“Não consigo fazer água, mamãe”, disse o velho Hutchins ao sair do banheiro com lágrimas nos olhos.
“Feche a sua porta do estábulo, pai!”, gritou Rudy. Não gostava do velho e sua mão se retorcia de raiva. Pulou da cadeira e olhou em redor em busca do seu bumerangue. “Viu o meu bumerangue, mãe?”
“Não, eu não vi”, respondeu mamãe Hutchins com paciência. “Agora trate de se comportar direito, Rudy, enquanto eu vou cuidar do seu pai. Você acabou de ouvir seu pai dizer que não consegue fazer água. Mas feche a porta do seu estábulo, pai, como o Rudy está falando.”
O velho Hutchins fungou, mas fez o que mandaram. Mamãe Hutchins foi para perto dele com uma expressão preocupada, as mãos segurando o avental.
“É aquilo mesmo que o doutor Porter falou que ia acontecer, mamãe!”, disse o velho Hutchins, apoiando-se na parede com um ar de que ia morrer naquele momento. “Um dia eu ia acordar, ele disse, e não ia conseguir fazer água.”
“Cale a boca!”, gritou Rudy. “Cale a boca! Você só sabe falar coisa suja o dia inteiro! Já estou cheio!”
“Agora trate de ficar quieto, Rudy”, disse mamãe Hutchins, abalada, enquanto recuava um ou dois passos com o velho Hutchins apoiado nos braços.
Rudy começou a andar de um lado para o outro com passos irritados sobre o piso recoberto de linóleo, na sala escassamente mobiliada mas bem-arrumada. Suas mãos pulavam para fora e para dentro dos bolsos das calças, enquanto lançava olhares ameaçadores para o velho Hutchins, que pendia todo mole nos braços da mamãe Hutchins.
Ao mesmo tempo, um aroma quente de torta de maçã fresca pairava vindo da cozinha e fazia Rudy lamber os beiços com apetite. Mesmo no meio da sua grande raiva, aquilo o fazia recordar que estava quase na hora do lanche. De vez em quando, lançava olhares nervosos com o canto dos olhos para o irmão mais velho, Ben, que estava sentado numa pesada cadeira de carvalho, no canto, perto da máquina de costura de pedal. Mas Ben nunca erguia os olhos do seu exemplar surrado do livro Armas indomáveis.
Rudy não conseguia entender Ben. Continuou a andar, pisando com força, de um lado para o outro ao longo da sala, às vezes derrubava uma cadeira no caminho ou quebrava uma lâmpada. Mamãe Hutchins e o velho Hutchins voltaram ao banheiro muito devagar. Rudy parou de repente e olhou para eles, depois olhou de novo para Ben. Ele simplesmente não conseguia entender Ben. Não conseguia entender nenhum deles, mas no caso do Ben ele entendia menos ainda. Queria que Ben o notasse algumas vezes, mas Ben vivia com o nariz enfiado num livro. Ben lia Zane Grey, Louis L’Amour, Ernest Haycox, Luke Short. Ben achava que Zane Grey, Louis L’Amour e Ernest Haycox eram legais, mas não tão bons quanto Luke Short. Achava que Luke Short era o melhor de todos. Tinha lido os livros de Luke Short quarenta ou cinquenta vezes. Precisava de alguma coisa para passar o tempo. Desde que tinha perdido o movimento das pernas sete ou oito anos atrás, quando derrubava árvores para a empresa Pacific Lumber, precisou arranjar alguma coisa para passar o tempo. Desde então só conseguia mexer a metade superior do corpo; além disso parecia ter perdido a capacidade de falar. Fosse como fosse, o fato é que nunca pronunciou nenhuma palavra desde o dia da queda. Acontece que sempre tinha sido um rapaz calado, desde antes, quando morava em casa; não incomodava ninguém. E continuava sem incomodar, afirmava a mãe, quando lhe perguntavam. Calado feito um camundongo, e precisava de muito pouca atenção.
