Introdução

 

Alguma coisa lá no fundo

 

 

Rodrigo Lacerda1

 

 

 

 

 

 

 

 

Raymond Carver (1938-88) foi um dos autores mais influentes na literatura norte-americana da segunda metade do século XX, mas sua obra não teve, entre nós, a repercussão que merecia. Mesmo quando veio ao Brasil, em 1984, suas palestras não chamaram muita atenção. Várias razões contribuíram para isso, sobretudo o fato de seus livros terem sido publicados por aqui sem o devido estardalhaço e em número insuficiente. Agora, 21 anos após sua morte, a publicação deste volume de Contos põe as coisas em seu lugar.

O presente lançamento representa ainda um segundo e importante avanço. Quando um escritor é especialista em contos, não é raro que o simples esforço de elencar sua bibliografia se transforme num pesadelo. Algumas histórias já publicadas reaparecem junto a outras inéditas, num livro com novo título; outras são reescritas e publicadas com outros títulos; antologias com títulos novos e nenhum material inédito circulam à vontade; contos surgem em miscelâneas, misturados a textos de outra natureza; suas histórias aparecem, nas mais diferentes combinações, em edições independentes, que por isso mesmo às vezes são citadas nas bibliografias, outras não etc. Em se tratando da obra de Carver, todas as opções acima são verdadeiras. Com o agravante de que, na Inglaterra, a língua é a mesma, mas as edições não seguiram o título americano, enganando muitas das bibliografias disponíveis. É um privilégio para o leitor brasileiro, portanto, finalmente enxergar com maior clareza, em ordem cronológica, a produção essencial de Raymond Carver.

A seção inicial deste volume, “Primeiros contos”, reúne cinco histórias escritas entre 1960 e 1967. São elas: “Estações tempestuosas” (1960-61); “O cabelo” (1963); “Os aficionados” (1963); “Possêidon e companhia” (1963); “Maçãs vermelhas e lustrosas” (1967). Em seguida, temos seus dois primeiros livros publicados em circuito profissional: Você poderia ficar quieta, por favor?, de 1976, e Do que estamos falando quando falamos de amor, de 1981. Mais adiante, vêm os contos incluídos em Fogos, de abril de 1983, uma miscelânea de ficção, poesia e ensaística. Chegamos então à sua obra-prima, Catedral, que saiu em setembro do mesmo ano de 1983. Por fim, na seção “Contos recolhidos”, temos cinco histórias dos anos 1980, que permaneceram inéditas em livro até 2001: “Me telefone se precisar” e “O que você quer ver?” são do início da década, e as demais estavam sendo finalizadas poucos meses antes da morte do escritor.

 

 

Raymond Carver era taxativo ao dizer que os filhos foram a principal influên­cia em sua produção literária. Não é uma frase para ser tomada levianamente. Em 1958, recém-completados seus vinte anos, Carver já era pai de duas crianças e enfrentava imensas dificuldades financeiras. Sua mulher, Maryann Burk (1940-), era ainda mais jovem e profissionalmente despreparada. Para enfrentar a situação, Carver teve todos os tipos de subemprego que se possa imaginar. Foi zelador, faxineiro, rapaz de entrega, frentista, entre outras coisas, e o mesmo caminho seguiu sua mulher, trabalhando como garçonete, vendedora porta a porta etc. Entre 1958 e meados de 1967, o casal viu-se inclusive obrigado a mudar de cidade algumas vezes, sempre indo atrás de algum dinheiro extra.

Com o apoio da esposa, que sempre o incentivou a perseguir o desejo de ser escritor, em 1957 Carver matriculara-se no ciclo básico da faculdade, mas, com a vida que tinha e as sucessivas mudanças, levaria seis anos e três universidades diferentes até se formar em estudos literários, no ano de 1963. O curso universitário acidentado foi o primeiro impacto direto que os filhos tiveram em sua carreira. O segundo foi que, sem tempo para escrever, Carver começou compondo peças curtas, ao fim das quais conseguia chegar mais rapidamente. O fato de ter se especializado em contos e poemas, portanto, não foi um acaso.

