Cadê todo mundo?

 

 

 

 

 

 

 

Já vi muita coisa. Eu estava indo para a casa da minha mãe passar umas noites lá, mas, assim que cheguei no alto da escadinha da varanda, olhei e vi que ela estava no sofá beijando um homem. Era verão, a porta estava aberta e a televisão colorida estava ligada.

Minha mãe tem sessenta e cinco anos e é uma mulher solitária. Ela participa de um clube de solteiras. Mesmo assim, mesmo sabendo de tudo isso, foi duro. Fiquei parado no alto da escada com a mão no corrimão vendo o homem puxar minha mãe mais para perto dele a fim de beijá-la. Era domingo, umas cinco da tarde. O pessoal do prédio de apartamentos estava na piscina. Desci a escada e fui para o meu carro.

Aconteceu um bocado de coisas desde aquela tarde e, de modo geral, agora está tudo bem. Mas naquela época em que minha mãe andava com homens que ela mal conhecia eu não tinha emprego, bebia e estava doido. Meus filhos estavam doidos e minha mulher estava doida, andava tendo uma “coisa” com um engenheiro aeroespacial desempregado que havia conhecido nos Alcoólicos Anônimos. Ele também era doido. Seu nome era Ross e tinha cinco ou seis filhos. Mancava por causa de um tiro que levou da primeira mulher. Naquela época ele não tinha mais mulher; queria a minha mulher. Não sei o que todos nós tínhamos na cabeça naquela época. A segunda mulher veio e foi embora, mas foi a primeira mulher que deu um tiro nele, na coxa, anos antes, e por causa disso ele mancava, e era ela que o mandava para o tribunal, ou para a cadeia, a cada seis meses mais ou menos por não pagar a pensão. Agora estou de bem com ele. Mas naquela época era diferente. Mais de uma vez naqueles dias cheguei a falar em armas. Eu falava para a minha mulher, berrava mesmo: “Vou matar esse cara!”. Mas nunca aconteceu nada. A vida ia seguindo. Eu nunca encontrava o sujeito, se bem que às vezes a gente se falava por telefone. Uma ocasião, achei umas fotos dele quando fui remexer na bolsa da minha mulher. Era um cara pequeno, não muito pequeno, tinha bigode e estava com uma camisa de malha listrada, à espera de uma criança que ia descer de um escorregador. Na outra foto, ele estava de pé na frente de uma casa — a minha casa? Não dava para saber — de braços cruzados, bem-vestido, de gravata. Ross, seu filho da puta, espero que você esteja bem hoje. Espero que as coisas também estejam melhores para você.

Na última vez que ele foi para a cadeia, um mês antes daquele domingo, eu soube pela minha filha que a mãe dela havia pagado a fiança dele. Minha filha Kate, que tinha quinze anos, gostou daquilo tanto quanto eu. Não que ela tivesse alguma lealdade a mim nessa questão — ela não tinha nenhuma lealdade a mim nem à sua mãe em nada, e só estava louca para ver nós dois pelas costas. Não, a questão é que havia um sério problema de fluxo de caixa na casa e, se algum dinheiro fosse para o Ross, haveria menos ainda para aquilo de que ela precisava. Por isso o Ross agora estava na sua lista negra. Além do mais, ela não gostava dos filhos dele, Kate me contou, mas antes disso ela me disse uma vez que de forma geral até que o Ross era bacana, inclusive engraçado e interessante quando não estava bebendo. Uma vez ele até leu o futuro na mão dela.

