Sábado à tarde ela foi de carro até a padaria no centro comercial. Depois de passar os olhos por um álbum de folhas soltas com fotos de bolos coladas com fita adesiva, ela pediu o de chocolate, o predileto do filho. O bolo que ela escolheu era decorado com uma nave espacial e uma plataforma de decolagem, sob uma chuva de estrelas brancas numa extremidade do bolo e um planeta feito com glacê vermelho na outra ponta. O nome dele, SCOTTY, seria escrito com letras verdes embaixo do planeta. O padeiro, um homem mais velho e de pescoço grosso, escutou sem dizer nada quando ela lhe disse que Scotty ia fazer oito anos na segunda-feira seguinte. O padeiro usava um avental branco que mais parecia um guarda-pó. As alças passavam por baixo dos braços, davam a volta nas costas e depois voltavam de novo para a frente, onde ficavam amarradas embaixo da cintura larga. Ele esfregou as mãos na frente do avental e escutou a explicação. Mantinha os olhos abaixados para as fotos e deixava-a falar. Ela que falasse o quanto quisesse. Havia acabado de chegar ao trabalho e ia ficar lá a noite inteira, assando, e não tinha a menor pressa.
Ela deu ao padeiro seu nome, Ann Weiss, e o número de seu telefone. O bolo ia ficar pronto na segunda-feira de manhã, bem fresquinho, saído do forno, com tempo de sobra para a festa de Scotty à tarde. O padeiro não era um sujeito alegre. Não houve nenhum comentário bem-humorado entre os dois, só a troca de palavras indispensáveis, a informação necessária. Ele a fez se sentir desconfortável, e ela não gostou disso. Enquanto ele se debruçava no balcão, lápis na mão, a mulher observava suas feições rudes e se perguntava se ele já teria feito alguma outra coisa na vida além de ser padeiro. Ela era mãe, tinha trinta e três anos, e lhe parecia que todo mundo, sobretudo alguém da idade do padeiro — homem velho o bastante para ser seu pai —, devia ter tido filhos que haviam passado por aquela fase especial de bolos e de festas de aniversário. Todo mundo passa por isso, pensava. Mas o homem foi frio com ela, não chegou a ser rude, só frio. Ela desistiu de criar um clima simpático. Olhou para o fundo da padaria e viu uma mesa comprida de madeira com fôrmas de alumínio empilhadas na ponta e, ao lado da mesa, um recipiente de metal cheio de prateleiras vazias. Havia um forno imenso. Um rádio tocava música country.
O padeiro terminou de anotar as informações do pedido num cartão especial e fechou o livreto com fotos de bolos. Olhou para ela e disse: “Segunda-feira de manhã”. Ela agradeceu e foi de carro para casa.
Na segunda-feira de manhã, o menino que fazia aniversário estava indo a pé para a escola com um amigo. Passavam um saquinho de batata frita de um para o outro, e o menino que fazia aniversário estava tentando descobrir o que o amigo ia lhe dar de presente à tarde. Sem perceber, o menino que fazia aniversário pisou fora do meio-fio numa esquina e, no mesmo instante, foi atingido por um carro. Caiu de lado com a cabeça na sarjeta e as pernas estendidas na rua. Ficou de olhos fechados, mas suas pernas começaram a se mexer para a frente e para trás, como se ele estivesse tentando subir em alguma coisa. Seu amigo deixou cair as batatas fritas e começou a chorar. O carro ainda avançou por uns trinta metros e depois parou no meio da rua. Um homem no banco do motorista olhou para trás, por cima do ombro. Esperou o menino ficar de pé, meio trôpego. O menino bambeou um pouco. Parecia zonzo, mas bem. O motorista ligou o carro e foi embora.
O menino que fazia aniversário não chorou, mas também não tinha nada para dizer sobre o caso. Não respondeu quando o amigo perguntou qual era a sensação de ser atingido por um carro. Ele foi para casa e seu amigo foi para a escola. Mas depois que o garoto que fazia aniversário entrou e contou à mãe o que tinha acontecido — a mãe sentada ao lado dele no sofá, segurando as mãos de Scotty no colo e dizendo “Scotty, meu querido, tem certeza de que está bem, meu anjo?”, achando que, pelo sim, pelo não, ia chamar o médico — de repente ele se deitou de costas no sofá, fechou os olhos e amoleceu todo. Quando a mãe viu que não conseguia acordá-lo, correu ao telefone e ligou para o marido no trabalho. Howard disse que ela ficasse calma, ficasse calma, depois chamou uma ambulância para a criança e foi para o hospital.
Claro que a festa de aniversário foi cancelada. O garoto estava no hospital com uma leve concussão e em estado de choque. Teve vômitos e um pouco de líquido tinha ido para os pulmões, e precisaram fazer uma punção do líquido naquela mesma tarde. Agora, ele parecia apenas num estado profundo de sono e nada mais — mas não em estado de coma, enfatizou o dr. Francis: ele não está em coma, disse, quando percebeu o alarme nos olhos dos pais. Às onze da noite daquela segunda-feira, quando o garoto parecia estar descansando bem confortavelmente depois de uma série de radiografias e exames de laboratório e parecia que agora era só questão de ele acordar e voltar ao normal, Howard deixou o hospital. Ele e Ann estavam no hospital desde aquela tarde e ele ia para casa tomar banho e trocar de roupa. “Volto daqui a uma hora”, disse. Ann assentiu com a cabeça. “Está bem”, respondeu. “Vou ficar aqui.” Ele deu um beijo na testa de sua mulher e os dois tocaram-se as mãos. Ann ficou sentada numa cadeira ao lado da cama, olhando para o filho. Continuava esperando que ele acordasse e melhorasse. Aí poderia começar a relaxar.
Howard foi de carro para casa. Seguiu pelas ruas escuras e molhadas mais depressa do que deveria, depois se deu conta disso e diminuiu a velocidade. Até aquele momento, para sua satisfação, sua vida tinha corrido tranquila — faculdade, casamento, mais um ano de faculdade para uma pós-graduação em administração, uma participação como sócio minoritário numa empresa de investimentos. Tornou-se pai. Ficou feliz e, até ali, tinha tido sorte — sabia disso. Seus pais ainda estavam vivos, seus irmãos e sua irmã estavam com a vida bem-arrumada, seus amigos da faculdade haviam se espalhado para ocupar seus lugares no mundo. Até então, ele tinha se mantido a salvo de toda dor verdadeira, daquelas forças que ele sabia que existiam e que podiam aleijar ou arrasar um homem, se a sorte piorasse e as coisas de repente começassem a dar errado. Subiu pela entrada da garagem e parou. A perna esquerda tinha começado a tremer. Ele ficou um tempo sentado no carro e tentou enfrentar a situação de modo racional. Scotty fora atingido por um carro e estava no hospital, mas ia ficar bem. Fechou os olhos e passou a mão pelo rosto. Saiu do carro e foi até a porta da frente. O cachorro estava latindo dentro de casa. O telefone tocava sem parar enquanto ele destrancava a porta e tateava a parede em busca do interruptor de luz. Não devia ter saído do hospital, não devia, ele se maldizia por aquilo. Pegou o fone e disse: “Acabei de entrar!”.
“Tem um bolo aqui que ninguém veio buscar”, disse a voz do outro lado da linha.
“O que é que você está dizendo?”, perguntou Howard.
“Um bolo”, disse a voz. “Um bolo de dezesseis dólares.”
Howard segurava o fone colado à orelha, tentando entender. “Não sei de bolo nenhum”, disse. “Meu Deus, do que você está falando?”
“Não me venha com esse papo”, disse a voz.