Na segunda universidade em que se matriculou, e onde estudou de 1958 a 1960, a Chico State College, na Califórnia, Carver teve um jovem professor chamado John Gardner (1933-82), que logo se tornaria famoso como autor dos célebres manuais para jovens escritores On Becoming a Novelist [Como se tornar um romancista] e The Art of Fiction [A arte da ficção]. Proveniente de uma família na qual ninguém passara da metade do ensino fundamental, era inevitável que Carver se impressionasse com ele. Foi sob a orientação de Gardner que começou a escrever, e foi Gardner o primeiro a ler e comentar detalhadamente seus contos, aconselhando-o a, quando chegasse a hora, valorizar as revistas literárias como veículos preferenciais de publicação. Além disso, emprestava sua sala na universidade para que o jovem aluno, nos finais de semana, fugisse da agitada vida doméstica e escrevesse. Com ele Carver aprendeu a revisar incessantemente o que produzia, a estruturar suas narrativas, a escolher minuciosamente as palavras, a eliminar os excessos retóricos e, por fim, a analisar os significados mais profundos de suas histórias. Ainda graças a sua orientação, Carver teve contato com os clássicos da literatura e com os dois escritores que, de lados opostos, eram os pilares do modernismo literário americano: Ernest Hemingway e William Faulkner.

Mais do que tudo isso, segundo Carver, o jovem orientador ensinou-lhe a ética essencial do ofício: “Gardner estava convicto de que, se a história estivesse ‘borrada’ devido à insensibilidade, ao descuido ou ao sentimentalismo do autor, ela sofreria imenso prejuízo. Mas havia coisa ainda pior, algo que deveria ser evitado a qualquer custo: se as palavras e os sentimentos fossem desonestos, se o autor estivesse fingindo ou escrevendo sobre coisas que não fossem realmente importantes para ele e nas quais não acreditasse, então ninguém daria a mínima para o que escrevia”.

Em junho de 1960, contratado por uma serraria para trabalhar na função que aprendera com o pai, a de afiador de serras, Carver mudou-se novamente e transferiu-se para a Humboldt State College, onde outro professor, Richard C. Day, continuou o trabalho de orientação iniciado por Gardner. Lá Carver fundaria uma revista, Selection, e nela publicaria seu primeiro conto, “Estações tempestuosas”. De lá sairia formado em 1963.

Gardner e Day guiaram as leituras de Carver e estimularam seu ímpeto de experimentação, ainda irregular e muitas vezes à sombra dos grandes autores. O próprio “Estações tempestuosas” possui uma típica dicção faulkneriana, com solene abundância descritiva e liberdades na relação tempo-espaço. “O pai” é uma espécie de fábula kafkiana contemporânea, que já acena com o talento de Carver para os diálogos. “Os aficionados” é uma paródia desconstrutiva, em que a arena, supostamente lugar de touradas, torna-se palco de um rito sacrificial. “Possêidon e companhia” é um flerte com o classicismo. “Maçãs vermelhas e lustrosas”, uma fantasia livre. Hemingway, é claro, foi outro modelo submetido a testes, e pelo menos uma de suas frases famosas ficou marcada a ferro e fogo na mente de Carver: “Prosa é arquitetura, não decoração de interiores, e o barroco está acabado”.

De todos os escritores que marcaram sua sensibilidade, Tchekhov foi aquele no qual se espelhou até o fim da vida. Muitas das características estilísticas do mestre russo reaparecem, em outro cenário e em outro tempo, nos contos de Carver. Entre elas, a forma contida e objetiva da narrativa, às vezes destituída de um enredo evidente, pedindo ao leitor que avance sem saber aonde irá chegar, e o caráter prosaico dos elementos que trazem aos personagens grandes revelações morais, frequentemente assinaladas por epifanias negativas, isto é, que não dizem exatamente o que estão revelando, mas ressoam como um “trovão distante”.

Em seu texto “Sobre o ato de escrever”, Carver elenca seus mandamentos como escritor: 1) não tentar sempre dominar o assunto, permitir-se a perplexidade; 2) precisão fundamental no discurso; 3) nunca usar truques; 4) saber valorizar os pontos-finais; 5) escrever um pouco todo dia, sem esperança ou desalento. Tchekhov, numa carta de maio de 1886, antes elencara os dele, e as semelhanças com os de Carver são evidentes: 1) não incluir efusões sociopolíticas; 2) objetividade do começo ao fim; 3) ser verdadeiro na descrição das personagens e das coisas; 4) extrema brevidade; 5) audácia e originalidade — evitar clichês; 6) ter um coração generoso.

Carver escreveu ensaios e poemas que dialogam até explicitamente com Tchekhov e, entre os contos aqui reunidos, um dos muitos que recebem um evidente influxo do autor russo é “Os patos”. Se Hemingway o havia atraído pelo texto enxuto, preciso e bem-estruturado, Tchekhov lhe dava um “coração generoso”, que se permitia a perplexidade e a doçura.

“O cabelo” é apontada como a primeira história mais próxima do futuro Carver. Fala de um jovem cuja identidade é ameaçada por uma irritação aparentemente inofensiva. Há nessa narrativa um lirismo angustiado que logo se tornaria característico do escritor.

