Vitaminas

 

 

 

 

 

 

 

Eu tinha um emprego e Patti não. Eu trabalhava algumas horas à noite para o hospital. Era um empreguinho besta. Eu fazia um serviço ou outro, batia o ponto durante oito horas, saía para beber com as enfermeiras. Depois de um tempo, Patti também quis arranjar um emprego. Disse que precisava de um emprego por uma questão de autoestima. Por isso começou a vender suplementos vitamínicos de porta em porta.

Por um tempo, ela foi só mais uma garota que percorria os quarteirões de cima a baixo de bairros desconhecidos, batendo de porta em porta. Mas ela aprendeu o caminho das pedras. Era rápida e só tirava notas altas no colégio. Tinha personalidade. Não demorou muito e a empresa lhe deu uma promoção. Algumas garotas que não estavam se dando tão bem quanto ela foram indicadas para trabalhar sob suas ordens. Em pouco tempo Patti já contava com uma equipe própria e tinha um escritório pequeno no centro comercial. Mas as garotas que trabalhavam para ela viviam mudando. Algumas iam embora depois de uns dias — às vezes depois de algumas horas. Mas também havia garotas que eram boas no ramo. Sabiam vender vitaminas. Eram essas as garotas que grudavam em Patti. Formavam o núcleo da equipe. Mas havia garotas que não conseguiam se desfazer das vitaminas.

As garotas que não conseguiam dar conta do recado simplesmente largavam o emprego. Não davam mais as caras no trabalho. Se tinham telefone, tiravam do gancho. Não atendiam a porta. Patti ficava muito magoada com aquelas perdas, como se as garotas fossem recém-convertidas que tinham se desviado do caminho certo. Ela se culpava. Mas acabava superando. Havia garotas demais para ela não superar aquilo.

De vez em quando uma garota ficava paralisada de repente e não conseguia tocar a campainha da porta. Ou então na hora em que estava diante da porta alguma coisa acontecia com sua voz. Ou então confundia o cumprimento normal com alguma coisa que não devia ser dita antes de entrar na casa. Numa situação como essa, a garota resolvia interromper o serviço, fechar a maleta de amostras, ir para o carro e ficar rodando até que Patti e as outras tivessem terminado. Faziam uma reunião. Todas voltavam ao escritório. Diziam coisas para estimular umas às outras. “Não existe dificuldade quando há força de vontade.” E “Os problemas são o almoço, o sucesso é a sobremesa”. Essas coisas.

Às vezes uma garota simplesmente sumia em pleno trabalho, com a maleta de amostras e tudo. Arranjava um esconderijo na cidade e depois ia embora. Mas havia sempre outras garotas para ocupar o seu lugar. Naquele tempo as garotas iam e vinham sem parar. Patti tinha uma lista. A intervalos de poucas semanas, ela sempre punha um pequeno anúncio em The Pennysaver. Pintavam mais garotas e havia mais treinamento. Eram garotas que não acabavam mais.

O núcleo era formado por Patti, Donna e Sheila. Patti era um espetáculo. Donna e Sheila eram só bonitinhas. Uma noite Sheila disse a Patti que ela a ama­va mais do que qualquer coisa no mundo. Patti me disse que foram essas as palavras de Sheila. Patti tinha levado Sheila de carro para casa e as duas estavam na frente da casa de Sheila, sentadas dentro do carro. Patti disse a Sheila que a amava também. Patti disse a Sheila que amava todas as suas garotas. Mas não do jeito que Sheila estava pensando. Então Sheila tocou no peito de Patti. Patti contou que pegou a mão de Sheila e segurou. Disse que falou para Sheila não levar as coisas para aquele lado. Disse que Sheila nem piscou o olho, apenas fez que sim com a cabeça, segurou a mão de Patti, beijou-a e saiu do carro.