Além do mais, no primeiro dia de cada mês Ben recebia pelo correio um cheque da pensão por invalidez. Não era muito, mas o bastante para que todos eles vivessem. O velho Hutchins tinha deixado de trabalhar quando os cheques da pensão por invalidez começaram a chegar. Ele não gostava do seu patrão, era essa a razão que dava na época. Rudy nunca saía de casa. Não terminou o ensino médio, tampouco. Ben tinha terminado o ensino médio, mas Rudy era um aluno desistente do ensino médio. Agora estava com medo de ser convocado para o Exército. A ideia de ser convocado para o Exército o deixava muito nervoso. Não gostava nem um pouco da ideia de ser convocado. Mamãe Hutchins sempre tinha sido dona de casa e mãe de família. Não era muito esperta, mas sabia se virar com o dinheiro. Às vezes, porém, quando eles ficavam com pouco dinheiro já perto do fim do mês, ela precisava ir até a cidade com uma bela caixa de maçãs nas costas e vender cada uma por dez centavos na esquina em frente à farmácia do Johnson. O sr. Johnson e os balconistas a conheciam e ela sempre dava ao sr. Johnson e aos balconistas uma lustrosa maçã vermelha, que ela esfregava com o pano da frente do seu vestido para dar brilho.
Rudy começou a dar violentos golpes e estocadas de espada no ar, grunhindo enquanto atacava e retalhava. Parecia ter se esquecido do casal de velhos agachados no corredor.
“Vamos, querido, não se preocupe”, disse mamãe Hutchins com voz fraca para o velho Hutchins. “O doutor Porter vai dar um jeito em você. Afinal, uma operação de próstata é uma coisa bem comum. Olhe só o primeiro-ministro MacMillian. Você se lembra do primeiro-ministro MacMillian, papai? Quando ele era primeiro-ministro e fez aquela operação de próstata, ficou bonzinho num instante. Num instante mesmo. Vamos, não desanime. Puxa...”
“Cale a boca! Cale a boca!” Rudy fez uma estocada assustadora na direção deles, mas os dois recuaram para o fundo do corredor estreito. Felizmente mamãe Hutchins teve força bastante para dar um assobio e chamar Yeller, um cachorro gigantesco e peludo, que na mesma hora chegou correndo da varanda dos fundos e colocou as patas erguidas no peito estreito de Rudy, empurrando-o um ou dois passos para trás.
Rudy retirou-se devagar, apavorado com o hálito fedorento do cachorro. A caminho da sala, apanhou o pertence favorito do velho Hutchins, um cinzeiro feito com o casco da pata dianteira de um alce, e atirou o objeto malcheiroso no jardim.
O velho Hutchins começou a chorar outra vez. Tinha perdido o controle. Desde o pérfido ataque de Rudy contra sua vida no mês anterior, seus nervos, que já não eram lá grande coisa, ficaram em petição de miséria.
O que aconteceu foi o seguinte: o velho Hutchins estava tomando banho quando Rudy entrou sorrateiramente e jogou a vitrola RCA dentro da banheira. Podia ter sido uma coisa séria, até fatal, se na pressa Rudy não tivesse esquecido de ligar o aparelho na tomada. Mesmo assim, o velho Hutchins acabou com um machucado feio na coxa direita, quando a vitrola entrou voando pela porta aberta. Isso foi logo depois de Rudy ter visto um filme chamado Goldfinger na cidade. Agora eles estavam mais ou menos em guarda em todos os momentos, especialmente quando Rudy ia até a cidade. Quem podia saber que ideias ele ia enfiar na cabeça quando via aqueles filmes? Rudy era muito impressionável. “Está numa idade muito impressionável”, mamãe Hutchins dizia ao velho Hutchins. Ben nunca falava nada, de um jeito ou de outro. Ninguém conseguia entender Ben, nem mesmo sua mãe, mamãe Hutchins.