Howard desligou o telefone. Foi até a cozinha e se serviu de uma dose de uísque. Telefonou para o hospital, mas o estado de Scotty continuava na mesma; o menino ainda dormia e não tinha havido nenhuma mudança por lá. Enquanto a água enchia a banheira, Howard passou espuma no rosto e fez a barba. Ele tinha acabado de se esticar na banheira e fechar os olhos quando o telefone tocou de novo. Levantou-se depressa, agarrou uma toalha e correu pela casa, repetindo “Idiota, idiota”, por ter saído do hospital. Mas, quando atendeu o telefone e gritou “Alô!”, não veio nenhum som do outro lado. Em seguida, a pessoa desligou.
Ele voltou ao hospital pouco depois da meia-noite. Ann ainda estava sentada na cadeira ao lado da cama. Ergueu os olhos para Howard e depois voltou a olhar o filho. Os olhos do garoto continuavam fechados, sua cabeça ainda estava envolta em ataduras. Sua respiração era serena e regular. De uma armação metálica acima da cama, pendia um frasco de glicose com um tubo que ia do frasco até o braço do menino.
“Como é que ele está?”, perguntou Howard. “O que é tudo isso?”, apontou para a glicose e o tubo.
“Ordens do doutor Francis”, respondeu ela. “Scotty precisa se alimentar. O doutor Francis disse que ele precisa manter as energias. Por que ele não acorda, Howard?”, disse ela. “Não entendo, se afinal ele está bem.”
Howard pôs a mão atrás da cabeça dela e passou os dedos por seu cabelo. “Ele vai melhorar, meu bem. Vai acordar daqui a pouco. O doutor Francis sabe das coisas.”
Depois de um tempo, ele disse: “Talvez fosse melhor você ir para casa descansar um pouco. Eu fico aqui. Mas não dê atenção a um chato que está ligando para lá toda hora. Desligue logo na cara dele”.
“Quem é que está telefonando?”, ela perguntou.
“Não sei, é alguém que não tem nada melhor para fazer do que ficar telefonando para os outros. Agora, vá para casa.”
Ela balançou a cabeça. “Não”, disse. “Eu estou bem.”
“Sério”, insistiu Howard. “Vá um pouco para casa, se quiser, depois você volta e fica no meu lugar de manhã. Vou ficar bem aqui. Lembra o que o doutor Francis disse? Ele disse que o Scotty ia ficar bem logo. A gente não tem motivo para se preocupar. Agora ele está dormindo, só isso, mais nada.”
Uma enfermeira abriu a porta. Cumprimentou os dois com um aceno de cabeça enquanto avançava para a beirada da cama. Tirou o braço esquerdo debaixo das cobertas e pôs os dedos no pulso, encontrou a pulsação e depois consultou o relógio. Dali a pouco, pôs o braço debaixo das cobertas e foi para o pé da cama, onde escreveu alguma coisa numa prancheta presa à cama.
“Como ele está?”, perguntou Ann. A mão de Howard pesava em seu ombro. Ann sentia a pressão dos dedos do marido.
“O estado dele é estável”, disse a enfermeira. Em seguida falou: “O doutor virá daqui a pouco. Ele já está no hospital. Está visitando os pacientes agora”.
“Eu estava dizendo que ela talvez devesse ir para casa descansar um pouco”, disse Howard. “Depois que o médico vier”, acrescentou.
“Ela podia fazer isso, sim”, disse a enfermeira. “Acho que vocês dois devem ficar à vontade para fazer isso, se quiserem.” A enfermeira era uma mulher grande, escandinava, de cabelo louro. Havia um traço de sotaque em sua fala.
“Vamos ver o que o doutor vai dizer”, falou Ann. “Quero conversar com o médico. Não acho que ele deveria estar dormindo tanto assim. Não acho um bom sinal.” Levou a mão aos olhos e inclinou a cabeça um pouco para a frente. A pressão dos dedos de Howard aumentou em seu ombro e depois a mão dele passou para o pescoço, onde os dedos começaram a massagear os músculos dali.
“O doutor Francis virá dentro de alguns minutos”, disse a enfermeira. Em seguida saiu do quarto.
Howard olhou para o filho por alguns momentos, o pequeno peito subia e descia serenamente sob as cobertas. Pela primeira vez desde os terríveis minutos após o telefonema de Ann para o escritório, ele sentiu um medo autêntico subir pelas pernas e pelos braços. Começou a sacudir a cabeça, na tentativa de rechaçar esse medo. Scotty estava bem, só que em vez de dormir em casa, na sua cama, estava numa cama de hospital, com ataduras na cabeça e um tubo metido no braço. Mas era dessa ajuda que ele precisava naquele momento.
O dr. Francis entrou, apertou a mão de Howard, embora tivessem se falado poucas horas antes. Ann se levantou da cadeira. “Doutor?”
“Ann”, disse ele fazendo um gesto com a cabeça. “Primeiro vamos ver como ele está”, disse o médico. Foi até a lateral da cama e tomou o pulso do menino. Levantou uma pálpebra e depois a outra. Howard e Ann estavam ao lado do médico e observavam. Ann emitiu um pequeno som quando a pálpebra de Scotty foi erguida e deixou à mostra um espaço branco, sem pupila. Depois o médico puxou a coberta e auscultou o coração e os pulmões do menino com o estetoscópio. Pressionou o abdômen aqui e ali com a ponta dos dedos. Quando terminou o exame, foi até o pé da cama e observou a ficha. Verificou a hora no relógio de pulso, anotou alguma coisa na ficha e depois olhou para Ann e Howard, que estavam esperando.
“Como ele está, doutor?”, perguntou Howard. “Qual é exatamente o problema dele?”
“Por que ele não acorda?”, disse Ann.
O médico era bonito, de ombros largos e rosto queimado de sol. Vestia terno e colete, gravata listrada e abotoaduras de marfim. Tinha o cabelo grisalho bem penteado e dava a impressão de ter acabado de chegar de um concerto. “Ele está bem”, disse o médico. “Não é nada de mais, mas podia estar melhor, acho. Mas ele está bem. Mesmo assim, eu gostaria que ele acordasse. Seria bom se acordasse logo.” O médico olhou de novo para o menino. “Vamos saber um pouco mais daqui a algumas horas, depois que os resultados de mais alguns exames chegarem. Mas ele está bem, acreditem em mim, a não ser por essa pequena fratura no crânio, no alto da testa. Isso de fato ele tem.”
“Ah, não”, disse Ann.
“E uma pequena concussão, como eu disse antes. Claro, vocês sabem que ele está em estado de choque”, disse o médico. “Às vezes isso acontece em casos de choque. Esse sono.”
“Mas ele está fora de um perigo mais sério?”, perguntou Howard. “Antes o senhor disse que ele não estava em coma. Então o senhor não chamaria isso de coma, doutor?” Howard esperou. Olhou para o médico.
“Não, eu não quero chamar de coma”, disse o médico e olhou de relance para o garoto outra vez. “Ele só está num sono profundo. É uma medida restauradora que o corpo toma por conta própria. Ele não corre nenhum perigo mais sério, posso afirmar com segurança, de fato. Mas vamos saber melhor quando ele acordar e os outros exames ficarem prontos. Não se preocupem”, disse o médico.
“Está em coma”, disse Ann. “Uma espécie de coma.”