 

 

Isso aconteceu perto do Natal. O negócio da venda de vitaminas andava de mal a pior naquela ocasião, então a gente pensou em dar uma festa para animar o pessoal. Na hora pareceu uma boa ideia. Sheila foi a primeira a ficar bêbada e apagar. Ela apagou quando estava de pé, caiu e dormiu por várias horas. Ela estava de pé no meio da sala e de repente seus olhos se fecharam, as pernas bambearam e ela desabou ali mesmo com o copo na mão. A mão que segurava a bebida bateu em cheio na mesa de centro na hora em que ela caiu. A não ser por isso, não houve nenhum barulho. A bebida entornou no tapete. Patti, eu e mais alguém a colocamos num banco na varanda e fizemos o possível para tirar Sheila da cabeça.

Todo mundo se embriagou e foi para casa. Patti foi dormir. Eu queria continuar, por isso fiquei sentado diante da mesa com uma bebida na frente até o dia começar a clarear. Então Sheila entrou, vindo da varanda, e começou. Disse que estava com uma dor de cabeça horrível, como se alguém estivesse enfiando arames dentro do seu cérebro. Disse que era uma dor de cabeça tão ruim que estava com medo de acabar ficando vesga. E tinha certeza de que seu dedo mindinho estava quebrado. Mostrou-o para mim. Parecia roxo. Soltou uns palavrões porque a gente a deixou dormir a noite inteira com as lentes de contato. Queria saber se ninguém ali estava ligando para ele. Levantou o dedo, pôs bem perto do rosto e olhou para ele. Balançou a cabeça. Afastou o dedo o mais que pôde e ficou olhando mais um pouco. Era como se não conseguisse acreditar nas coisas que deviam ter acontecido com ela naquela noite. Seu rosto estava meio inchado e o cabelo todo revirado. Jogou água fria no dedo. “Meu Deus, ah, meu Deus”, disse, e chorou um pouco em cima da pia. Mas ela tinha passado uma tremenda cantada na Patti, feito uma declaração de amor, e eu não sentia a menor compaixão.

Eu estava bebendo uísque com leite e uma lasca de gelo. Sheila estava encostada na pia. Olhava para mim com seus olhinhos estreitos. Tomei um gole da minha bebida. Não falei nada. Sheila recomeçou a dizer que estava se sentindo mal. Disse que precisava ir a um médico. Disse que ia acordar a Patti. Disse que ia se demitir, ir embora do estado, ir para Portland. Disse que primeiro precisava se despedir da Patti. E não parava. Queria que Patti a levasse de carro ao hospital para ela cuidar do dedo e dos olhos.

“Eu levo você”, falei. Eu não queria fazer isso, mas faria.

“Quero que a Patti me leve”, disse Sheila.

Segurava o pulso da mão machucada com a mão que estava boa, o dedo mindinho inchado, do tamanho de uma lanterna de bolso. “Além do mais, a gente precisa conversar. Tenho que contar a ela que vou para Portland. Preciso me despedir.”

Falei: “Acho que eu vou ter de contar isso a ela por você. Patti está dormindo”.

Sheila se irritou. “Somos amigas”, disse. “Tenho que conversar com ela. Tenho que contar eu mesma.”

Balancei a cabeça. “Ela está dormindo. Acabei de dizer.”

“Somos amigas e nos amamos”, disse Sheila. “Preciso me despedir dela.”

Sheila fez menção de sair da cozinha.

Comecei a me levantar. Falei: “Eu disse que levo você de carro”.

“Você está bêbado! Ainda nem foi para a cama.” Olhou seu dedo outra vez e disse: “Droga, por que isso tinha de acontecer?”.

“Não estou tão bêbado que não possa levar você para o hospital”, falei.

“Não vou andar de carro com você!”, gritou Sheila.

“Como quiser. Mas não vai acordar a Patti. Sua piranha sapatão”, falei.

“Seu sacana”, disse ela.

Foi o que ela disse e então saiu da cozinha e foi para a porta da frente sem usar o banheiro e sequer lavar o rosto. Eu me levantei e olhei pela janela. Sheila estava andando pela rua na direção da avenida Euclid. Não tinha ninguém acordado. Era cedo demais.

Terminei minha bebida e pensei em tomar mais uma.

Foi o que fiz.

Ninguém mais ouviu falar da Sheila depois disso. Pelo menos ninguém do meio dos vendedores de vitaminas. Ela andou para a avenida Euclid e saiu de nossas vidas.