Ross passava o tempo consertando coisas, agora que não podia mais arrumar um emprego na indústria aeroespacial. Mas eu tinha visto a casa dele por fora; e o lugar parecia um depósito de lixo, com tudo quanto é tipo de aparelhos e equipamentos antigos e de todas as marcas, que nunca mais iam lavar, cozinhar nem tocar nada — tudo simplesmente ficava jogado na garagem aberta, na entrada de carro da casa e também no jardim. Ele também guardava uns carros bem ferrados que ele gostava de ficar remendando. Na primeira fase do caso deles, minha mulher me disse que ele “colecionava carros antigos”. Foram essas as palavras dela. Eu tinha visto alguns automóveis dele estacionados na frente da casa uma vez que passei por lá de carro tentando ver o que desse para ver. Carros velhos e amassados das décadas de 50 e 60 com o estofamento dos bancos rasgado. Não passavam de lixo. Eu sabia. Eu tinha o telefone dele. Tínhamos mais coisas em comum do que apenas dirigir carros velhos e aferrar-se à mesma mulher para conseguir suportar a vida. De todo modo, conserta-tudo ou não, o fato é que ele não conseguiu dar um jeito no carro da minha mulher nem consertar o nosso televisor quando ele quebrou e ficamos sem imagem. A gente tinha o som, mas nada de imagem. Se quiséssemos ver o noticiário, precisávamos nos sentar em volta da tela à noite e ficar ouvindo o som do aparelho. Eu bebia e fazia piadas para meus filhos sobre o Sr. Conserta-Tudo. Até hoje não sei se minha mulher acreditava ou não naquele papo, na história de carros antigos e tudo. Mas ela gostava dele. Acho até que o amava; isso está bem claro agora.

Eles se conheceram quando Cynthia estava tentando se manter sóbria e ia às reuniões três ou quatro vezes por semana. Eu já havia entrado e saído dos Alcoólicos Anônimos por vários meses, mas quando Cynthia conheceu Ross eu estava fora das reuniões, e todo dia eu bebia um litro de qualquer coisa em que conseguisse pôr a mão. Mas, quando ouvi Cynthia falar sobre mim com alguém no telefone, eu já havia sido apresentado aos Alcoólicos Anônimos e sabia muito bem aonde ir se quisesse ajuda. Ross tinha frequentado os Alcoólicos Anônimos e depois voltou a beber. Acho que Cynthia tinha a impressão de que talvez houvesse mais esperança para ele do que para mim, e assim ia às reuniões a fim de se manter sóbria, depois foi cozinhar para ele ou limpar sua casa. Nesse aspecto, os filhos dele não ajudavam nem um pouco. Ninguém levantava um dedo na casa dele, a não ser Cynthia, quando estava lá. Quanto menos os moleques punham a mão na massa, mais o Ross gostava deles. Era esquisito. Comigo era o contrário. Naquela época, eu odiava meus filhos. Eu estava no sofá com um copo de vodca e suco de toranja e aí um deles chegava da escola e batia a porta com força. Uma tarde eu berrei e quebrei o maior pau com o meu filho. Cynthia precisou intervir quando ameacei fazer o garoto em pedacinhos. Falei que ia matar. Falei: “Vou matar você e não vou nem piscar o olho”.

Loucura.

Aliás, as crianças, Katy e Mike estavam felizes da vida por poderem tirar vantagem daquela situação enrolada. Pareciam ganhar vida com as ameaças e intimidações que lançavam um sobre o outro e sobre nós — violência e desespero, a bagunça tradicional. Agora, quando penso no assunto, mesmo a essa distância, meu coração acaba se voltando contra eles. Lembro que uns anos antes — eu ainda não tinha voltado a beber em período integral — li uma cena extraordinária num romance de um italiano chamado Italo Svevo. O pai do narrador estava morrendo e a família tinha se reunido em volta da cama, chorando e esperando que o velho morresse, quando ele abriu os olhos e fitou cada um deles pela última vez. Quando seu olhar pousou no narrador, ele de repente se agitou e alguma coisa surgiu em seus olhos; e com um último ímpeto de energia ele se ergueu, se jogou para o outro lado da cama e deu um tapa na cara do filho com toda a força que tinha. Depois caiu na cama e morreu. Naquela época, muitas vezes eu imaginava a minha própria cena no leito de morte e me via fazendo a mesma coisa — só que eu esperava ter forças para dar um tapa nos meus dois filhos, e minhas últimas palavras para eles seriam aquelas que só um homem à beira da morte teria coragem de pronunciar.