“Ainda não é bem um coma”, disse o médico. “Eu não chamaria de coma. Pelo menos não por enquanto. Ele sofreu um choque. Em casos de choque, esse tipo de reação é muito comum; é uma reação temporária a um trauma físico. O coma... bem, o coma é uma inconsciência profunda e prolongada que pode demorar dias ou até semanas. Scotty não está nesse campo, pelo menos até onde podemos saber. Só tenho certeza de que o estado dele vai começar a melhorar de manhã. Pelo menos estou apostando nisso. Vamos saber melhor depois que ele acordar, o que não deve demorar muito para acontecer agora. Claro, vocês podem fazer o que quiserem, podem ficar aqui ou ir um pouco para casa, mas em todo caso fiquem à vontade para sair por algum tempo, se quiserem. Isso não é nada fácil, sei muito bem.” O médico lançou um olhar para o menino outra vez, observou-o e depois se virou para Ann e disse: “Tente não se preocupar. Acredite em mim, estamos fazendo tudo o que pode ser feito. Agora é só questão de um pouco mais de tempo”. Cumprimentou Ann com a cabeça, apertou a mão de Howard outra vez e saiu do quarto.
Ann colocou a mão na testa do filho. “Pelo menos ele não está com febre”, disse. Depois falou: “Meu Deus, mas ele parece tão frio. Howard? Ele devia estar frio desse jeito? Sinta a testa dele”.
Howard pôs a mão na testa do menino. Sua própria respiração ficou mais lenta. “Acho que é normal que esteja assim agora”, respondeu. “Ele está em estado de choque, lembra? Foi o que o médico disse. O médico acabou de sair. Teria dito alguma coisa se o Scotty não estivesse bem.”
Ann ficou ali por mais um tempo, mordendo o lábio com os dentes. Em seguida, foi até a cadeira e sentou.
Howard sentou numa cadeira próxima à dela. Olharam um para o outro. Ele quis dizer mais alguma coisa e tranquilizá-la, mas também estava com medo. Pegou a mão dela e colocou-a no colo, e isso fez Howard se sentir melhor, estar com a mão dela ali. Segurou a mão de sua mulher, apertou-a, depois a soltou. Ficaram sentados assim por algum tempo, observando o menino, sem falar nada. De vez em quando Howard apertava a mão dela. Por fim, Ann retirou a mão.
“Fiquei rezando”, disse ela.
Howard assentiu com a cabeça.
Ann disse: “Quase achei que tinha esquecido como era, mas lembrei. Bastou eu fechar os olhos e dizer: Por favor, Deus, nos ajude... ajude o Scotty; e depois o resto foi fácil. As palavras estavam bem à mão. Quem sabe você também podia rezar”, disse ela.
“Eu já rezei”, disse ele. “Rezei hoje à tarde... ontem à tarde, depois que você telefonou, enquanto eu estava vindo para o hospital. Fiquei rezando”, disse.
“Isso é bom”, disse Ann. Pela primeira vez, sentiu que os dois estavam juntos naquilo, naquele problema. Então se deu conta de que, até ali, aquilo só tinha acontecido com ela e Scotty. Ann não havia permitido que Howard participasse, embora ele estivesse ali, aflito, desde o começo. Sentiu-se feliz por ser sua mulher.
A mesma enfermeira voltou, tomou o pulso do garoto outra vez e verificou o fluxo do líquido no frasco que pendia acima da cama.
Uma hora depois, entrou outro médico. Disse que seu nome era Parsons, da radiologia. Tinha um bigode cerrado. Usava mocassim, camisa à moda do Oeste e calça jeans.
“Vamos levá-lo lá embaixo para tirar mais algumas chapas”, disse aos dois. “Precisamos de mais chapas e queremos fazer uma tomografia.”
“O que está havendo?”, perguntou Ann. “Uma tomografia?” Ficou parada entre aquele novo médico e a cama. “Pensei que vocês já tivessem tirado todos os seus raios X.”
“Lamento, mas precisamos fazer mais alguns”, disse o médico. “Não é nada com que se preocupar. Apenas precisamos de mais chapas e queremos também fazer uma tomografia do cérebro.”
“Meu Deus”, disse Ann.
“É um procedimento absolutamente normal em casos assim”, disse o novo médico. “Só precisamos descobrir por que ele ainda não acordou. É um procedimento normal, nada com que se alarmar. Vamos levá-lo para baixo por alguns minutos”, disse o médico.
Pouco depois, dois assistentes entraram no quarto com uma maca. Eram homens de cabelo preto e pele morena, usavam uniforme branco e trocaram algumas palavras entre si numa língua estrangeira, enquanto tiravam o menino do tubo e o passavam da cama para a maca. Em seguida, empurraram a maca com rodinhas para fora do quarto. Howard e Ann pegaram o mesmo elevador. Ann observava com atenção a criança. Fechou os olhos quando o elevador começou a descer. Os ajudantes ficaram cada um de um lado da maca, sem dizer nada, embora de vez em quando um deles comentasse alguma coisa com o outro, na língua deles, e o outro, em resposta, assentia devagar com a cabeça.
Mais tarde, naquela manhã, na hora em que o sol começava a iluminar com mais força as janelas da sala de espera do setor de raios X, trouxeram o menino para fora e o levaram de volta ao quarto. Howard e Ann mais uma vez subiram no elevador junto com o filho e mais uma vez tomaram seus lugares ao lado da cama.
Esperaram o dia inteiro, mas o garoto não acordou. De vez em quando, um dos dois descia até a lanchonete para tomar um café ou um suco de frutas e então, como se de repente se lembrasse e sentisse culpa, levantava de um salto da mesa e voltava depressa para o quarto. O dr. Francis retornou naquela tarde, examinou o menino mais uma vez e saiu, depois de lhes dizer que o garoto estava melhorando e que agora podia acordar a qualquer momento. Enfermeiras diferentes das enfermeiras da noite anterior entravam de vez em quando. Então uma jovem do laboratório bateu na porta e entrou no quarto. Vestia calça esporte branca e blusa branca, e trazia uma pequena bandeja com objetos que colocou numa prateleira ao lado da cama. Sem dirigir uma palavra aos dois, colheu sangue do braço do menino. Howard fechou os olhos quando a mulher encontrou o ponto certo no braço do garoto e enfiou a agulha.
“Não estou entendendo isso”, disse Ann para a mulher.
“Ordens do médico”, disse a jovem. “Faço o que me mandam fazer. Mandam tirar um pouco de sangue de alguém, eu vou e tiro. Qual é o problema com ele, afinal?”, perguntou. “Ele é uma gracinha.”
“Um carro bateu nele”, respondeu Howard. “O motorista fugiu.”
A jovem balançou a cabeça e olhou de novo para o garoto. Em seguida, pegou a bandeja e saiu do quarto.
“Por que será que ele não acorda?”, disse Ann. “Howard? Quero algumas respostas dessa gente.”
Howard não disse nada. Sentou-se de novo na cadeira e cruzou as pernas. Esfregou o rosto com as mãos. Olhou para o filho e depois se recostou na cadeira, fechou os olhos e adormeceu.
Ann foi até a janela e olhou lá fora, para o estacionamento Era noite e carros entravam e saíam do estacionamento com os faróis acesos. Ela ficou junto à janela, as mãos agarradas ao parapeito, e sabia, no fundo do coração, que agora ela e o marido iam entrar numa nova etapa, mais difícil. Ela estava com medo e seus dentes começaram a bater, até que precisou fazer força com a mandíbula. Viu um carro grande na frente do hospital e uma pessoa, uma mulher de casaco longo, entrar no carro. Desejou ser aquela mulher e que alguém, qualquer um, a levasse embora dali de carro, para qualquer lugar, um lugar onde encontrasse Scotty à sua espera quando saísse do carro, pronto para dizer mamãe e deixar que ela o tomasse nos braços.