 

 

O ano de 1967 foi crucial para Carver. Seu conto “Você poderia ficar quieta, por favor?” foi incluído entre os melhores do ano nos Estados Unidos e seu primeiro livro de poemas começou a circular. Enquanto suas histórias continuaram a ser publicadas em revistas alternativas, ele conseguiu seu primeiro emprego “de colarinho branco”, como editor de textos numa editora de livros didáticos, em Palo Alto, na Califórnia.

Sua produção, como não poderia deixar de ser, reagiu ao novo cenário. Personagens desacostumadas a um mundo de maior sofisticação aparecem no conto “Sinais”, por exemplo, enquanto “O que acha disso?” fala da dificuldade de retornar a uma vida longe dos grandes centros. É também nessa época que se consolidam os principais temas de sua obra, ou aquilo que ele preferia chamar de suas “obsessões”: 1) os momentos em que os papéis sociais de suas personagens são abalados; 2) as relações familiares e conjugais; 3) o mistério e/ou a ameaça embutida nos eventos cotidianos.

Em se tratando de temas como esses, equilibrar emotividade e objetividade foi sempre sua grande preocupação. Nessa época, já sem a supervisão de Gardner e Day, cabia a ele próprio enxugar seu texto, eliminando eventuais excessos de sentimentalismo. Com isso, dizia Carver, uma mudança começou a ocorrer: “Durante esse período, alguma coisa aconteceu na minha escrita, com a minha escrita. Ela desceu ao subterrâneo e depois emergiu outra vez, banhada por uma nova luz aos meus olhos. Eu estava começando a desbastar, até ficar só na imagem, depois até a figura em si”.

Em 1970, somando o dinheiro de um prêmio ganho com um de seus contos, o fundo de garantia que recebeu quando seu posto como editor foi extinto e o salário-desemprego, Carver pôde pela primeira vez na vida passar nove meses apenas escrevendo. Nesse período, produziu quase metade dos contos que compõem o livro Você poderia ficar quieta, por favor?.

Havia entretanto alguns obstáculos para que sua obra pudesse deslanchar. No que tange a um amplo reconhecimento da crítica, o problema estava no fato de que a vertente mais forte da vanguarda literária da época propunha-se a abandonar o registro realista, considerado ultrapassado, e a perseguir experimentações formalistas. Para Carver, no entanto, a grande literatura deveria permanecer “conectada à vida, enfatizadora e transformadora da vida”, fiel ao que ele próprio chamava de “os elementos básicos da narrativa fora de moda: enredo, personagem e ação”.

Uma segunda vertente, ainda no campo da vanguarda, era a dos escritores beats. Entre eles e Carver, porém, havia fortes diferenças de atitude em relação ao trabalho literário. Os beats vangloriavam-se de sua escrita automática, despojada de refinamentos de linguagem, obtida num fluxo direto, quase inconsciente e algumas vezes motivada pelas drogas, que dispensava o incessante aprimoramento formal. Nada disso se afinava com os padrões absorvidos por Carver nas aulas de redação criativa. Seriam necessárias décadas de distanciamento até os estudiosos constatarem que o fluxo livre dos beats era, na verdade, também um efeito construído. Muito antes disso, porém, Carver assumidamente se tornou um autor cioso da estrutura de suas histórias, e a seu modo um estilista, de vocabulário despojado à primeira análise, mas que elaborava o ritmo de cada frase, o tom de cada palavra.

Do outro lado da cena literária, o sucesso comercial de sua produção esbarrava na resistência aos livros de contos. O romance continuava sendo a modalidade ficcional mais consumida pelas editoras de ampla circulação e pelo grande público.

Um passo crucial para romper essas barreiras começara a ser dado ainda em 1967, quando Carver conheceu um vizinho em Palo Alto, chamado Gordon Lish (1934-), seu colega no ramo das editoras didáticas. Em 1969, Lish aceitaria o posto de editor de ficção na prestigiosa revista Esquire. Finalmente, em 1971, contrariando sua preferência por revistas literárias alternativas, Carver pela primeira vez submeteu a Lish, com vista à publicação, uma de suas histórias, “Vizinhos”.

O incentivo descompromissado de Lish ao processo de amadurecimento e enxugamento pelo qual passavam os contos de Carver deu então lugar a uma relação de parceria entre autor e editor, que viria a aprofundar esse mesmo processo. Em “Vizinhos”, o resultado do trabalho a quatro mãos é uma estrutura mais firme e um estilo mais polido. Sobre essa narrativa, Carver diria: “É um conto altamente estilizado, antes de qualquer coisa, e é isso que dá a ele o seu valor.” Diante de Lish, Carver sentia-se um aprendiz, e dava ao editor ampla liberdade de intervenção em seus textos, como fica evidente numa carta de 1971: “Sobre aquilo que você disse há muito tempo, ‘a coisa em si é o que importa’. É verdade, no fim das contas. […] Então, pisa fundo […]. Se eu não concordar, dou um sinal qualquer, nunca tema”.