Mas eles viam loucura em tudo quanto é canto, e isso servia bem aos seus propósitos, eu estava convencido. Eles até engordavam com isso. Gostavam de ter as rédeas nas mãos, ficar por cima, enquanto a gente fazia o maior estrago e deixava que eles tirassem proveito da nossa culpa. Podiam ficar incomodados de vez em quando, mas sabiam levar a situação à maneira deles. Também não ficavam embaraçados nem chateados com nenhuma das atividades que aconteciam em casa. Ao contrário. Isso lhes dava algum assunto para falar com os amigos. Eu ouvi os dois regalando seus colegas com as histórias mais medonhas, uivando de tanto rir enquanto derramavam os detalhes sórdidos do que estava acontecendo comigo e com a mãe deles. Exceto por serem economicamente dependentes de Cynthia, que não sei como ainda conseguia se segurar num emprego de professora e ter um salário mensal, eles comandavam o espetáculo de ponta a ponta. E era isso mesmo — um espetáculo.

Uma vez Mike trancou a casa e deixou a mãe do lado de fora depois de ela ter passado a noite inteira na casa do Ross... Não sei onde eu estava naquela noite, na certa na casa da minha mãe. Às vezes eu dormia lá. Jantava com ela e ela me contava como vivia preocupada conosco; depois a gente via televisão e tentava conversar sobre alguma outra coisa, tentava travar uma conversa normal sobre alguma coisa que não fosse a situação da minha família. Ela preparava uma cama para mim no sofá — o mesmo sofá onde fazia amor, eu imaginava, mas eu dormia ali de todo jeito e me sentia grato por isso. Certa manhã, Cynthia voltou para casa às sete horas, a fim de se vestir e ir para a escola onde trabalhava, e descobriu que o Mike tinha trancado todas as portas e janelas por dentro para não deixar a mãe entrar em casa. Ela ficou parada junto à janela dele, implorando que a deixasse entrar — por favor, por favor, ela precisava trocar de roupa e ir para a escola, porque se perdesse o emprego o que seria deles? Para onde ele iria? Para onde iríamos todos nós? Ele disse: “Você não mora mais aqui. Por que vou deixar você entrar?”. Foi o que ele disse a ela, parada junto à janela dele, a cara dele toda tomada pela raiva. (Ela me contou isso mais tarde quando estava embriagada e eu sóbrio, eu segurava as mãos dela e a deixava falar à vontade.) “Você não mora aqui”, disse ele.

“Por favor, por favor, por favor, Mike”, implorava ela. “Me deixe entrar.”

Ele deixou a mãe entrar e disse palavrões para ela. Sem mais nem menos, esmurrou com força os ombros da mãe várias vezes — pá, pá, pá —, depois deu um murro no alto da cabeça dela e aí uma surra geral. No final ela conseguiu trocar de roupa, ajeitar o rosto e ir depressa para a escola.

Não faz muito tempo que tudo isso aconteceu, uns três anos mais ou menos. Naquela época não era fácil.

Deixei minha mãe com o tal sujeito no sofá e fiquei rodando de carro por um tempo, sem vontade de ir para casa e também sem vontade de ficar sentado num bar naquele dia.

Às vezes eu e Cynthia conversávamos sobre essas coisas — “uma avaliação da situação”, a gente chamava assim. Mas de vez em quando, em raras ocasiões, conversávamos um pouco sobre coisas que não tinham a menor relação com a nossa situação. Uma tarde a gente estava na sala e ela disse: “Quando eu fiquei grávida do Mike você me carregou até o banheiro quando eu estava tão enjoada e grávida que nem conseguia sair da cama. Você me carregou. Nunca mais ninguém vai fazer uma coisa dessa, ninguém mais podia me amar tanto assim. A gente viveu isso, não importa o resto. Nós nos amamos como ninguém mais podia se amar, nem vai se amar outra vez, nunca”.