Dali a pouco, Howard acordou. Olhou de novo para o menino e então levantou da cadeira, se espreguiçou e caminhou até a janela para ficar junto de sua mulher. Os dois ficaram olhando para o estacionamento e não falaram nada. Pareciam perceber o interior um do outro agora, como se a preocupação os tivesse deixado transparentes, de um modo perfeitamente natural.
A porta se abriu e o dr. Francis entrou. Dessa vez vestia um terno e uma gravata diferentes, mas seu cabelo estava do mesmo jeito e parecia que tinha acabado de fazer a barba. Foi direto para a cama e examinou o menino. “Ele já devia ter acordado a esta altura. Já não existe nenhuma boa razão para isto”, disse. “Mas posso dizer a vocês que estamos todos convencidos de que ele não corre perigo; apenas vamos nos sentir melhor quando ele acordar. Agora não existe nenhum motivo, absolutamente nenhum motivo, para que ele não acorde muito em breve. Ah, ele vai sentir uma tremenda dor de cabeça quando acordar, contem com isso. Mas todos os seus sinais estão em ordem. Não poderiam estar mais normais.”
“Então ele está em coma?”, disse Ann.
O doutor passou a mão por suas faces lisas. “Por enquanto, vamos chamar assim, até ele acordar. Mas vocês devem estar esgotados. É muito duro ficar esperando tanto tempo. Fiquem à vontade para sair um pouco”, disse. “Faria bem a vocês. Vou pôr uma enfermeira aqui enquanto você estiverem fora, se quiserem sair. Podem ir e tratem de comer alguma coisa.”
“Não vou conseguir comer”, disse Ann. “Estou sem fome.”
“Façam como quiser, claro”, disse o médico. “De qualquer forma, quero dizer a vocês que todos os sinais dele estão bons, os exames deram negativo, não apareceu nada, e assim que acordar ele vai se recuperar rápido.”
“Obrigado, doutor”, disse Howard. Apertou a mão do médico de novo, o médico deu palmadinhas em seu ombro e saiu.
“Acho que um de nós dois devia ir para casa ver como estão as coisas”, disse Howard. “Primeiro porque o Slug precisa comer.”
“Ligue para um dos vizinhos”, disse Ann. “Ligue para os Morgan. Qualquer um pode dar comida a um cachorro, se você pedir.”
“Está certo”, respondeu Howard. Depois de um tempo, disse: “Querida, por que você não faz isso? Por que não vai para casa, vê como estão as coisas por lá e depois volta? Vai fazer bem a você. Eu fico aqui com ele. Sério”, disse Howard. “A gente precisa preservar as nossas forças numa situação dessas. Nós vamos querer ficar aqui ainda um bom tempo, mesmo depois que ele acordar.”
“Por que não vai você?”, perguntou Ann. “Dê comida ao Slug. Coma você também.”
“Eu já fui para casa”, ele disse. “Fiquei lá exatamente uma hora e quinze minutos. Agora você vai, fica lá por uma hora, mais ou menos, se recupera um pouco e depois volta. Eu fico aqui.”
Ann tentou pensar no assunto, mas estava cansada demais. Fechou os olhos e tentou pensar naquilo de novo. Depois de um tempo, disse: “Talvez eu vá para casa por alguns minutos. Quem sabe se eu não ficar aqui olhando para ele o tempo todo ele acorde e fique tudo bem outra vez? Entende? Quem sabe ele acorde se eu não estiver aqui? Vou para casa tomar um banho e trocar de roupa. Dou comida para o Slug. Depois volto”.
“Eu fico aqui”, disse ele. “Vá para casa, querida. Vou ficar de olho em tudo.” Seus olhos estavam vermelhos e pequenos, como se tivesse andado bebendo por muito tempo. Suas roupas estavam amarrotadas. A barba tinha crescido um pouco outra vez. Ann tocou no rosto do marido e depois afastou a mão. Entendeu que ele queria ficar um pouco sozinho, não ter de falar nem dividir sua preocupação por algum tempo. Ann pegou sua bolsa na mesinha e Howard ajudou sua mulher a vestir o casaco.
“Não demoro”, disse ela.
“Sente-se, descanse por um tempo quando chegar em casa”, disse Howard. “Coma alguma coisa. Tome um banho. Depois que sair do banho, descanse um pouco. Vai fazer um bem enorme a você, vai ver só. Depois você volta”, disse. “Vamos tentar não nos preocupar demais. Você ouviu o que o doutor Francis falou.”
Ela ficou ali com seu casaco por um momento, tentando lembrar as palavras exatas do médico, procurando alguma nuance, algum vestígio de algo oculto nas palavras dele que não fosse aquilo que ele tinha dito. Tentou lembrar se a expressão do médico havia mudado, por pouco que fosse, quando se curvou para examinar Scotty. Lembrou-se de como as feições do médico se tranquilizaram quando ele levantou as pálpebras do menino e depois auscultou sua respiração.
Ela foi até a porta, virou-se e olhou para o quarto. Olhou para o menino, depois olhou para o pai. Howard assentiu com a cabeça. Ela saiu do quarto e fechou a porta.
Passou pelo posto de enfermagem e seguiu até o fim do corredor, em busca do elevador. No fim do corredor, virou à direita e entrou numa salinha de espera onde uma família negra estava sentada em cadeiras de vime. Havia um homem de meia-idade, de calça e camisa cáqui, boné de beisebol virado para trás na cabeça. Uma mulher grande de vestido caseiro e chinelo estava esparramada numa das cadeiras. Uma adolescente de jeans, o cabelo armado com um monte de trancinhas enroscadas, estava esticada numa das cadeiras, com as pernas para a frente, fumando um cigarro, e os tornozelos cruzados. A família voltou os olhos para Ann quando ela entrou na sala. A mesinha estava cheia de embalagens de hambúrgueres e copinhos de isopor.
“Franklin”, disse a mulher grande, se ajeitando na cadeira. “É sobre o Franklin?” Os olhos dela se arregalaram. “Me diga logo, senhora”, falou a mulher. “É sobre o Franklin?” Ela tentava se levantar da cadeira, mas o homem havia fechado a mão sobre o braço dela.
“Calma, calma”, disse ele. “Evelyn.”
“Desculpe”, disse Ann. “Estou procurando o elevador. Meu filho está no hospital e eu não estou conseguindo achar o elevador.”
“O elevador fica lá na frente, vire à esquerda”, disse o homem, apontando o dedo.
A garota tragou fundo o seu cigarro e olhou bem para Ann. Os olhos dela haviam se estreitado até se tornarem apenas duas fendas e seus lábios largos se separaram devagar enquanto ela deixava escapar a fumaça. A mulher negra deixou a cabeça tombar sobre o ombro e virou o rosto para Ann, sem mais interesse.
“Um carro pegou meu filho”, Ann disse ao homem. Ela parecia precisar explicar aquilo para si mesma. “Teve uma concussão e uma pequena fratura no crânio, mas vai ficar bom. Ele agora está em estado de choque, mas também pode ser uma espécie de coma. Isso é o que realmente preocupa a gente, a questão do coma. Eu vou sair um pouco, mas meu marido está com ele. Quem sabe ele acorda quando eu estiver fora.”
“Isso é muito ruim”, disse o homem e se mexeu na cadeira. Assentiu com a cabeça. Olhou para a mesa e depois voltou a olhar para Ann. Ela continuava parada no mesmo lugar. Ele disse: “O nosso Franklin, ele está na mesa de operação. Alguém cortou ele. Tentou matar ele. Teve uma briga lá onde ele estava. Naquela festa. Dizem que estava só parado, olhando. Não mexeu com ninguém. Mas hoje em dia isso não significa mais nada. Agora ele está na mesa de operação. A gente só fica torcendo e rezando por ele, é só o que a gente pode fazer agora”. Olhou bem firme para ela e depois puxou a viseira do boné.