Em parte graças a Lish, a literatura de Carver ganharia um tom lacônico e seco, que flertava com o que os críticos chamavam de “minimalismo” literário. Mas esse processo de enxugamento formal vinha de longe, e era orgânico ao seu desenvolvimento como escritor, e não uma simples imposição externa. Durante a década de 1970, Lish publicou, editando, as histórias de Carver na Esquire, e foi também o intermediário e o editor de seus dois primeiros livros lançados por grandes editoras de Nova York, que elevaram sua carreira a um novo patamar.

Lish entendeu profundamente o universo ficcional de Carver. É dele, por exemplo, a expressão “caipiras de shopping center”, que caracteriza muito bem uma vasta galeria das personagens do escritor. Se a trajetória da geração de seus pais — imigrantes de origem rural que atravessaram com extrema dificuldade a Grande Depressão e a adaptação forçada ao meio urbano — bem caberia num romance de John Steinbeck, a da classe média baixa da geração seguinte se desenhava em um novo cenário e exigia uma nova forma de apresentação.

 

 

Uma vez terminados seus meses de escritor em tempo integral, Carver voltou a trabalhar, agora como professor de redação criativa na Universidade da Califórnia. A partir da Esquire, outras revistas de grande circulação interessaram-se por seus contos, como a Harper’s Bazaar, que publicou “Gordo” em 1971 e, mais tarde, a The New Yorker, da qual se tornaria um colaborador frequente. As revistas literárias, é claro, absorviam cada vez mais histórias suas. Em 1972 ele recebeu uma bolsa da Universidade de Stanford e foi professor-visitante de redação criativa na Universidade de Berkeley; em 1973 foi contratado como professor na prestigiosa Oficina Literária de Iowa; e durante um curto período, em 1974, acumulou os trabalhos em Iowa com funções equivalentes na Universidade de Santa Barbara.

Aparentemente, a vida tinha tudo para melhorar. No entanto, durante esses primeiros anos de relativa tranquilidade financeira e projeção profissional, Carver perdeu o controle sobre seu maior vício: a bebida. Havia anos bebia pesadamente, e sempre fora um fumante compulsivo, mas nunca como nesse período. Segundo Maryann, sua mulher, a bebida se tornou um problema “quando ele começou a dar aulas (…) Ficar diante de uma turma de alunos, ou de um grupo de pessoas, era apavorante para ele. Ia contra sua natureza, embora tenha ficado muito bom nisso”. Essa foi uma fase de desintegração familiar e dissipação etílica, que o escritor posteriormente apelidaria de “Bad Raymond Days”. Ele vivia longe de casa, em hotéis, deslocando-se entre os dois empregos, e a responsabilidade familiar precocemente assumida continuava cobrando seu preço. Tudo isso acabou fazendo-o perder ambos os empregos em 1974. Os Carver foram novamente à falência. Desempregado, o escritor mudou-se com a família para Cupertino, na Califórnia, e até 1976 escreveu muito pouco.

A amizade e a parceria com Lish foram das poucas coisas a continuarem estáveis durante aqueles anos. Em 1974, Lish apresentara à editora McGraw-Hill, de Nova York, a primeira reunião de contos de Carver. O escritor, agradecido, novamente aceitou sua intervenção nos textos, como fica patente numa carta de novembro daquele ano: “Sobre as edições necessárias em algumas histórias, diga-me quais e eu vou atrás dela, ou delas. Diga-me quais são. Ou eu deixo nas suas mãos e você me diz o que acha que deve ser feito nela ou ‘nelas’”. Os dois põem-se a retrabalhar os contos, o que fariam pelos próximos dois anos. As interferências de Lish existiram, firmes, e não houve, então, nenhum conflito na parceria. Em 1977, Carver escreveu ao editor: “Você, meu amigo, é o meu conceito de um leitor ideal, sempre foi, sempre, isto é, será para sempre”.

Os anos de 1976 e 1977 foram mesmo contraditórios. Enquanto Carver, sem dinheiro, vendia sua casa em Cupertino e ia morar sozinho na ignota McKinleyville, na Califórnia, separando-se da mulher e dos filhos, a editora McGraw-Hill publicava Você poderia ficar quieta, por favor?. Enquanto ele obtinha, em alguma medida, o tão sonhado sucesso e fazia cada vez mais amigos no meio literário, era internado quatro vezes por alcoolismo agudo entre outubro de 1976 e janeiro do ano seguinte.