Olhamos um para o outro. Talvez nossas mãos tenham se tocado, não lembro. Então me lembrei do meio litro de uísque, ou de vodca, ou de gim, ou de scotch, ou de tequila, que eu tinha escondido debaixo da mesma almofada do sofá na qual estávamos recostados e comecei a desejar muito que ela se levantasse logo e fosse dar uma volta — fosse para a cozinha, para o banheiro ou fosse limpar a garagem.

“Talvez você pudesse fazer um cafezinho para nós”, falei. “Um bule de café até que ia bem.”

“Não quer comer alguma coisa? Posso fazer uma sopa.”

“Talvez eu até coma alguma coisa, mas quero mesmo é beber uma xícara de café.”

Ela foi para a cozinha. Esperei até ouvir a água começar a correr. Aí peguei a garrafa embaixo da almofada, desatarraxei a tampa e bebi.

Nunca contei essas coisas nos Alcoólicos Anônimos. Nunca fui de falar muito nas reuniões. Eu “passava”, como eles chamavam quando chegava a sua vez e você não dizia nada a não ser “Esta noite eu vou passar, obrigado”. Mas eu escutava, balançava a cabeça e ria demonstrando apoio às histórias medonhas que eu ouvia. Em geral eu estava embriagado quando ia às reuniões. A gente se assusta e precisa de alguma outra coisa além de biscoitos e café instantâneo.

Mas aquelas conversas sobre amor ou o passado eram raras. Se a gente conversava, era para tratar de negócios, sobrevivência, questões críticas. Dinheiro. De onde é que vai vir o dinheiro? O telefone já era, a luz e o gás estavam por pouco. E o que seria da Katy? Ela precisa de roupas. Os seus estudos. O namorado dela que pertence a um bando de motoqueiros. O Mike. O que vai acontecer com o Mike? O que vai acontecer com todos nós? “Meu Deus”, dizia ela. Mas Deus não estava nem aí. Tinha lavado as mãos para o nosso caso.

Eu queria que Mike entrasse para o Exército, a Marinha ou a guarda costeira. Ele era impossível. Uma personalidade perigosa. Até o Ross achava que o Exército seria uma boa para ele, Cynthia me contou, e ela não gostou nem um pouco que ele tivesse dito isso. Mas eu fiquei satisfeito de saber que Ross e eu concordávamos naquela questão. Ross subiu um ponto na minha avaliação. Mas isso enfureceu Cynthia porque, por pior que fosse ter de viver com o Mike, apesar do lado violento dele, ela achava que aquilo era só uma fase que logo ia passar. Ela não queria saber do filho no Exército. Mas Ross foi dizer à Cynthia que o Mike era talhado para servir o Exército, onde ele iria aprender a respeitar os outros e a ter boas maneiras. Ross falou isso para ela depois de uma briga de empurrões e safanões na entrada de carros da casa dele, de manhã bem cedinho, quando Mike atirou Ross na calçada.

Ross amava Cynthia, mas também tinha uma garota de vinte e dois anos chamada Beverly que estava grávida de um filho dele, embora Ross jurasse a Cynthia que amava a ela, e não Beverly. Os dois nem dormiam mais juntos, ele disse para Cynthia, mas Beverly estava grávida de um filho dele e ele amava todos os seus filhos, mesmo os que ainda não tinham nascido, e não podia dar um pé na bunda da mulher assim sem mais nem menos, podia? Ele chorou quando contou tudo isso para Cynthia. Estava embriagado. (Sempre tinha alguém embriagado naquela época.) Imagino bem a cena.