Ann olhou de novo para a garota, que ainda olhava para ela, e também olhou para a mulher mais velha, que continuava de cabeça baixa, mas agora de olhos fechados. Ann viu que os lábios se moviam em silêncio, formando palavras. Sentiu uma ânsia de perguntar que palavras eram aquelas. Queria conversar mais com aquelas pessoas que estavam no mesmo tipo de espera que ela. Ann estava com medo e eles estavam com medo. Tinham isso em comum. Ann bem que gostaria de dizer mais alguma coisa sobre o acidente, contar mais coisas sobre o Scotty, que aquilo havia acontecido no dia do aniversário dele, segunda-feira, que ele ainda estava inconsciente. Porém não sabia como começar e, assim, apenas ficou olhando para eles sem falar mais nada.
Avançou pelo corredor que o homem havia indicado e achou o elevador. Ficou um momento diante das portas fechadas, ainda se perguntando se estava mesmo fazendo a coisa certa. Em seguida, estendeu o dedo e apertou o botão.
Ela conduziu o carro até a entrada da garagem e desligou o motor. Fechou os olhos e descansou a cabeça sobre o volante por um momento. Ouviu os estalidos que o motor fazia enquanto esfriava. Depois saiu do carro. Podia ouvir o cachorro latindo dentro de casa. Foi até a porta da frente, que estava destrancada. Entrou, acendeu as luzes e pôs uma chaleira de água no fogo para fazer um chá. Abriu uma latinha de comida para cachorro e alimentou o Slug na varanda dos fundos. Ele comeu em pequenos bocados famintos. Não parava de correr até a cozinha para ver se ela ia ficar em casa. Quando ela estava sentada no sofá tomando o chá, o telefone tocou.
“Sim?”, disse ela tão logo atendeu. “Alô!”
“Senhora Weiss”, disse uma voz masculina. Eram cinco da manhã e ela achou que ouvia um barulho de máquinas ou de algum equipamento no fundo.
“Sim, sim, o que é?”, ela disse. “Aqui é a senhora Weiss. É ela mesma. O que é, por favor?” Ficou escutando os barulhos ao fundo, sem saber o que era. “Pelo amor de Deus, é sobre o Scotty?”
“Scotty”, disse a voz masculina. “É sobre o Scotty, sim. Tem a ver com o Scotty, esse é o problema. A senhora se esqueceu do Scotty?”, perguntou o homem. E depois desligou.
Ela discou o número do hospital e pediu para falar com o terceiro andar. Perguntou sobre o filho à enfermeira que atendeu o telefone. Depois pediu para falar com o marido. Disse que era uma emergência.
Ann ficou esperando, torcendo o fio do telefone nos dedos. Fechou os olhos e sentiu um enjoo no estômago. Ela devia ter se forçado a comer alguma coisa. Slug veio da varanda dos fundos e deitou no chão, perto dos pés dela. Abanou o rabo. Ann puxava de leve as orelhas do cão, enquanto ele lambia seus dedos. Howard atendeu o telefone.
“Alguém acabou de ligar pra cá”, disse ela. Ela torcia o fio do telefone. “Ele disse que era sobre o Scotty”, gritou.
“O Scotty está bem”, Howard lhe disse. “Quer dizer, continua dormindo. Não houve nenhuma mudança. A enfermeira veio duas vezes depois que você saiu. Mais ou menos de meia em meia hora, vem alguém. Uma enfermeira ou um médico, um dos dois. Ele está bem, Ann.”
“Esse homem que telefonou, ele disse que era sobre o Scotty”, repetiu.
“Querida, descanse um pouco, você precisa descansar. Depois venha para cá. Deve ser a mesma pessoa que telefonou quando eu estava aí. Esqueça. Venha para cá depois que tiver descansado. Aí nós vamos tomar café da manhã ou comer alguma coisa.”
“Café da manhã”, disse ela. “Eu não vou conseguir comer nada.”
“Você sabe o que eu quero dizer”, disse Howard. “Um suco, um bolinho, qualquer coisa, sei lá. Sei lá, Ann. Meu Deus. Também não sinto fome. Ann, é ruim falar aqui. Estou no balcão das enfermeiras. O doutor Francis voltará às oito da manhã. Ele vai ter alguma coisa para nos dizer, alguma coisa mais concreta. Foi o que uma das enfermeiras falou. Ela não sabe mais nada além disso. Ann? Querida, talvez a gente fique sabendo de mais alguma coisa lá pelas oito. Venha antes das oito horas. Enquanto isso eu fico aqui, o Scotty está bem. Ele está do mesmo jeito”, acrescentou.
“Eu estava tomando uma xícara de chá”, disse ela, “quando o telefone tocou. Disseram que era sobre o Scotty. Havia um barulho no fundo. No telefonema que você atendeu também tinha um barulho no fundo, Howard?”
“Não me lembro”, disse ele. “Vai ver que é o motorista do carro que pegou o Scotty, vai ver ele é um psicopata e de algum jeito descobriu sobre o Scotty. Mas eu estou aqui com ele. Fique aí e descanse um pouco, como a gente combinou. Tome um banho e volte pra cá às sete horas mais ou menos, e aí nós dois conversamos com o médico quando ele chegar. Vai dar tudo certo, meu bem. Eu estou aqui e tem médicos e enfermeiras por aqui a toda hora. Só dizem que o estado dele é estável.”
“Estou morrendo de medo”, disse Ann.
Ela deixou a água correr, tirou a roupa e entrou na banheira. Lavou-se e enxugou-se depressa, nem deu tempo de lavar o cabelo. Vestiu roupas de baixo limpas, calça de lã e um suéter. Foi até a sala, onde o cachorro levantou os olhos para ela e deixou o rabo bater uma vez contra o chão. Lá fora ainda estava começando a clarear quando ela pegou o carro e saiu.
Chegou ao estacionamento do hospital e achou uma vaga perto da porta de entrada. De um modo meio obscuro, sentia-se responsável pelo que havia acontecido com o filho. Deixou os pensamentos se voltarem para a família de negros. Lembrou-se do nome Franklin e da mesa coberta de papéis de hambúrguer, e da garota adolescente que olhava firme para ela enquanto tragava seu cigarro. “Não tenha filhos”, disse à imagem da garota na hora em que entrou pela porta da frente do hospital. “Pelo amor de Deus, não tenha filhos.”
Ann pegou o elevador e subiu ao terceiro andar com duas enfermeiras que estavam iniciando seu turno. Era quarta-feira, alguns minutos antes das sete. Houve um chamado para certo dr. Madison quando as portas do elevador se abriram no terceiro andar. Ela saiu atrás das enfermeiras, que tomaram outra direção e continuaram a conversa que ela havia interrompido ao entrar no elevador. Ann seguiu pelo corredor rumo à salinha onde a família de negros estivera esperando. Eles já tinham ido embora, mas as cadeiras estavam espalhadas de um modo que dava a impressão de que as pessoas haviam acabado de se levantar e saído às pressas. A mesa estava atulhada com as mesmas embalagens e copinhos, o cinzeiro cheio de guimbas de cigarro.
Ela parou no posto de enfermagem na ponta do corredor, logo depois da sala de espera. Uma enfermeira estava atrás do balcão, escovando o cabelo e bocejando.
“Havia um rapaz negro na sala de cirurgia na noite passada”, disse Ann. “Franklin alguma coisa, era o nome dele. A família estava na salinha de espera. Eu queria saber como ele está.”
Uma enfermeira sentada numa escrivaninha atrás do balcão levantou os olhos que estavam voltados para uma ficha a sua frente. O telefone buzinou e ela pegou o fone, mas continuou com os olhos voltados para Ann.