No entanto, 1977 é o marco de uma grande virada em sua vida. Como escritor, naquele ano Carver abalou o mito editorial de que o grande público não gostava de contos (iria derrubá-lo de vez no livro seguinte) e recebeu uma indicação para o National Book Award. A crítica de ponta se rendeu a seu talento, talvez porque a fachada “minimalista” dos contos, na qual Lish tinha grande responsabilidade, o tenha ajudado a quebrar a resistência das vanguardas, ou talvez porque as tendências literárias mais nitidamente vanguardistas, àquela altura dos anos 1970, já tivessem perdido o grande impulso da década anterior.

Em sua vida particular, no dia 2 de junho de 1977, Carver decidiu parar de beber e, para surpresa geral, inclusive sua própria, conseguiu fazê-lo. “Eu acho que eu só queria viver”, diria ele mais tarde. O escritor relembrava esse momento como o ponto em que teve início a sua “segunda vida”, a sua “viagem rio acima”, numa alusão aos salmões que desde criança adorava pescar. Para culminar a maré positiva, em novembro, num ciclo de palestras sobre literatura, no Texas, Carver conheceu a poetisa Tess Gallagher (1943-), no prenúncio de uma relação amorosa que se estenderia do ano seguinte, quando ele e a primeira esposa separaram-se definitivamente, até o fim de sua vida.

 

 

Carver não ficava muito confortável no papel de escritor minimalista, mas tinha plena confiança em Gordon Lish, e o sucesso do primeiro livro parecia comprovar a melhora dos contos após as intervenções do editor. Em 1977 Lish deixou a Esquire e foi trabalhar na célebre editora Alfred Knopf. Sem demora, assinou com Carver o contrato para um segundo livro. O escritor, na época, continuava dando aulas de redação criativa e publicando contos aqui e ali. Suas novas histórias refletiam o período difícil que havia passado, como por exemplo “Por que não dançam?”, de 1978, na qual um homem presumivelmente abandonado por sua mulher põe todos os seus pertences à venda, despertando a curiosidade e a desconfiança de um jovem casal.

Em 1980, Lish começou a editar os contos para o segundo livro. A essa altura, Carver e Tess já mantinham uma união estável e ele fora contratado pela Universidade de Syracuse, onde ela também lecionava redação criativa. Numa carta escrita em maio daquele ano, novamente Carver deu plenos poderes ao editor: “Pelo amor de Deus, não hesite em ‘mandar o lápis’ nas histórias, se você puder melhorá-las; e, se alguém pode, é você”.

Os dois estavam nesses termos quando Lish fez uma primeira edição dos contos selecionados. Após redatilografá-los, enviou uma cópia a Carver, mas, na que manteve consigo, fez ainda uma segunda edição, mais rigorosa do que nunca. O conto “O banho”, por exemplo, caiu de vinte páginas para oito. Lish, em média, enxugou as histórias em 40%, e ainda mudou o título de várias delas.

Quando recebeu a segunda edição de Lish, pela primeira vez desde 1967 o escritor considerou excessiva a interferência do amigo. Na carta que lhe enviou em julho daquele ano, Carver pedia que a versão publicada fosse a da primeira edição, e não a segunda. Caso contrário, humildemente, disse estar disposto a devolver o adiantamento recebido e ter o contrato anulado. Ele invocou a ligação direta entre os contos e suas experiências recentes, dizendo que seria uma humilhação amputá-los daquela forma, sob o risco de destruir sua autoestima perante si próprio e perante os amigos escritores que já os tinham lido, com as piores consequências para um alcoólatra recém-recuperado. Além disso, não se pode subestimar o fato de Carver estar lecionando sobre técnicas de ficção há anos, e de ter ganhado, com a vida estabilizada, maior confiança em seu próprio julgamento. Por fim, casara-se com uma escritora, que naturalmente se tornara a primeira leitora de tudo o que ele escrevia, e uma opinião pelo menos tão importante para ele quanto a de Lish.

Apesar da crise, Lish contava ainda com a gratidão de Carver: “Toda essa vida nova que eu tenho, muitos dos amigos que eu tenho agora, esse trabalho aqui ao norte, tudo, eu devo a você. […] Achei que a sua edição, especialmente na primeira versão, foi brilhante”.

Desde o início da carreira, Carver precisara de editores que o ajudassem a conter uma veia bastante emocional, quase melodramática, em sua prosa de ficção. Na obra poética, que talvez tenha ficado mais imune à ação dos editores, tal característica aparece nitidamente. Gardner havia sido o primeiro, mas agora a sensibilidade racional e minimalista de Lish promovia uma radicalização do processo. No entanto, fora longe demais, e a absoluta assepsia formal imposta aos contos implicava, aos olhos de Carver, uma assepsia emocional, uma ruptura com o “coração generoso” tchekhoviano.