Ross havia se formado no Instituto Politécnico da Califórnia e foi direto trabalhar na Nasa, numa operação em Mountain View. Trabalhou lá por dez anos, até que o mundo desabou em cima dele. Nunca estive com ele, como já disse, mas nos falamos pelo telefone diversas vezes, sobre isso e aquilo. Uma vez liguei para ele quando eu estava embriagado e eu e Cynthia discutíamos várias coisas. Um dos filhos dele atendeu o telefone e quando Ross entrou na linha perguntei se, no caso de eu tirar meu time de campo (eu não tinha a menor intenção de tirar meu time de campo, claro; era só uma provocação), ele pretendia bancar Cynthia e nossos filhos. Ele disse que estava trinchando uma carne assada, foi o que ele disse, e que eles estavam sentando à mesa para começar a jantar, ele e os filhos. Será que ele podia telefonar mais tarde? Desliguei. Quando ele ligou, mais ou menos uma hora depois, eu já tinha esquecido o telefonema anterior. Cynthia atendeu o telefone e disse: “Sim”, e depois “Sim” outra vez, e aí entendi que era o Ross e que ele estava perguntando se eu estava embriagado. Agarrei o telefone. “E então, você vai bancar minha mulher e meus filhos ou não vai?” Ele disse que lamentava muito a sua parte naquela história toda e que não, não achava que pudesse bancar todos eles. “Então a sua resposta é Não, você não pode bancar a vida deles”, falei, e olhei para Cynthia como se isso pusesse um ponto-final no assunto. Ele disse: “Sim, a resposta é não”. Mas Cynthia não piscou um olho sequer. Mais tarde me dei conta de que os dois já tinham conversado tudo a respeito daquele assunto, por isso não houve surpresa. Ela já sabia.

Ele tinha trinta e poucos anos quando começou a ir para o buraco. Sempre que aparecia uma oportunidade, eu avacalhava o Ross. Chamava-o de “fuinha” por causa da sua fotografia. “É com isso que o namorado da sua mãe se parece”, eu dizia aos meus filhos se eles estivessem por perto e estivéssemos conversando. “Parece uma fuinha.” Nós ríamos. Ou então “Senhor Conserta-Tudo”. Esse era meu apelido predileto para ele. Que Deus abençoe e proteja você, Ross. Não tenho nada contra você agora. Mas, naquela época em que eu o chamava de fuinha ou de Senhor Conserta-Tudo e ameaçava sua vida, ele era uma espécie de herói derrotado para meus filhos e também para Cynthia, imagino, porque tinha ajudado a colocar os homens na lua. Ele havia trabalhado, toda hora vinham me dizer isso, no projeto dos foguetes para a lua e era amigo íntimo de Buzz Aldren e Neil Armstrong. Ele contou a Cynthia e Cynthia contou aos filhos, que depois me contaram, que quando os astronautas viessem à cidade ele iria nos apresentar a eles. Mas os astronautas nunca vieram à cidade ou, se vieram, se esqueceram de procurar Ross. Pouco depois das sondas lunares, a roda da fortuna girou e Ross passou a beber mais. Passou a faltar no trabalho. Em algum momento dessa época, começaram os problemas com sua primeira mulher. No final ele já estava levando bebida para o trabalho numa garrafa térmica. Montaram lá um aparato supermoderno, eu fui ver — cafeterias chiques, salas de jantar para executivos, um monte de coisas assim, máquinas de café expresso Mr. Coffee em todos os escritórios. Mas Ross levava sua garrafa térmica para o trabalho e depois de um tempo o pessoal começou a perceber e a falar. Ele foi demitido, ou então pediu demissão — ninguém jamais conseguia me dar uma resposta objetiva quando eu perguntava. Ele continuou bebendo, claro. É isso que a gente faz. Depois começou a trabalhar em aparelhos detonados, a consertar televisores e a fazer reparos em automóveis. Interessava-se por astrologia, aura, I Ching — essa história toda. Não duvido que fosse um cara bem inteligente, interessante e diferente, como a maioria dos nossos ex-amigos. Falei para Cynthia que eu tinha certeza de que ela não se interessaria por ele (eu não conseguia de jeito nenhum usar a palavra “amor” para falar daquele relacionamento) se no fundo ele não fosse, basicamente, um homem bom. “Um de nós”, era assim que eu o classificava, tentando ser generoso. Ele não era um homem mau ou nocivo, o Ross. “Ninguém é nocivo”, falei uma vez para Cynthia, quando discutíamos o meu caso.