Mais tarde Patti disse: “O que foi que aconteceu com a Sheila?”, e eu respondi: “Foi para Portland”.

 

 

Eu tinha tesão por Donna, a outra integrante do núcleo. Nós dançamos ao som de uns discos de Duke Ellington naquela noite da festa. Segurei Donna bem apertado, senti o cheiro de seu cabelo, fiquei com a mão bem embaixo de suas costas enquanto conduzia seus passos sobre o tapete. Foi ótimo dançar com ela. Eu era o único homem da festa e havia sete garotas, seis dançando umas com as outras. Só ficar olhando para a sala já era ótimo.

Eu estava na cozinha quando Donna entrou com o copo vazio. Ficamos sozinhos por um momento. Eu a segurei num breve abraço. Ela me abraçou também. Ficamos nos abraçando.

Aí ela disse: “Não. Agora não”.

Quando ouvi aquele “agora não”, soltei. Imaginei que a parada já estava ganha.

Eu estava na mesa pensando naquele abraço quando Sheila entrou com o dedo machucado.

Pensei mais um pouco em Donna. Terminei a bebida. Tirei o fone do gancho e fui para o quarto. Tirei a roupa e deitei perto de Patti. Fiquei quieto por um tempo, relaxando. Depois comecei. Mas ela não acordava. Depois fechei os olhos.

Era de tarde quando voltei a abrir os olhos. Estava sozinho na cama. A chuva soprava contra a janela. Uma rosquinha açucarada estava em cima do travesseiro de Patti e um copo de água na mesinha de cabeceira. Eu ainda estava embriagado e não conseguia entender nada. Sabia que era domingo e que estava perto do Natal. Comi a rosquinha e bebi a água. Voltei a dormir até que ouvi Patti passando aspirador na casa. Ela entrou no quarto e perguntou sobre Sheila. Foi aí eu que contei a ela, disse que ela tinha ido para Portland.

 

 

Mais ou menos uma semana depois do Ano-novo, Patti e eu ficamos tomando umas bebidas. Ela havia acabado de chegar do trabalho. Não era tão tarde assim, mas estava escuro e chuvoso. Dali a algumas horas eu teria que sair para o trabalho. Mas primeiro a gente ia tomar uns uísques e conversar. Patti estava cansada. Estava deprimida e já na terceira dose. Ninguém queria comprar vitaminas. Agora Patti só tinha Donna e Pam, uma garota seminova que era cleptomaníaca. Estávamos conversando sobre temas como tempos difíceis para os negócios e como escapar das multas por estacionamento proibido. Aí começamos a falar de como viveríamos melhor se nos mudássemos para o Arizona, algum lugar assim.

Servi mais uma bebida para a gente. Olhei para a janela. Arizona não era má ideia.

Patti disse: “Vitaminas”. Pegou seu copo e rodou o gelo. “Caramba!”, disse ela. “Sabe, quando eu era menina, isso era a última coisa que eu podia imaginar que ia fazer na vida. Puxa, nunca pensei que ia acabar vendendo vitaminas. Vitaminas de porta em porta. Isso é demais mesmo. Arrebenta com a cabeça da gente.”

“Eu também nunca imaginei isso, meu bem”, falei.

“Tá legal”, disse ela. “Você falou curto e grosso.”

“Meu anjo.”

“Não me venha com esse papo de meu de anjo”, disse ela. “Isto é duro, meu irmão. Esta vida não é moleza não, não tem jeito.”

Patti pareceu refletir um pouco. Balançou a cabeça. Depois terminou a bebida. Disse: “Chego a sonhar com vitaminas quando estou dormindo. Não tenho descanso. Não há descanso! Pelo menos você pode sair do seu dia de trabalho e deixar tudo para trás. Aposto que nunca sonhou com o seu trabalho. Aposto que não sonha que está encerando o assoalho ou sei lá o que você faz no seu serviço. Depois que você sai do maldito lugar, vem para casa e não fica sonhando com essas coisas, não é?”, berrou.

Respondi: “Não consigo lembrar o que é que eu sonho. Talvez não sonhe nada. Não lembro nada quando acordo”. Encolhi os ombros. Eu não guardava o que acontecia na minha cabeça quando estava dormindo. Não me importava com isso.