Autor e editor entraram num acordo. A segunda edição de Lish prevaleceria, mas com algumas restaurações exigidas por Carver. Em 10 de julho, o escritor devolveu ao amigo a cópia do livro: “Você vai ver que as mudanças que eu sugiro são bem pequenas, mas eu as considero significativas e todas elas podem ser encontradas na primeira versão editada que você me mandou”. E quatro dias depois, em outra carta, enfatizou: “Eu quero aquele toque de beleza e mistério que elas têm agora, mas não quero perder de vista, perder contato, com as pequenas conexões humanas que eu vi na primeira versão editada que você me mandou”.

O título Do que estamos falando quando falamos de amor foi dado por Gordon Lish ao novo livro de Carver, o segundo a sair por uma grande editora, em abril de 1981. A crítica não mediu elogios. Deu ao escritor a reputação de “mestre completo” e colocou seus contos na categoria de “fábulas para uma geração”. Os elogios, no entanto, vinham acompanhados do temível rótulo de “minimalista” e louvavam sua obra por características que, a seu ver, eram pseudovirtudes, quando diziam que ela era “economicamente clara como um quinto de Sminorff gelada”.

A poetisa Tess Gallagher, na condição de esposa e grande parceira literária de Raymond nos seus últimos dez anos de vida, registrou a ambiguidade da situação vivida pelo marido e pôs em dúvida o quanto o acordo assentado entre Carver e Lish havia de fato sido um acordo: “O que você faria se o seu livro fosse um sucesso, mas você não quisesse explicar para o público que ele havia sido empurrado pela sua garganta abaixo? […] Ray tinha que ir até o fim. Não havia como ele repudiar o livro”.

Não há por que duvidar quando ela diz que sempre foi um desejo de Carver ver o livro restaurado e relançado. Desejo esse, aliás, que Gallagher conseguiu realizar postumamente, ao estimular e autorizar a publicação de Iniciantes (Companhia das Letras, 2009). Não obstante, também é verdade que: 1) a influência de Lish não se restringe a esse livro, está entranhada no conjunto da obra de Carver; 2) nem que fosse por força de contrato, dos dezessete contos de Do que estamos falando quando falamos de amor, vários continuaram sendo republicados em antologias com os cortes do editor, enraizando-se definitivamente no corpus da obra de Carver; 3) mesmo em dois livros organizados pelo próprio Carver — a miscelânea Fogos, de 1983, e a antologia-testamento Where I’m Calling From [De onde estou chamando], publicada poucos meses antes de sua morte —, alguns contos foram publicados conforme a edição de Lish, enquanto em outros casos as mudanças nos textos nem sempre visam restaurá-los ao que eram antes da intervenção do editor, são apenas mudanças; 4) o “toque de beleza e mistério” que Lish dava aos textos era algo que Carver apreciava, indo ao encontro da tão valorizada “perplexidade” das personagens diante da vida.

Por tudo isso, parece injusta a corrente da crítica que põe em dúvida o coe­ficiente autoral da primeira versão de Do que estamos falando quando falamos de amor. A gratidão de Carver ao aporte estético de Lish sobreviveu àquele único atrito, e ela é um indício claro de quanto essa polêmica era, no grande plano, estranha e descabida ao escritor. Afora o melhor entendimento de seu percurso literário, que caminhara naturalmente para a contenção, a simples leitura comparativa das duas versões do livro, por imensas que sejam as diferenças textuais, permite ao leitor identificar a marca emocional de Carver na base de tudo, como alguma coisa lá no fundo que é indissociável do verdadeiro criador e de seus contos, estejam eles em sua versão abreviada ou longa.

Em meio ao contraditório, resta uma única certeza ao leitor brasileiro: o lançamento de Iniciantes, com os textos restaurados, não invalida em absoluto a versão incluída neste volume de Contos, que é a editada por Lish.

 

 

Apesar de todos os problemas, Carver e Lish continuaram amigos e assinaram contrato para um novo livro, que o escritor deveria entregar em novembro de 1982, para ser lançado no correr de 1983.

Antes disso, porém, em abril de 1983, sairia Fogos, pela editora independente Capra Press. Nesse livro de miscelânea, entre poemas e textos de não ficção, o escritor incluiu algumas histórias que já prenunciavam as transformações por que estava passando. Carver agora descartava a absoluta economia como critério de qualidade e justificava esse redirecionamento ao dizer que: “Indo mais longe naquela direção, eu chegaria a um beco sem saída.” Caso se fizesse um diagrama da trajetória estilística/emocional da literatura de Carver, essa representação deveria estar dividida em três momentos, reproduzindo a forma de uma ampulheta, que começa com a base larga, passa por um severo estreitamento, e, em seguida, se alarga novamente.