Meu pai morreu dormindo, bêbado, oito anos atrás. Era uma noite de sexta-feira e ele tinha cinquenta e quatro anos. Chegou em casa do seu trabalho na serraria, tirou umas salsichas do congelador para o seu café da manhã do dia seguinte e sentou-se à mesa da cozinha, onde abriu uma garrafa de burbom Four Roses. Andava de muito bom humor naquela ocasião, feliz por voltar a trabalhar depois de ter ficado três ou quatro anos sem emprego por causa de uma septicemia e depois por alguma outra coisa que o obrigou a fazer um tratamento com choques elétricos. (Eu estava casado e morava em outra cidade naquela época. Eu tinha os filhos e o emprego, problemas suficientes e assim não podia acompanhar muito bem a vida dele.) Naquela noite ele foi para a sala com sua garrafa, um balde de cubos de gelo e um copo, ficou bebendo e vendo televisão até minha mãe voltar do seu trabalho numa cafeteria.

Os dois trocaram algumas palavras sobre o uísque. Ela não era de beber muito. Depois que eu cresci, só vi minha mãe beber no Dia de Ação de Graças, no Natal e no Ano-Novo — batida com ovos, leite e açúcar ou rum com manteiga, e nunca bebia muito. A única vez em que ela acabou bebendo demais, anos antes (eu soube disso pelo meu pai, que ria quando contava a história), eles foram a um barzinho nos arredores de Eureka e ela tomou várias doses de uísque com limão e açúcar. Quando os dois entraram no carro para ir embora, ela começou a passar mal e teve que abrir a porta. De algum jeito a dentadura dela saltou da boca, o carro andou um pouco para a frente e um pneu passou por cima da dentadura. Depois disso ela nunca mais bebeu, a não ser nos dias de festa em casa, e mesmo assim nunca bebia demais.

Meu pai continuou bebendo naquela noite de sexta-feira e tentou ignorar minha mãe, que, sentada na cozinha, fumava e tentava escrever uma carta para sua irmã em Little Rock. Por fim ele se levantou e foi dormir. Minha mãe foi para a cama não muito tempo depois, quando já teve certeza de que ele estava dormindo. Depois contou que não percebeu nada fora do comum a não ser talvez que o ronco dele parecia mais pesado e mais profundo, e também que ela não conseguia fazê-lo virar para o lado. Mas ela dormiu. Acordou quando os músculos do esfíncter e da bexiga do meu pai se soltaram. Foi ao amanhecer. Os passarinhos cantavam. Meu pai ainda estava deitado de costas, de olhos fechados e boca aberta. Minha mãe olhou para ele e gritou seu nome.

Continuei rodando de carro. Agora já estava escuro. Segui até minha casa, todas as luzes acesas, mas o carro de Cynthia não estava na entrada. Fui a um bar onde eu às vezes ficava bebendo e telefonei para casa. Katy atendeu e disse que sua mãe não estava, e onde é que eu estava? Ela precisava de cinco dólares. Gritei qualquer coisa e desliguei. Depois liguei a cobrar para uma mulher a mil e trezentos quilômetros de distância que fazia meses que eu não via, uma mulher boa que, na última vez que eu tinha visto, disse que ia rezar por mim.

Ela aceitou a ligação a cobrar. Perguntou onde eu estava. Perguntou como eu estava. “Você vai bem?”, disse ela.

Conversamos. Perguntei sobre o marido dela. Tinha sido meu amigo e agora estava morando longe dela e dos filhos.

“Ele continua em Portland”, disse ela. “Como foi que tudo isso aconteceu com a gente?”, perguntou ela. “No início a gente vivia bem.” Ficamos conversando mais um tempo; depois ela disse que ainda me amava e que ia continuar rezando por mim.

“Reze por mim”, falei. “Sim.” Depois nos despedimos e desligamos o telefone.

Mais tarde telefonei de novo para casa, mas dessa vez ninguém atendeu. Disquei o número da minha mãe. Ela atendeu o telefone no primeiro toque, com uma voz cautelosa, como se já estivesse à espera de alguma encrenca.