“Ele faleceu”, disse a enfermeira no balcão. A enfermeira ficou segurando a escova na mão e continuou olhando para ela. “A senhora é amiga da família ou alguma coisa assim?”
“Conheci a família na noite passada”, disse Ann. “Meu filho está no hospital. Parece que está em estado de choque. Não sabemos direito qual é o problema. Eu apenas me lembrei desse rapaz, Franklin, só isso. Obrigada.”
Seguiu em frente pelo corredor. Portas de elevador da mesma cor que as paredes se abriram e um homem careca, muito magro, de calça branca e sapato branco de lona empurrou um pesado carrinho para fora do elevador. Ann não tinha notado aquelas portas na noite anterior. O homem empurrou o carrinho pelo corredor, parou na frente do quarto mais próximo do elevador e consultou uma prancheta. Em seguida, abaixou e pegou uma bandeja que estava no carrinho, bateu bem de leve na porta e entrou no quarto. Ann sentiu um cheiro desagradável de comida quente quando passou pelo carrinho. Passou depressa pelo posto de enfermagem seguinte sem olhar para as enfermeiras e abriu a porta do quarto de Scotty.
Howard estava junto à janela com as mãos cruzadas nas costas. Virou-se quando sua mulher entrou.
“Como ele está?”, perguntou Ann. Seguiu direto para junto da cama. Largou a bolsa no chão ao lado da mesinha de cabeceira. Teve a impressão de que fazia muito tempo que havia saído de lá. Tocou no cobertor em volta do pescoço de Scotty. “Howard?”
“O doutor Francis esteve aqui agora há pouco”, disse Howard. Ann olhou com atenção para o marido e achou que os ombros dele estavam um pouco curvados.
“Achei que ele só viria às oito”, disse ela depressa.
“Veio outro médico junto com ele. Um neurologista.”
“Um neurologista”, disse Ann.
Howard fez que sim com a cabeça. Seus ombros estavam curvados, Ann via isso muito bem agora. “O que foi que eles disseram, Howard? Pelo amor de Deus, o que eles disseram? O que foi?”
“Disseram, bem, vão levar o Scotty para baixo e fazer mais alguns exames, Ann. Acham que vão ter de operar, querida. Querida, eles vão operar. Não conseguem entender por que ele não acorda. É mais do que choque ou concussão, agora eles já sabem disso. Está dentro do crânio, a fratura, tem alguma coisa, alguma coisa a ver com isso, eles acham. Então vão operar. Tentei telefonar para você, mas acho que você já tinha saído de casa.”
“Ah, meu Deus”, disse Ann. “Ah, por favor, Howard, por favor”, disse ela, segurando os braços do marido.
“Olhe!”, Howard disse. “Scotty! Olhe, Ann!” Virou sua mulher para a cama.
O garoto tinha aberto os olhos, depois os fechou. Abriu-os de novo. Os olhos permaneceram fixos à frente por um momento, depois se moveram devagar até pousarem em Howard e Ann, depois vagaram de novo para o outro lado.
“Scotty”, disse a mãe, aproximando-se da cama.
“Ei, Scott”, disse o pai. “Ei, filho.”
Inclinaram-se sobre a cama. Howard pegou a mão de Scotty em suas mãos e começou a dar palmadinhas e a apertar. Ann curvou-se sobre o menino, beijou sua testa várias vezes. Pôs as mãos nos dois lados do rosto do menino. “Scotty, meu anjo, é a mamãe e o papai”, disse. “Scotty?”
O garoto olhou para eles, mas sem nenhum sinal de reconhecimento. Então seus olhos se fecharam com força, sua boca se abriu e ele soltou um grito longo, até não ter mais ar nos pulmões. Então seu rosto pareceu relaxar. Os lábios se separaram enquanto seu último suspiro era soprado através da garganta e exalado suavemente entre os dentes cerrados.
Os médicos chamaram aquilo de oclusão oculta e disseram que ocorria um caso em um milhão. Se tivesse sido detectado mais cedo e a cirurgia feita imediatamente, quem sabe ele se salvasse, porém o mais provável é que não. Em todo caso, o que os médicos iriam procurar? Nada havia aparecido nos exames nem nas radiografias. O dr. Francis ficou abalado. “Não tenho palavras para dizer a vocês como estou me sentindo mal. Lamento muito mesmo, vocês não fazem ideia”, disse, enquanto levava os pais para a sala dos médicos. Havia um médico sentado numa cadeira com as pernas enganchadas no encosto de outra cadeira vendo um programa matinal na tevê. Vestia um uniforme verde desses usados em salas de parto, calça verde folgada e camisa verde, e um gorro verde que cobria seu cabelo. Olhou para Howard e Ann, depois olhou para o dr. Francis. Ficou de pé, desligou o televisor e saiu da sala. O dr. Francis conduziu Ann até o sofá, sentou-se ao lado dela e começou a falar numa voz baixa e consoladora. A certa altura, o médico se inclinou e abraçou-a. Ann sentiu o peito do médico subindo e descendo ritmadamente junto ao seu ombro. Ann continuou de olhos abertos, deixando que o médico a abraçasse. Howard foi ao banheiro, mas não fechou a porta. Depois de um violento ataque de choro, ele abriu a torneira e lavou o rosto. Em seguida, saiu e sentou-se diante de uma mesinha onde havia um telefone. Olhou para o telefone como se estivesse resolvendo o que ia fazer primeiro. Deu alguns telefonemas. Depois de um tempo, o dr. Francis usou o telefone.
“Há mais alguma coisa que eu possa fazer por vocês no momento?”, perguntou.
Howard disse que não com a cabeça. Ann olhou fixo para o dr. Francis, como se não entendesse suas palavras.
O médico os levou até a porta da frente do hospital. Pessoas entravam e saíam do hospital. Eram onze da manhã. Ann tinha a consciência de que movia os pés de forma vagarosa, quase relutante. Parecia-lhe que o dr. Francis estava mandando os dois embora, quando ela de algum modo tinha a sensação de que devia ficar, quando aquilo parecia ser o correto na situação, ficar ali. Ann olhou para o estacionamento lá fora e depois, na calçada, olhou de novo para trás, para a porta do hospital. Começou a sacudir a cabeça. “Não, não”, disse. “Isso não está acontecendo. Não posso deixar o Scotty lá, não.” Ouviu a própria voz e pensou como era errado que as únicas palavras que saíam de sua boca eram palavras do tipo que se falam nos programas de televisão, quando as pessoas ficam chocadas ao saber de mortes violentas e repentinas. Ann queria que suas palavras fossem delas mesma. “Não”, disse, e por alguma razão a lembrança da cabeça da mulher negra caída sobre o ombro veio ao seu pensamento. “Não”, disse de novo.
“Volto a falar com vocês ainda hoje, mais tarde”, o médico dizia para Howard. “Há mais algumas coisas que precisam ser feitas, coisas que precisam ficar claras para nós. Algumas coisas precisam ser explicadas.”
“Uma autópsia”, disse Howard.
O dr. Francis fez que sim com a cabeça.
“Entendo”, disse Howard. “Ah, meu Deus. Não, eu não entendo, doutor. Não posso, não consigo. Não consigo de jeito nenhum.”
O dr. Francis pôs o braço nos ombros de Howard.
“Eu lamento. Deus sabe como eu lamento.” Em seguida, retirou o braço e estendeu a mão. Howard olhou para a mão e depois a apertou. O dr. Francis passou os braços em torno de Ann mais uma vez. O médico parecia cheio de uma bondade que ela não compreendia. Deixou a cabeça repousar no ombro do médico, mas seus olhos se mantiveram abertos. Continuava olhando para o hospital. Quando deixaram o estacionamento, Ann olhou de novo para trás, para o hospital.