Essa última fase é marcada pela valorização e explicitação dos vínculos emocionais que movem as personagens. Talvez o melhor exemplo disso seja o conto “Tanta água tão perto de casa”, que, após ser publicado com cortes no livro de 1981, reaparece aqui com modificações. Nele, quatro amigos vão pescar em um local remoto e lá encontram, boiando na beira do rio, o cadáver de uma jovem assassinada. Voltar imediatamente para avisar a polícia, entretanto, significaria desistir da excursão tão aguardada e, considerando que a garota já estava morta, os amigos decidem deixar o cadáver na água, limitando-se a amarrá-lo pelo pulso a uma das árvores à beira d’água, assim evitando que boiasse para longe e ganhando tempo para terminar a pescaria. Quando voltam e a notícia do assassinato se espalha, a mulher de um deles, que narra a história, não consegue aceitar a frieza do marido e seus amigos perante a tragédia. A jovem assassinada, aos olhos da narradora, de certa forma torna-se, em sua absoluta desproteção, mais viva que os quatro homens, insensíveis e capazes de diluir em racionalizações o respeito devido a um semelhante.

Enquanto Fogos chegava às livrarias, a parceria com Lish para o livro seguinte já funcionava numa outra dinâmica, imposta por Carver. De acordo com ela, a liberdade de intervenção do editor seria restrita e a integridade dos textos, preservada, como fica dito numa carta de agosto de 1982: “Uma coisa é certa: as histórias desse livro serão mais ‘cheias’ que as dos livros anteriores. E isso, pelo amor de Deus, é para o bem. Não sou o mesmo escritor que eu era. […] Entenda que não estou dizendo, ou remotamente pensando, que essas histórias novas, ou feitas de um ano para cá, estão acima de crítica, ou que não precisarão de edição. Não é verdade. Não é verdade em nenhum dos casos. Você está tão próximo de mim, e do meu trabalho, que não estaria mais próximo se fosse meu irmão de sangue. […] Acho que estou querendo dizer que vamos ter de trabalhar muito juntos nesse livro — o livro mais importante de todos para mim”.

Pelo que se depreende das cartas, o novo equilíbrio de forças funcionou pacificamente. Lish foi cerimonioso nas mudanças. Sem dúvida que tamanha adaptação pode ter sido mais tortuosa e contraditória do que as aparências indicam. Sabe-se que, após esse livro, Lish e Carver acabaram se distanciando um do outro. Apesar disso, o esforço do escritor pela manutenção da amizade é evidente. De certa forma, o novo livro, Catedral, lançado em setembro de 1983, ajudaria a desfazer a falsa polêmica autoral sobre o livro anterior. O talento de Carver havia atingido um equilíbrio próprio entre a expansão emocional e a elegância estilística.

Já no conto “Penas”, que abre o livro, o escritor demonstra estar em pleno domínio de seus recursos. O enredo não podia ser mais enxuto: um homem vai com a esposa visitar um colega de trabalho, que também é casado e tem um filho pequeno. Contudo, um estranhamento percorre a narrativa, gerado pela ação conjunta de elementos que a princípio não têm qualquer relação entre si: o animal de estimação dos amigos, um pavão, o aspecto horrível do bebê e o molde da arcada dentária da anfitriã, que fica exposto em cima da televisão. A ligação entre tais elementos não é esclarecida ao longo da história, em mais uma das ambiguidades típicas de Carver, mas eles pairam sobre o diálogo dos casais e ganham força simbólica, gerando uma alta voltagem emocional e tendo um impacto indelével e misterioso no futuro da relação entre o narrador e sua mulher. Aqui, contenção e emoção convivem perfeitamente tanto na estrutura quanto no desenvolvimento.

A crítica mais uma vez adorou o livro, e um escritor especializado em contos vendeu tanto quanto um romancista. Claro que o rótulo de “minimalista” não deixou de aparecer, em algumas resenhas e reportagens, porém agora desautorizado por qualquer leitura mais perspicaz. Catedral acabaria indicado para o Pulitzer e para o National Critics Circle Award.

Mas havia ainda outra diferença entre o livro de 1981 e o de 1983: se as antigas histórias eram sobre alcoólatras, pessoas com problemas financeiros e casamentos arruinados, muitas das novas narrativas falavam de vidas sendo reconstruídas, de pessoas se reencontrando ou da força positiva gerada pelo contato com os outros. A explicitação desses vínculos emocionais positivos, anunciada nos contos de Fogos, é generalizada nesse novo livro, com destaque para “Catedral” e “Uma coisinha boa”, que, não por acaso, Carver dizia serem seus contos preferidos.