“Você sonha!”, disse Patti. “Mesmo sem lembrar. Todo mundo sonha. Se a gente não sonha, fica maluco. Li isso uma vez. É uma válvula de escape. As pessoas sonham quando estão dormindo. Senão acabam doidas. Mas quando eu sonho é com vitaminas. Entende o que estou dizendo?” Estava com os olhos fixos em mim.

“Sim e não”, falei.

Era uma questão simples.

“Sonho que estou mostrando vitaminas para vender”, disse ela. “Estou vendendo vitaminas dia e noite. Meu Deus, que vida”, disse.

Terminou seu drinque.

“Como vai a Pam?”, perguntei. “Continua afanando coisas?” Eu queria mudar de assunto. Mas não havia mais nada em que eu pudesse pensar.

Patti respondeu: “Merda”, e balançou a cabeça como se eu não entendesse nada de nada. Ficamos ouvindo o barulho da chuva.

“Ninguém está vendendo vitaminas”, disse Patti. Pegou o seu copo. Mas estava vazio. “Ninguém está comprando vitaminas. É o que estou dizendo para você. Não está ouvindo?”

Eu me levantei e fui preparar mais um drinque para nós. “Donna está vendendo alguma coisa?”, perguntei. Olhei para o rótulo da garrafa e esperei.

Patti disse: “Fez uma venda pequena há dois dias. Só isso. É só isso o que qualquer uma de nós conseguiu nesta semana. Não vou ficar surpresa se ela pedir demissão. Não vou criticar Donna por isso”, falou Patti. “Se eu estivesse no lugar dela, iria embora. Mas, se ela for embora, o que vai acontecer? Vou voltar à estaca zero, é isso. Estaca zero. Meio de inverno, pessoas doentes em todo o estado, pessoas morrendo, e ninguém acha que precisa de vitaminas. Eu mesma estou toda doente.”

“Qual é o problema, meu bem?” Pus a bebida na mesa e sentei. Ela continuou como se eu não tivesse falado nada. Talvez não tivesse mesmo.

“Eu sou o meu único cliente”, disse ela. “Achei que tomar todas aquelas vitaminas fosse fazer bem para a minha pele. Você acha que a minha pele está boa? Será que uma pessoa pode ter uma overdose de vitaminas? Estou chegando a ponto de não conseguir nem mais cagar como uma pessoa normal.”

“Meu anjo”, falei.

Patti disse: “Você nem liga se eu tomo vitaminas. Essa é a questão. Você não liga para nada. O limpador de para-brisa pifou hoje à tarde no meio da chuva. Quase sofri um acidente. Escapei por muito pouco”.

Continuamos a beber e a conversar até chegar a hora de eu ir para o trabalho. Patti disse que ia ficar de molho na banheira, se não caísse no sono primeiro. “Estou dormindo de pé”, disse ela. Falou: “Vitaminas. Não existe mais nada no mundo”. Olhou a cozinha à sua volta. Olhou seu copo vazio. Estava embriagada. Mas deixou que eu lhe desse um beijo. Depois saí para o trabalho.

 

 

Tinha um lugar aonde eu ia depois do trabalho. Comecei a ir lá por causa da música e porque lá eu podia tomar uma bebida mesmo depois que tudo já estava fechado. Era um bar chamado Off-Broadway. Um lugar de negros num bairro de negros. O dono era um negro chamado Khaki. O pessoal ia aparecendo depois que os outros bares fechavam as portas. Pediam o drinque especial da casa — refrigerante com uma dose de uísque — ou então traziam suas próprias bebidas por baixo do paletó, pediam refrigerante e faziam seus drinques. Os músicos apareciam para tocar de improviso e os bebedores que queriam continuar bebendo iam para beber e ouvir música. Às vezes as pessoas dançavam. Mas em geral sentavam por ali, bebiam e escutavam.

