação da água a bater-lhe na carne. Eu sabia disso porque era casado com ela e porque a tinha apalpado e assediado muitas vezes no chuveiro, sempre sem resultado. (Eu sei que parece sexy, Nick, mas na verdade não é, é uma daquelas coisas que as pessoas apenas fazem nos filmes.) Agora, está a fingir precisamente o contrário, como se se tivesse esquecido que eu a conheço. Afastei-me.

— Conta-me tudo, Amy. Mas, primeiro: alguma vez houve um bebé?

 

 

O bebé era uma mentira. Foi a parte mais desoladora para mim. A minha mulher enquanto assassina era assustadora e repulsiva, mas o bebé enquanto mentira era quase impossível de suportar. O bebé era uma mentira, o medo do sangue era uma mentira — durante o último ano, a minha mulher tinha sido sobretudo uma mentira.

— Como é que tramaste Desi? — perguntei.

— Encontrei um bocado de corda a um canto da cave. Usei uma faca de carne para a cortar em quatro pedaços...

— Ele deixou-te ficar com uma faca?

— Estás a esquecer-te de que éramos amigos.

Ela tinha razão. Estava a pensar na história que ela tinha contado à polícia: que Desi a tinha mantido em cativeiro. Tinha-me esquecido. É para que vejam como ela é uma ótima contadora de histórias.

— Sempre que Desi não estava por perto, amarrava os bocados de corda com a maior força possível à volta dos pulsos e dos tornozelos, para que deixassem estes sulcos.

Mostrou-me as linhas sinistras nos pulsos, como braceletes.

— Agarrei numa garrafa de vinho e violei-me com ela todos os dias, para que o interior da minha vagina ficasse... como devia ser. Como devia ser para uma vítima de violação. Hoje, deixei-o ter sexo comigo, para ficar com o seu sémen, e enfiei-lhe uns comprimidos para dormir no martíni.

— Ele deixou-te ficar com comprimidos para dormir?

Ela suspirou: eu não estava a acompanhar a narrativa.

— Claro, vocês eram amigos.

— Depois, eu... Imitou o gesto de lhe cortar a jugular.

— Com essa facilidade, hein?

— Só temos de decidir e depois fazê-lo — disse ela. — Disciplina. Levar as coisas até ao fim. Como em tudo. Tu nunca compreendeste isso.

Conseguia sentir o seu tom a tornar-se glacial. Não estava a apreciá-la o suficiente.

— Conta-me mais — disse eu. — Conta-me como o fizeste.

 

 

Passado uma hora, a água ficou fria e Amy pôs fim à nossa conversa.

— Tens de admitir que foi brilhante — disse ela.

Olhei-a fixamente.

— Quer dizer, tens de sentir admiração, nem que seja só um bocadinho — incitou ela.

— Quanto tempo é que Desi levou a esvair-se em sangue?

— Está na hora de irmos para a cama — disse ela. — Mas podemos conversar mais amanhã, se tu quiseres. Agora, temos de ir dormir. Juntos. Acho que é importante. Para encerrar o assunto. Na verdade, o oposto disso.

— Amy, vou ficar esta noite porque não me apetece lidar com todas as perguntas se não ficar. Mas vou dormir lá em baixo.

Ela inclinou a cabeça para o lado e estudou-me.

— Nick, eu ainda posso fazer-te muito mal, lembra-te disso.

— Ah! Pior do que já fizeste?

Ela pareceu surpreendida.

— Oh, com certeza que sim.

— Duvido, Amy.

Comecei a andar para a porta.

— Tentativa de homicídio — disse ela.

Parei.

— Era esse o meu plano original, no início: eu seria a pobre mulher doente com episódios repetidos, surtos de doença intensos e repentinos, e depois vinha-se a descobrir que todos aqueles cocktails que o marido lhe preparava...

— Como no diário.

— Mas decidi que tentativa de homicídio não era suficiente para ti. Tinha de ser mais grave do que isso. Ainda assim, não conseguia tirar a ideia do envenenamento da cabeça. Gostava da ideia de estares a preparar o homicídio. A tentar primeiro da forma mais cobarde. Por isso, levei a ideia avante.

— Estás à espera que eu acredite nisso?

— Todo aquele vómito, tão chocante. Uma mulher inocente e assustada podia ter guardado um bocadinho daquele vómito, para o que desse e viesse. Não podes censurá-la por ser um bocadinho paranoica. — Brindou-me com um sorriso satisfeito. — Temos sempre de ter um plano de reserva para o plano de reserva.

— Tu envenenaste-te a sério.