Rudy ficou no estábulo tempo suficiente para devorar metade da torta, depois colocou o cabresto em Em, seu camelo predileto. Levou-o para fora pela porta dos fundos e, com todo o cuidado, através da intrincada rede de armadilhas, poços cobertos e alçapões, colocados ali para os descuidados e os imprudentes. Uma vez livre, puxou a orelha de Em, fez o camelo se ajoelhar, montou e foi embora.
Partiu batendo os cascos pela planície, subiu pelas encostas secas dos montes cobertos de sálvia. Parou uma vez numa pequena elevação a fim de se virar e olhar a velha casa da família. Gostaria de ter um pouco de dinamite e um detonador para explodir e varrer aquilo tudo da paisagem — como o Lawrence da Arábia tinha feito com aqueles trens. Rudy detestava aquela imagem, a velha casa da família. Afinal estavam todos malucos naquela casa. Não fariam a menor falta. Por acaso ele sentiria a falta deles? Não, não ia sentir falta deles. Além do mais, a terra continuaria a existir, e as maçãs também. Ora, para o inferno com a terra e as maçãs! Ele bem que gostaria de ter um pouco de dinamite agora.
Virou Em na direção de um arroio seco. Com o sol batendo feroz em suas costas, Rudy avançou a meio galope até o fim do cânion retangular. Parou, desmontou e, por trás de uma pedra, abriu a lona que recobria o grande revólver Smith & Wesson, o albornoz e o gorro. Vestiu-os e depois enfiou o revólver no coldre. O revólver caiu. Enfiou a arma de novo e ela caiu outra vez. Aí resolveu levá-la apenas na mão mesmo, embora fosse pesada e por isso fosse difícil conduzir o camelo. Aquilo ia exigir dele uma perícia especial nas manobras, mas achou que podia se virar assim. Achou que era capaz.
De volta à fazenda, deixou Em no estábulo e foi até a casa. Viu o cinzeiro de pata de alce no jardim, algumas moscas revoavam perto dele e Rudy sorriu com desdém; o velho tinha ficado com medo de sair e pegar o cinzeiro de volta. Mas com isso teve uma ideia.
Deu de cara com eles na cozinha. O velho Hutchins, sentado de modo bem confortável à mesa da cozinha e mexendo seu café com leite, parecia totalmente aturdido. Mamãe Hutchins estava no fogão, pondo mais uma torta para assar.
“Maçãs, maçãs, maçãs!”, berrou Rudy. Após essa exclamação, soltou uma risada, brandindo seu Colt 45 no ar, depois arrebanhou todos eles na sala. Ben ergueu os olhos com um leve sinal de interesse e depois voltou para o seu livro. Era Trilha agreste, de Luke Short.
“É isso aí”, disse Rudy, e sua voz foi ficando mais alta. “É isso aí, é isso aí, é isso aí!”
Mamãe Hutchins continuou franzindo os lábios — quase como se esperasse um beijo — tentando assobiar para chamar Yeller, mas Rudy se limitava a rir e gritar. Apontou para a janela com o cano de sua Winchester. “O Yeller está lá”, disse. Mamãe Hutchins e o velho Hutchins se viraram para ver Yeller trotando pelo pomar com o cinzeiro na boca. “Olha lá o velho Yeller”, disse Rudy.
O velho Hutchins soltou um gemido e caiu de joelhos com um baque doloroso. Mamãe Hutchins abaixou-se ao lado dele, mas lançou um olhar de súplica na direção de Rudy. Ele estava a mais ou menos um metro e meio da mãe, logo à direita do banquinho vermelho, feito de imitação de couro, para descansar os pés.
“Rudy, não faça nada agora, querido, não faça nada de que depois você possa se arrepender. Você não quer me machucar e nem ao seu pai, não é, Rudy?”
“Ele não é pai para mim... não é, não é, não é”, disse Rudy, dançando em redor da sala, com olhares ocasionais para Ben, que, desde o seu momentâneo lampejo inicial de interesse pelos acontecimentos, não tinha voltado a se mexer.