Os anos 1980 foram de grande felicidade no plano pessoal e profissional. Em 1983, Carver conquistou definitiva estabilidade financeira ao receber uma bolsa indefinidamente renovável da American Academy and Institute of Arts, que lhe concederia 35 mil dólares anuais por cinco anos, com a única condição de que ele não tivesse nenhum outro vínculo empregatício, o que o levou a pedir demissão da Universidade de Syracuse e dedicar-se apenas à literatura. Em 1984, Carver e Tess mudaram-se para uma casa em Port Angeles, no estado de Washington, onde o escritor retomou sua paixão pela pescaria, enquanto produzia contos e, sobretudo, poemas. Paralelamente, sua obra conquistava reconhecimento internacional.

Em setembro de 1987, contudo, o tabagismo nunca abandonado cobrou seu preço. Vítima de um câncer, Carver teve o pulmão esquerdo quase inteiramente removido. Em março de 1988, a doença reapareceu, agora no cérebro, sendo tratada com radioterapia. Ainda em maio, Carver foi empossado na American Academy and Institute of Arts and Letters, colocando-se para sempre entre os grandes nomes da literatura americana. O câncer no pulmão ressurgiu, porém, selando a sorte do escritor. Já em clima de despedida, Carver e Tess formalizaram sua união no dia 17 de junho. Raymond Carver morreu na manhã do dia 2 de agosto.

Treze anos depois, em 2001, Tess Gallagher publicou Me telefone se precisar, livro que, entre ensaios e textos memorialísticos, trazia contos ainda não incluídos em seus livros ou mesmo inéditos, que aqui aparecem divididos, em obediência à ordem cronológica, nas seções “Primeiros contos” e “Contos recolhidos”.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Carver, Raymond. Will You Be Quiet, Please? Nova York, McGraw-Hill, 1976.

______. What Are We Talking About When We Talk About Love. Nova York, Alfred Knopf, 1981.

______. Fires: Essays, Poems, Stories. Santa Barbara, Capra Press, 1983.

______. Cathedral. Nova York, Vintage Books, 1989.

­­______. Where I’m Calling From. Nova York, Vintage Books, 1989.

______. Short Cuts. Nova York, Vintage Books, 1993.

______. All of Us: The Collected Poems. Nova York, Vintage Books, 2000.

______. Call If You Need Me. Nova York, Vintage Books, 2001.

______. Iniciantes. São Paulo, Companhia das Letras, 2009.

 

 

OUTRAS FONTES, ENTREVISTAS E SITES

 

Stull, William L. “Raymond Carver” in: Dictionary of Literary Biography Yearbook: 1988. Ed. J. M. Brook. Detroit, Gale Research, 1989, pp. 199-213.

Stull, William L. e Carroll, Maureen P. (orgs.) Remembering Ray: A Composite Bio­graphy of Raymond Carver. Santa Barbara, Capra Press, 1993.

Stull, William L. e Carroll, Maureen P. (orgs.) Tell It All. Roma, Leconte, 2005.

Halpert, Sam. Raymond Carver: An Oral Biography. Iowa City, University of Iowa Press, 1995.

Burk Carver, Maryann. What It Used to Be Like: A Portrait of My Marriage to Raymond Carver. Nova York, St. Martin’s Press, 2006.

Bruce Gentry, Marshall e Stull, William L. (orgs.) Conversations with Raymond Carver. Jackson, University Press of Mississippi, 1990.

Macfarlane, Robert. “Back to the source”, in: The Guardian, Londres, 9 de abril de 2005.

Hashimoto, Hiromi. “Trying to Understand Raymond Carver’s Revisions”, in: Tokai English Review, No 5, Tóquio, dezembro de 1995, pp. 113-147.

Trechos da correspondência entre Raymond Carver e Gordon Lish, de 1969 a 1983, in: The New Yorker, 24 de dezembro de 2007.

Grimal, Claude. “L’Histoire ne descend pas des nuages”, in: Europe, 733, Paris, maio de 1990, pp. 72-79.

Pozzo, Silvia Del. “Sono quasi il loro papa”, in: Panorama, Milão, março de 1986, p. 95.

 

http://www.carversite.com/

 

http://www.whitman.edu/english/carver/carver.cgi

 

 

 

 


1- Rodrigo Lacerda é escritor de ficção. Um de seus contos, “Librero Nuevo”, foi incluído na antologia Di algo para romper este silencio, feita em homenagem a Raymond Carver (org. Guillermo Samperio. México: Lectorum, 2005). Suas traduções das poesias de Raymond Carver estão publicadas nas revistas: Babel — Poesia, tradução e crítica (no 5, jan.-dez., 2002); Coyote (no 14, verão, 2006); e Serrote (no 2, julho, 2009).