De vez em quando um negro dava uma garrafada na cabeça de outro negro. Uma vez correu a história de que um sujeito seguiu o outro até o banheiro e cortou sua garganta quando ele estava com as mãos para baixo, mijando. Mas nunca vi nenhuma encrenca. Nada que o Khaki não pudesse contornar. Khaki era um negro grande, uma careca que brilhava de um jeito fantástico sob as luzes fluorescentes. Usava camisas havaianas que pendiam folgadas por cima da calça. Acho que sempre tinha alguma coisa enfiada na cintura. Talvez pelo menos um porretezinho de borracha. Se alguém começava a sair da linha, Khaki ia até lá onde a encrenca estava começando. Colocava a mãozona no ombro do sujeito, dizia umas poucas palavras e pronto. Fazia meses que eu ia lá. Gostava quando ele me falava assim: “Como é que você está passando esta noite, amigo?”. Ou: “Amigo, faz tempo que não vejo você”.

O Off-Broadway foi aonde levei Donna quando a gente saiu. Foi o único encontro que tivemos.

 

 

Eu tinha acabado de sair do hospital, pouco depois da meia-noite. O céu estava limpo e havia estrelas. Eu ainda me sentia meio zonzo por causa do uísque que tinha tomado com Patti. Mas eu estava pensando eu dar um pulo ao New Jimmy’s para tomar um drinque rapidinho antes de ir para casa. O carro de Donna estava estacionado na vaga ao lado do meu carro, e Donna estava dentro do carro. Lembrei nosso abraço na cozinha. “Agora não”, ela tinha dito.

Donna baixou o vidro da janela e bateu as cinzas do seu cigarro.

“Não consegui dormir”, disse ela. “Eu estava com umas coisas dentro da minha cabeça e não consegui dormir.”

Falei: “Donna. Puxa, estou contente em ver você, Donna”.

“Não sei o que há de errado comigo”, disse ela.

“Quer ir a algum lugar para tomar um drinque?”, falei.

“Patti é minha amiga”, disse ela.

“É minha amiga também”, falei. Depois eu disse: “Vamos lá”.

“Sem confusão, você entende?”, disse ela.

“Tem um lugar legal. É um bar de negros”, expliquei. “Eles têm música. A gente pode tomar um drinque, escutar um pouco de música.”

“Quer dirigir o meu carro?”, disse Donna.

Falei: “Chega para lá”.

Donna logo começou a falar de vitaminas. As vitaminas estavam no fundo do poço, as vitaminas estavam em queda livre. O mercado de vitaminas era um buraco sem fim.

Donna disse: “Detesto fazer isto com a Patti. É minha melhor amiga e está tentando dar um jeito na situação para a gente. Mas talvez eu precise largar o emprego. Isso vai ficar entre nós. Jure! Mas preciso comer. Preciso pagar o aluguel. Preciso de sapatos novos e de um casaco novo. As vitaminas não vão poder me dar isso”, disse Donna. “Não acho que as vitaminas não vão voltar ao que eram. Não falei nada com a Patti. Como eu disse, ainda estou pensando”.

Donna deixou a mão perto da minha perna. Baixei a mão e apertei seus dedos. Ela também apertou em resposta. Então soltou a mão e acendeu o isqueiro. Depois que acendeu o cigarro, pôs a mão de volta no mesmo lugar. “O pior de tudo é que detesto deixar a Patti na pior. Entende o que estou dizendo? A gente formava uma equipe.” Pegou seu cigarro e me deu. “Sei que é um tipo diferente”, disse ela, “mas experimente, vamos.”

Parei no estacionamento do Off-Broadway. Três negros estavam encostados num Chrysler velho com o para-brisa rachado. Estavam ali só à toa, passavam de um para o outro uma garrafa dentro de um saco. Deram uma olhada para nós. Saí do carro, dei a volta e abri a porta para Donna. Verifiquei se as portas estavam fechadas, peguei Donna pelo braço e seguimos em direção à rua. Os negros ficaram só olhando.

Falei: “Você não está pensando em se mudar para Portland, não é?”.

Estávamos na calçada. Pus o braço em volta da sua cintura.

“Não sei nada sobre Portland. Portland não passou pela minha cabeça nenhuma vez.”