Em casa, ficou sentada no sofá com as mãos nos bolsos do casaco. Howard fechou a porta que dava para o quarto de Scotty. Ligou a cafeteira e achou uma caixa vazia. Tinha pensado em recolher algumas coisas de Scotty espalhadas pela sala. Mas em vez disso sentou no sofá perto de sua mulher, empurrou a caixa para o lado e inclinou-se com os braços entre os joelhos. Começou a chorar. Ela puxou a cabeça de Howard para o seu colo e ficou dando palmadinhas no ombro do marido. “Ele se foi”, disse Ann. Continuou dando palmadinhas no ombro do marido. Por cima dos soluços de Howard, ela podia ouvir a cafeteira chiando lá na cozinha. “Pronto, pronto”, disse ela com ternura. “Howard, ele se foi. Ele se foi e agora nós vamos ter de nos acostumar com isso. A ficar sozinhos.”
Dali a pouco, Howard se levantou e começou a se movimentar pela sala, sem rumo, com a caixa na mão, sem colocar nada dentro dela, mas pegando algumas coisas no chão, ao lado da extremidade do sofá. Ann continuou sentada com as mãos nos bolsos. Howard pôs a caixa no chão e trouxe o café para a sala. Mais tarde, Ann deu telefonemas para os familiares. Depois que o parente atendia o telefone, Ann atropelava umas poucas palavras e chorava um minuto. Em seguida, explicava com calma, com voz estudada, o que havia acontecido e lhes dizia o que iam fazer. Howard levou a caixa para a garagem, onde viu a bicicleta de Scotty. Largou a caixa e sentou-se no chão, ao lado da bicicleta. Pegou a bicicleta desajeitadamente e ela ficou inclinada sobre seu peito. Ele a segurou, o pedal de borracha contra o peito. Ele fez a roda girar uma vez.
Ann desligou o telefone depois de falar com a irmã. Estava procurando outro número quando o telefone tocou. Atendeu logo no primeiro toque.
“Alô”, disse, e de novo ouviu um barulho no fundo, um zumbido. “Alô! Alô!”, repetiu. “Pelo amor de Deus”, disse. “Quem é? O que você quer? Fale alguma coisa.”
“O seu Scotty, já aprontei ele para a senhora”, disse uma voz masculina. “A senhora se esqueceu dele?”
“Seu desgraçado!”, ela gritou no aparelho. “Como pode fazer uma coisa dessa, seu filho da mãe desgraçado?!”
“Scotty”, disse o homem. “A senhora se esqueceu do Scotty?” O homem desligou na cara dela.
Ao ouvir o grito, Howard voltou e deparou com a mulher chorando em cima da mesa, a cabeça sobre os braços. Pegou o fone e ouviu o sinal de discar.
Bem mais tarde, pouco antes da meia-noite, depois que eles tinham resolvido muitas coisas, o telefone tocou outra vez.
“Atenda você”, disse ela. “Howard, é ele, eu sei.” Estavam sentados à mesa da cozinha, com o café a sua frente. Howard tinha um pequeno copo de uísque ao lado de sua xícara. Atendeu o telefone no terceiro toque.
“Alô”, disse. “Quem é? Alô! Alô!” A linha ficou muda. “Desligou”, disse Howard. “Seja lá quem for.”
“Era ele”, insistiu Ann. “Aquele sacana. Eu gostaria de matar esse sujeito”, disse. “Eu gostaria de dar um tiro nele e ver seu corpo estrebuchar.”
“Ann, meu Deus”, disse Howard.
“Você escutou alguma coisa?”, ela perguntou. “No fundo? Um barulho de máquinas, uma coisa zumbindo?”
“Não, na verdade nada. Nada desse tipo”, disse ele. “Nem deu tempo. Acho que tinha uma música de rádio. Sim, tinha um rádio ligado, foi só o que consegui ouvir. Não faço a menor ideia do que está acontecendo”, disse.
Ann balançou a cabeça. “Se eu pudesse, se eu pudesse pôr as mãos nele.” Então ela se lembrou. Ela sabia quem era. Scotty, o bolo, o número do telefone. Levantou-se empurrando a cadeira para trás, para bem longe da mesa. “Me leve de carro até o centro comercial”, disse Ann. “Vamos, Howard.”
“O que você está dizendo?”
“O centro comercial. Já sei quem está telefonando. Sei quem é. É o padeiro, o padeiro filho da mãe, Howard. Eu encomendei um bolo com ele para o aniversário do Scotty. É ele que está telefonando, é ele que tem o telefone da gente e fica ligando. Para nos ameaçar por causa do bolo. O desgraçado do padeiro.”
Foram de carro até o centro comercial. O céu estava limpo e as estrelas brilhavam. Fazia frio e eles ligaram o aquecimento do carro. Estacionaram na frente da padaria. Todas as lojas estavam fechadas, mas ainda havia carros na extremidade do estacionamento, em frente aos dois cinemas vizinhos. As janelas da padaria estavam na penumbra, mas quando eles olharam pelo vidro viram uma luz na sala dos fundos, e de vez em quando um homem grande de avental entrava e saía da faixa de luz branca e forte. Através do vidro, Ann viu as caixas do mostruário e algumas mesinhas com cadeiras. Tentou abrir a porta. Bateu com os dedos no vidro. Mas, se o padeiro ouviu o chamado, não deu o menor sinal. Nem olhou naquela direção.
Pegaram o carro, foram até os fundos da padaria e estacionaram. Saíram do veículo. Havia uma janela iluminada, alta demais para que pudessem olhar lá dentro. Uma tabuleta perto da porta dos fundos dizia PADARIA CASEIRA, PEDIDOS ESPECIAIS. Ann ouvia, baixinho, um rádio tocando lá dentro, e alguma coisa rangia — a porta de um forno toda vez que era aberta? Ann bateu na porta e esperou. Em seguida, bateu outra vez, mais alto. O rádio foi desligado e agora se ouviu um som áspero, o som bem nítido de alguma coisa, uma gaveta, sendo aberta e depois fechada.
Alguém destrancou a porta e abriu. O padeiro ficou sob a luz e olhou para os dois, lá fora. “Já fechei”, disse. “O que vocês querem a esta hora? É meia-noite. Estão bêbados ou o quê?
Ann avançou para a luz que vinha da porta aberta e o padeiro piscou as pálpebras pesadas quando a reconheceu. “É a senhora”, disse.
“Sou eu”, disse Ann. “A mãe do Scotty. Esse é o pai do Scotty. Nós gostaríamos de entrar.”
O padeiro respondeu: “Agora estou ocupado. Estou trabalhando”.
Ela já tinha cruzado a porta a essa altura. Howard avançou logo atrás. O padeiro recuou. “Aqui tem um cheiro de padaria. Não tem um cheiro de padaria, Howard?”
“O que vocês querem?”, perguntou o padeiro. “Talvez queiram o seu bolo, não é? Então é isso, resolveram vir pegar o bolo. Encomendaram um bolo, não foi?”
“Você é muito esperto para um padeiro”, disse Ann. “Howard, esse é o homem que fica telefonando pra gente.” Ela cerrou os punhos. Olhou para o padeiro com raiva. Havia uma chama queimando dentro dela, uma raiva que fazia Ann sentir-se maior do que era, maior até do que qualquer um daqueles dois homens.