“Você não deve falar assim, Rudy”, reprovou com delicadeza mamãe Hutchins.
“Filho”, interrompeu o velho Hutchins, fungando por um minuto, “você não vai machucar um pobre velho indefeso e arrasado por uma doença de próstata, não é, hein, Rudy?”
“Põe ela pra fora, põe ela pra fora que eu estouro ela pra você de uma vez”, disse Rudy, brandindo o repulsivo cano de nariz arrebitado do seu 38 bem debaixo do nariz um tanto grande do velho Hutchins. “Vou mostrar só pra você o que é que vou fazer por você!” Ficou brandindo a arma assim de um lado para o outro durante mais um minuto, depois se afastou dançando outra vez. “Não, não, eu não vou atirar em vocês. Atirar é ser bom demais com vocês.” Mas ele disparou um tiro do rifle automático Browning na parede da cozinha só para mostrar que estava falando sério.
Ben ergueu os olhos. Tinha um olhar manso, indolente no rosto. Fitou Rudy por um instante sem parecer reconhecê-lo, depois voltou para seu livro. Estava num quarto lindo num hotel chamado The Palace, na cidade de Virginia. No térreo, havia três ou quatro homens ameaçadores à espera dele no bar, mas naquele instante Ben ia desfrutar o primeiro banho que tomava em três meses.
Rudy hesitou um instante, depois olhou em volta com ar desvairado. Seus olhos toparam com o relógio de ferrovia que era do seu avô, fazia tique-taque e estava com a família havia sete anos. “Está vendo aquele relógio ali, mãe? Quando o ponteiro grande encontrar o ponteiro pequeno vai acontecer uma explosão. Vrum! Bam! E lá vai ele pelos ares, tudo! Cabum!” Com isso, deu um salto para fora pela porta da frente e foi parar na varanda.
Sentou-se embaixo de uma macieira há uns cem metros da casa. Pretendia esperar até que todos se reunissem na varanda da frente: mamãe Hutchins, o velho Hutchins, até o Ben; todos reunidos ali, com os poucos pertences que esperavam preservar, e depois ele ia fazer pontaria e abater todo mundo à bala rapidamente, um por um. Percorreu a varanda com sua alça de mira, pondo as linhas cruzadas nas janelas, numa cadeira de vime, num vaso de flores rachado que estava secando ao sol em cima de um dos degraus da escadinha da varanda. Depois respirou fundo e se acalmou para esperar.
Esperou, esperou, mas eles não vieram. Um pequeno bando de codornas da montanha da Califórnia começou a avançar pelo pomar, parava de vez em quando para pegar alguma maçã caída ou para vasculhar em volta da base de uma árvore em busca de uma bela e suculenta minhoca. Rudy continuou olhando para elas e em pouco tempo já não olhava para a varanda. Sentou-se muito quieto junto à árvore, quase sem respirar, e as codornas não o viram, chegaram cada vez mais perto, conversando entre si no suave linguajar das codornas, enquanto catavam maçãs e esquadrinhavam o solo a fundo. Rudy se curvou de leve para a frente e aguçou os ouvidos para entreouvir o que elas diziam. A codorna estava falando sobre o Vietnã.
Aquilo foi demais para Rudy. Ele estava a ponto de chorar. Abanou os braços para a codorna e disse: “Xô!”. Ben, Vietnã, maçãs, próstata: o que tudo aquilo significava? Será que havia alguma ligação entre o xerife Matt Dillon e James Bond? Entre Oddjob, o escudeiro de Goldfinger, e o Capitão Easy, das histórias em quadrinhos? Se era assim, onde se encaixava Luke Short? E Ted Trueblood da série de tevê? Sua mente entrou em parafuso.
Com um último olhar desesperado para a varanda vazia, enfiou a ponta dos canos brilhantes, recentemente polidos, da calibre 12 dupla dentro da boca.