A metade da frente do Off-Broadway era como um café-bar normal. Uns poucos negros sentados no balcão e mais uns poucos debruçados sobre pratos de comida nas mesas cobertas com toalhas vermelhas impermeáveis. Atravessamos o café e entramos na sala maior, nos fundos. Tinha um balcão comprido, compartimentos com divisórias junto à parede e mais ao fundo um palco onde os músicos podiam se instalar. Na frente do palco havia um espaço que fazia as vezes de uma pista de dança. Os bares e as boates ainda estavam abertos, portanto as pessoas ainda não tinham aparecido em número mais expressivo. Ajudei Donna a tirar o casaco. Pegamos um dos compartimentos e colocamos nossos cigarros sobre a mesa. A garçonete negra chamada Hannah veio nos atender. Hannah e eu nos cumprimentamos com um aceno de cabeça. Ela olhou para Donna. Pedi dois especiais da casa e decidi relaxar e curtir a noite.

Depois que os drinques vieram, que eu paguei e tomamos um gole cada um, começamos a nos abraçar. Ficamos nisso por um tempo, apertando e apalpando, beijando o rosto um do outro. De vez em quando Donna parava e recuava a cabeça, me empurrava um pouco para trás, depois me segurava pelos pulsos. Fitava dentro dos meus olhos. Então suas pálpebras se fechavam devagar e a gente recomeçava a se beijar. Não demorou muito e o lugar começou a ficar cheio de gente. Paramos de nos beijar. Mas fiquei com o braço em volta dela. Donna pôs os dedos em cima da minha perna. Dois trompetistas negros e um baterista branco começaram a passear por um som qualquer. Achei que eu e Donna podíamos beber outro drinque e ficar ouvindo a música. Depois iríamos para a casa dela, terminar o que tínhamos começado.

Eu havia acabado de pedir mais dois drinques para Hannah quando um negro chamado Benny se aproximou com outro negro — grandalhão, muito bem-vestido. O grandalhão tinha uns olhos vermelhos e vestia um terno com colete risca de giz. Estava de camisa cor-de-rosa, gravata, sobretudo, chapéu de feltro — tudo em cima.

“Como vai o meu velho?”, perguntou Benny.

Benny estendeu a mão para um cumprimento fraternal. Eu e Benny tínhamos batido uns papos. Benny sabia que eu gostava de música e costumava vir conversar comigo quando calhava de estarmos os dois no bar. Ele gostava de conversar sobre Johnny Hodges, contar como tinha tocado saxofone num naipe de fundo para Johnny solar. Benny dizia coisas como: “Quando Johnny e eu tocamos por um tempo em Mason City”.

“Oi, Benny”, falei.

“Eu queria te apresentar o Nelson”, disse Benny. “Acabou de chegar do Viet­nã hoje. De manhã. Veio aqui ouvir um som legal. Ele trouxe seus sapatos de dançar, por via das dúvidas.” Benny olhou para Nelson e acenou com a cabeça. “Este aqui é o Nelson.”

Eu olhava os sapatos lustrosos de Nelson e depois olhei para Nelson. Ele parecia querer se lembrar de onde me conhecia. Ficou me examinando. Depois soltou um sorrisinho maroto que deixou os dentes à mostra.

“Esta é Donna”, falei. “Donna, este é Benny, e este é Nelson. Nelson, esta é Donna.”

“Oi, garota”, disse Nelson, e Donna respondeu na hora: “Oi, Nelson. Oi, Benny”.

“Acho que a gente podia puxar uma cadeira e ficar com vocês, que tal?”, disse Benny. “Tudo bem?”

Respondi: “Claro”.

Mas lamentei que eles não tivessem ido para outro lugar.

“A gente não vai ficar muito tempo”, falei. “Só vamos terminar este drinque e pronto.”

“Eu sei, cara, eu sei”, disse Benny. Sentou-se à minha frente, depois que Nelson se acomodou numa cadeira. “Coisas para fazer, lugares para ir. Sim, senhor, o Benny sabe”, disse Benny, e piscou o olho.

Nelson olhou para Donna, à sua frente. Depois tirou o chapéu. Deu a impressão de procurar alguma coisa na aba enquanto rodava o chapéu entre as mãos grandes. Abriu espaço na mesa para o chapéu. Olhou para Donna. Sorriu e aprumou os ombros. Ele aprumava os ombros toda hora, em intervalos de minutos. Era como se estivesse muito cansado de carregar os próprios ombros para lá e para cá.