“Sou eu”, falei. “Desculpe estar ligando.”

“Não, não, querido, eu estava acordada”, disse ela. “Onde você está? Algum problema? Pensei que você ia vir aqui hoje. Esperei você. Você não está em casa?”

“Não estou em casa”, falei. “Acabei de ligar para lá.”

“O Velho Ken passou por aqui hoje”, prosseguiu ela. “Aquele velho sacana. Ele veio à tarde. Fazia um mês que eu não o via e aí ele aparece de repente, aquele velho. Não gosto dele. Só quer saber de ficar falando de si mesmo e de contar vantagem, contar como vivia em Guam, dizer que tinha três namoradas ao mesmo tempo e que viajou para tudo quanto é lugar. Não passa de um velho metido a besta, isso é que ele é. Eu o conheci naquele clube de dança de que falei para você, mas não gosto dele.”

“Tem algum problema se eu for para aí?”, perguntei.

“Querido, por que você não vem? Vou preparar alguma coisa para a gente comer. Estou com fome. Desde a tarde que não como nada. O Velho Ken trouxe umas comidas do KFC hoje à tarde. Venha que preparo uns ovos mexidos para nós. Quer que eu pegue você aí? Querido, você está bem?”

Fui de carro até a casa dela. Minha mãe me beijou quando entrei. Virei o rosto. Senti ódio dela por causa do cheiro de vodca. A televisão estava ligada.

“Lave as mãos”, disse ela enquanto me observava. “Está tudo pronto.”

Depois ela arrumou minha cama no sofá. Fui ao banheiro. Ela guardava um pijama do papai lá. Peguei o pijama na gaveta, olhei para ele e comecei a trocar de roupa. Quando saí ela estava na cozinha. Arrumei o travesseiro e me deitei. Ela terminou o que estava fazendo, apagou a luz da cozinha e sentou-se na ponta do sofá.

“Querido, não queria ser eu a contar isso para você”, disse ela. “Parte meu coração ter de dizer isso, mas até seus filhos já sabem, e foram eles que me contaram. Nós conversamos sobre o assunto. Mas a Cynthia está saindo com outro homem.”

“Não tem problema”, eu disse. “Eu já sabia”, falei e olhei para a televisão. “O nome dele é Ross e é um alcoólatra. Como eu.”

“Querido, você precisa fazer alguma coisa para se cuidar”, disse ela.

“Eu sei”, falei. Continuei olhando para a televisão.

Ela se inclinou para mim e me deu um abraço. Me abraçou durante um minuto. Depois me largou e enxugou os olhos. “Vou acordar você de manhã”, disse ela.

“Não tenho muito o que fazer amanhã. Posso ficar dormindo mais um tempo depois que você sair.” Pensei: depois que você levantar, depois que você for ao banheiro e trocar de roupa, aí eu vou para a sua cama, me deito lá, cochilo, enquanto ouço seu rádio ligado na cozinha, dando as notícias e a previsão do tempo.

“Querido, ando muito preocupada com você.”

“Não se preocupe”, falei. Balancei a cabeça.

“Agora você tem que descansar um pouco”, disse ela. “Precisa dormir.”

“Vou dormir. Estou morto de sono.”

“Fique vendo televisão o quanto quiser”, disse ela.

Assenti com a cabeça.

Ela se inclinou e me beijou. Seus lábios pareciam machucados e inchados. Puxou a manta em cima de mim. Depois foi para o quarto. Deixou a porta aberta e um minuto depois eu já podia ouvir seu ronco.

Fiquei deitado olhando para a televisão. Havia imagens de homens de uniforme na tela, um rumor baixo, depois tanques e um homem usando um lança-chamas. Eu não conseguia ouvir o som, mas não queria me levantar. Fiquei olhando até sentir os olhos se fecharem. Mas acordei assustado, o pijama molhado de suor. Uma luz enevoada enchia a sala. Um rugido vinha na minha direção. A sala clamava. Continuei deitado. Não me mexi.