“Esperem aqui um minuto”, disse o padeiro. “Querem levar o seu bolo de três dias? É isso? Eu não quero discutir com a senhora. Lá está ele, bem ali, já meio mofado. Vendo para vocês pela metade do preço que combinei. Não. Vocês querem mesmo? Podem levar. Para mim não serve de nada, agora não serve para mais ninguém. Custou tempo e dinheiro fazer esse bolo. Se quiserem levar, tudo bem, se não quiserem, tudo bem também. Preciso voltar ao trabalho.” Olhou para os dois e passou a língua nos dentes.
“Mais bolos”, disse Ann. Sabia que tinha o controle daquilo que crescia dentro dela. Estava calma.
“Madame, eu trabalho dezesseis horas por dia neste lugar para ganhar a vida”, disse o padeiro. Esfregou as mãos no avental. “Trabalho dia e noite aqui, tentando fechar as contas todo mês.” Pelo rosto de Ann passou uma expressão que fez o padeiro recuar e dizer: “Nada de encrencas agora”. Estendeu o braço para o balcão, pegou um rolo de massas com a mão direita e começou a bater de leve com ele na palma da mão esquerda. “Vocês vão querer o bolo ou não? Preciso voltar ao trabalho. Os padeiros trabalham de noite”, disse de novo. Tinha os olhos miúdos, de aspecto malvado, pensou Ann, quase sumidos no meio da pele das bochechas cobertas de fios de barba. O pescoço junto à gola de sua camiseta era grosso de gordura.
“A gente sabe que os padeiros trabalham à noite”, disse Ann. “Eles também ficam telefonando à noite. Seu sacana.”
O padeiro continuou batendo de leve o rolo de massas na mão. Olhou de relance para Howard. “Cuidado, cuidado”, disse aos dois.
“Meu filho morreu”, disse Ann numa conclusão fria, sem ênfase. “Foi atingido por um carro na segunda-feira à tarde. Ficamos com ele, esperando, até ele morrer. Mas, é claro, ninguém podia pretender que você soubesse, não é? Os padeiros não podem saber de tudo. Eles podem saber de tudo, senhor Padeiro? Mas ele está morto. Morto, seu sacana.” Da mesma forma repentina que havia jorrado de dentro dela, a raiva minguou, deu lugar a outra coisa, a uma atordoante sensação de náusea. Ann se recostou na mesa de madeira polvilhada de farinha, pôs as mãos sobre o rosto e começou a chorar, os ombros sacudindo para a frente e para trás. “Não é justo”, continuou. “Não é justo, não é justo.”
Howard pôs a mão na parte inferior de suas costas e olhou para o padeiro. “Que vergonha”, disse Howard. “Que vergonha.”
O padeiro colocou o rolo de massas de volta no balcão. Desamarrou o avental e jogou-o em cima do balcão. Ficou um instante olhando os dois e depois balançou a cabeça devagar. Puxou uma cadeira de baixo de uma mesa de jogar cartas, onde estavam papéis e receitas, uma máquina de calcular e um catálogo telefônico. “Por favor, sentem-se”, disse. “Vou trazer uma cadeira para o senhor”, disse a Howard. “Sentem-se, por favor.” O padeiro foi para a frente da padaria e voltou com duas cadeiras pequenas de ferro batido. “Por favor, sentem-se.”
Ann enxugou os olhos e olhou para o padeiro. “Eu queria matar você”, disse. “Queria ver você morto.”
O padeiro abriu um espaço na mesa para eles. Empurrou a máquina de calcular para um lado, junto com as pilhas de receitas e papéis de carta. Deixou cair o catálogo telefônico no chão, onde ele pousou com um baque. Howard e Ann sentaram e puxaram as cadeiras para perto da mesa. O padeiro também sentou.
“Quero que saibam que lamento muito”, disse o padeiro, colocando os cotovelos na mesa e balançando a cabeça devagar. “Só Deus sabe como eu lamento. Escutem. Sou só um padeiro. Não pretendo ser nada além disso. Talvez em outra época, anos atrás, eu tenha sido um tipo diferente de ser humano. Esqueci, não tenho mais certeza. Mas não sou mais, se é que fui algum dia. Agora sou só um padeiro. Isso não é desculpa para eu ter feito o que fiz, eu sei. Mas eu lamento profundamente. Lamento pelo seu filho, e lamento meu papel nisso tudo. Meu Deus, meu Deus”, disse o padeiro. Espalmou as mãos sobre a mesa e virou-as para cima, mostrando a palma das mãos. “Não tenho filhos, portanto só posso imaginar o que vocês devem estar sentindo. Tudo que posso dizer a vocês agora é que eu lamento muito. Me desculpem, se puderem”, disse o padeiro. “Não sou um homem maldoso, acho que não sou. Não sou maldoso, como a senhora disse no telefone. Vocês devem compreender que a questão é que eu não sei mais como agir, ao que parece. Por favor”, insistiu, “aceitem as minhas desculpas e me perdoem, se puderem achar perdão no seu coração.”
Estava quente dentro da padaria e Howard levantou-se da mesa e tirou o casaco. Ajudou Ann a tirar o casaco dela. O padeiro olhou para eles durante um minuto e depois assentiu com a cabeça e levantou-se da mesa. Foi até o forno e desligou alguns botões. Achou xícaras e serviu café de uma cafeteira elétrica. Colocou uma caixinha de papelão com creme de leite e uma tigela de açúcar na mesa.
“Vocês na certa precisam comer alguma coisa”, disse o padeiro. “Gostaria que comessem alguns dos meus pãezinhos quentes. Vocês têm que comer e ir em frente. Comer é uma coisinha boa numa hora desta”, disse.
Serviu seus pãezinhos quentes de canela que tinham acabado de sair do forno, com a crosta de açúcar ainda derretida. Pôs manteiga sobre a mesa e facas para passar a manteiga. Em seguida, o padeiro sentou-se à mesa com eles. Esperou. Esperou até que cada um pegasse um pãozinho do prato e começasse a comer. “É bom comer alguma coisa”, disse, observando os dois. “Tem mais lá dentro. Comam. Comam tudo o que quiserem. Eu tenho aqui quantos pãezinhos vocês quiserem.”
Eles comeram os pãezinhos e beberam café. Ann, de repente, sentiu fome, e os pãezinhos estavam quentes e doces. Ela comeu três, o que agradou bastante ao padeiro. Então ele começou a falar. Os dois ouviram com atenção. Embora estivessem cansados e angustiados, escutaram o que o padeiro tinha a dizer. Assentiram com a cabeça quando o padeiro começou a falar da solidão e da sensação de incerteza e de limitação que tinha chegado com a meia-idade. Contou como foi viver sem filhos aqueles anos todos. Repetir os dias com os fornos interminavelmente cheios e interminavelmente vazios. A comida para as festas, as comemorações para as quais tinha trabalhado. Os dedos cobertos de glacê até em cima. Os noivos e as noivas de braços agarrados um no outro, centenas deles, não, milhares a essa altura. Aniversários. Imaginem só todas aquelas velas acesas ao mesmo tempo. Ele tinha um comércio necessário. Era padeiro. Estava contente de não ser florista. Era melhor alimentar as pessoas. Em qualquer época do ano, aquilo tinha um cheiro melhor do que flores.
“Veja, sinta o cheiro disto”, disse o padeiro, abrindo um pão preto. “É um pão pesado mas substancioso.” Eles sentiram o cheiro, em seguida o padeiro pediu que provassem o pão. Tinha gosto de melado e de grão integral. Ouviram o padeiro. Comeram o que puderam. Engoliram o pão preto. Estava tão claro como à luz do dia embaixo da luz fluorescente. Ficaram conversando até o início da manhã, uma faixa pálida e alta de luz nas janelas, e eles nem pensavam em sair dali.