“Você e ele são mesmo bons amigos, não é?”, Nelson perguntou para Donna.

“Somos bons amigos, sim”, respondeu Donna.

Hannah se aproximou. Benny pediu refrigerante. Hannah se afastou e Nelson tirou uma garrafa de uísque do sobretudo.

“Bons amigos”, disse Nelson. “Bons amigos de verdade.” Desatarraxou a tampa de seu uísque.

“Tome cuidado, Nelson”, disse Benny. “Não deixe ninguém ver isso. Nelson acabou de descer do avião, vindo do Vietnã”, disse Benny.

Nelson levantou a garrafa e bebeu mais um pouco do seu uísque. Atarraxou de novo a tampinha, deixou a garrafa na mesa e pôs seu chapéu em cima. “Bons amigos de verdade”, disse.

Benny olhou para mim e revirou os olhos. Mas ele também estava embriagado. “Preciso entrar em forma”, me disse. Tomou o refrigerante nos copos dos dois, depois segurou os copos embaixo da mesa e entornou um pouco de uísque neles. Meteu a garrafa no bolso do casaco. “Cara, já faz um mês que não ponho a boca numa palheta de saxofone. Preciso me recuperar.”

Estávamos meio amontoados no compartimento, os copos na nossa frente, o chapéu de Nelson em cima da mesa. “Você”, Nelson falou para mim. “Você, você tem outra mulher, não é? Esta mulher linda aqui não é a sua mulher. Estou sabendo. Mas você e esta mulher são bons amigos de verdade. Acertei?”

Tomei um pouco da minha bebida. Não consegui sentir o gosto do uísque. Não estava conseguindo sentir o gosto de nada. Falei: “Lá no Vietnã é mesmo essa merda toda que a gente vê na televisão?”.

Nelson tinha os olhos vermelhos fixos em mim. Ele disse: “O que quero dizer é: você sabe onde está a sua mulher? Aposto que ela está solta por aí com algum gostosão, pondo os peitinhos de fora para ele apertar e segurando o peru dele, enquanto você fica aqui todo crente que é o rei do pedaço com a sua boa amiga. Aposto que ela também tem um bom amigo”.

“Nelson”, disse Benny.

“Que Nelson que nada”, disse Nelson.

Benny disse: “Nelson, vamos deixar essa gente em paz. Tem outra pessoa naquele compartimento ali. Outra pessoa de quem já te falei. Nelson acabou de descer de um avião hoje de manhã”, disse Benny.

“Aposto que sei o que você está pensando”, disse Nelson. “Aposto que está pensando: Agora me aparece esse negro grandalhão embriagado e o que é que eu faço com ele? Talvez eu precise dar um chute na bunda dele! É isso que você está pensando?”

Olhei em volta. Vi Khaki parado perto do palco, os músicos dando duro atrás dele. Algumas pessoas estavam dançando na pista. Achei que Khaki tinha olhado bem na minha direção — mas se fez isso logo desviou os olhos para o outro lado.

“Não é a sua vez de falar?”, disse Nelson. “Estou só querendo gozar da sua cara. Não gozei da cara de ninguém desde que deixei o Vietnã. Eu gozei um bocado da cara daqueles moleques vietnamitas.” Sorriu outra vez, os lábios grandes se esticaram. Depois parou de sorrir e ficou só olhando.

“Mostre para eles aquela orelha”, disse Benny. Pôs o copo na mesa. “Nelson tirou a orelha de um daqueles sem-vergonha de lá”, disse Benny. “Carrega a orelha para tudo que é lado. Mostre, Nelson.”

Nelson ficou quieto. Então começou a apalpar os bolsos do sobretudo. Tirou coisas de dentro de um bolso. Tirou umas chaves e uma caixa de remédio para tosse.

Donna disse: “Não quero ver uma orelha. Argh. Que nojo. Meu Deus”. Olhou para mim.

“A gente precisa ir embora”, falei.