— Nick, por favor, como é que podes estar chocado? Eu matei-me.

— Preciso de uma bebida — disse eu. Saí dali antes que ela pudesse falar.

Servi-me de um uísque e sentei-me no sofá da sala. Para lá das cortinas, as luzes das câmaras iluminavam o quintal. Em breve, deixaria de ser noite. Tinha acabado por achar a manhã deprimente, o facto de saber que ela surgiria uma e outra vez.

 

 

Tanner atendeu ao primeiro toque.

— Ela matou-o — disse eu. — Ela matou Desi porque ele estava basicamente... ele estava a aborrecê-la com joguinhos de poder, e ela percebeu que podia matá-lo e que era a forma de poder voltar à sua antiga vida e de poder deitar as culpas todas para cima dele. Ela assassinou-o, Tanner, acabou de me contar isso. Ela confessou.

— Suponho que não tenha conseguido... gravar nada disso, de alguma forma? No telemóvel ou coisa do género?

— Estávamos nus, com o chuveiro a correr, e ela contou tudo num sussurro.

— Nem sequer quero perguntar — disse ele. — Vocês os dois são as pessoas mais malucas que já conheci, e eu sou especializado em pessoas malucas.

— O que é que se passa com a polícia?

Ele suspirou.

— Ela não deixou nenhuma ponta solta. A história dela é ridícula, mas não mais ridícula do que a nossa história. Amy está basicamente a explorar a máxima mais fiável do sociopata.

— E qual é ela?

— Quanto maior a mentira, mais eles acreditam.

— Vá lá, Tanner, tem de haver alguma coisa.

Fui até à escadaria, para me certificar de que Amy não estava por perto. Estávamos a sussurrar, mas mesmo assim... Tinha de ser cuidadoso, agora.

— Para já, não podemos pisar o risco, Nick. Ela deixou-o bastante mal na fotografia: diz que tudo o que escreveu no diário era verdade. Que tudo o que estava no barracão da lenha lhe pertencia. Que comprou as coisas com aqueles cartões de crédito e que tem vergonha de o admitir. Ela sempre foi uma rapariga rica e protegida, como é que havia de saber alguma coisa sobre a forma de adquirir cartões de crédito secretos em nome do marido? E santo Deus, aquela pornografia!

— Ela disse-me que nunca houve bebé, que falseou os resultados com o chichi de Noelle Hawthorne.

— Porque é que não disse logo? Isso é formidável! Vamos pressionar Noelle Hawthorne.

— Noelle não sabia. — Ouvi um suspiro fundo do outro lado. Ele nem sequer se deu ao trabalho de perguntar como.

— Vamos continuar a pensar, vamos continuar à procura — disse ele. — Há de aparecer alguma coisa.

— Não posso ficar nesta casa com aquela coisa. Ela está a ameaçar-me com...

— Tentativa de homicídio... o anticongelante. Pois, ouvi dizer que estava na bebida.

— Não me podem prender por causa disso, ou podem? Ela diz que ainda tem um bocadinho de vómito. Como prova. Mas será que eles podem mesmo...

— Vamos deixar as coisas como estão, por agora, está bem, Nick? — disse ele. — Por agora, seja simpático. Detesto dizê-lo, a sério que detesto, mas é o melhor conselho jurídico que tenho para si neste momento: seja simpático.

— Ser simpático? É esse o seu conselho? Da minha equipa jurídica de sonho composta por um homem só: seja simpático? Vá-se lixar!

Desliguei, completamente furioso.

Eu vou matá-la, pensei. Eu vou matar esta maldita cabra.

Mergulhei na fantasia sombria a que me entregara ao longo dos últimos anos, quando Amy me fazia sentir humilhado: sonhava em atingi-la com um martelo, esmagar-lhe a cabeça até ela deixar finalmente de falar, de dizer as palavras que me atirava: mediano, enfadonho, medíocre, pouco surpreendente, pouco satisfatório, pouco impressionante. Pouco, basicamente. No meu pensamento, eu batia-lhe com o martelo até ela parecer um brinquedo quebrado, a murmurar pouco, pouco, pouco, até acabar por se calar. E depois, não era o suficiente, por isso eu restaurava-a até ela ficar novamente perfeita e começava a matá-la outra vez: punha-lhe os dedos à volta do pescoço — ela sempre adorou intimidade — e depois apertava, apertava, sentia a pulsação...

— Nick!

Virei-me. Amy estava no degrau de baixo, em camisa de dormir, com a cabeça inclinada para um lado.

— Sê simpático, Nick.