Nelson ainda ficou remexendo nos bolsos. Tirou uma carteira de um bolso interno do paletó e colocou em cima da mesa. Deu umas palmadinhas na carteira. “Tem cinco notas das grandes aqui dentro. Escute só”, disse ele para Donna. “Vou dar duas notas para você. Você e eu, hein? Dou duas das grandes para você e depois você me faz um boquete. Do mesmo jeito que a mulher dele está fazendo com algum gostosão por aí. Está ouvindo? Você sabe que ela está caindo de boca na pica de algum sujeito neste exato momento, enquanto ele está aqui com a mão metida embaixo da sua saia. Pois é, olho por olho. Tome aqui.” Puxou a pontinha das notas para fora da carteira. “Cacete, e aqui tem mais cem para o seu bom amigo, para que ele não se sinta mal, deixado de lado. Ele não precisa fazer nada. Você não precisa fazer nada”, disse Nelson para mim. “É só ficar aí bebendo e ouvindo a música. Boa música. Eu e essa mulher vamos juntos como bons amigos. E depois ela volta sozinha. Não vai demorar, ela vai voltar logo.”

“Nelson”, disse Benny. “Isso não é jeito de falar, Nelson.”

Nelson sorriu. “Já terminei de falar”, disse.

Achou o que estava procurando com a mão. Era uma cigarreira de prata. Abriu a caixinha. Olhei a orelha lá dentro. Estava sobre um tufo de algodão. Parecia um cogumelo seco. Mas era uma orelha de verdade e estava presa numa correntinha de chaveiro.

“Meu Deus”, disse Donna. “Argh.”

“Não é incrível?”, disse Nelson. Estava olhando para Donna.

“Chega. Cai fora daqui”, disse Donna.

“Garota”, disse Nelson.

“Nelson”, falei. E então Nelson fixou em mim seus olhos vermelhos. Empurrou o chapéu, a carteira e a cigarreira para o lado.

“O que é que você quer?”, perguntou Nelson. “Dou o que você quiser.”

 

 

Khaki estava com uma mão no meu ombro e outra no ombro de Benny. Curvou-se sobre a mesa, a cabeça reluzia sob as luzes. “Como vão vocês? Estão se divertindo?”

“Tudo legal, Khaki”, respondeu Benny. “Tudo ótimo. Esses dois aqui estavam se preparando para ir embora. Eu e Nelson vamos ficar e ouvir a música.”

“Que bom”, disse Khaki. “Todo mundo tem de ficar feliz é o meu lema.”

Olhou em volta. Viu a carteira de Nelson na mesa e a cigarreira aberta perto da carteira. Viu a orelha.

“É uma orelha de verdade?”, perguntou Khaki.

Benny disse: “É, sim. Mostre a orelha para ele, Nelson. O Nelson acabou de descer de um avião que veio do Vietnã com essa orelha. Essa orelha viajou metade do planeta para vir parar aqui nesta mesa hoje à noite. Nelson, mostre para ele”, disse Benny.

Nelson pegou a caixa e a estendeu para Khaki.

Khaki examinou a orelha. Levantou a correntinha e balançou a orelha na frente do rosto. Olhou bem para ela. Deixou a orelha balançar de um lado para o outro na ponta da correntinha. “Ouvi falar dessas orelhas secas, e também de caralhos secos e outras coisas assim.”

“Tirei essa daí de um moleque vietnamita”, disse Nelson. “Ele já não podia escutar nada mesmo. Eu queria uma lembrança.”

Khaki devolveu a orelha à caixinha.

Donna e eu começamos a sair do compartimento.

“Garota, não vá”, disse Nelson.

“Nelson”, disse Benny.

Khaki olhava para Nelson. Eu estava no canto do compartimento, com o casaco de Donna na mão. Minhas pernas tinham enlouquecido.

Nelson levantou a voz. Falou: “Se você sair com esse babaca aí, deixar que ele meta a cara nas suas carnezinhas gostosas, os dois vão ter de acertar as contas comigo”.

Começamos a nos afastar do compartimento. As pessoas estavam olhando.

“O Nelson acabou de descer de um avião que chegou do Vietnã hoje de manhã”, ouvi Benny dizer. “A gente ficou o dia todo bebendo. Foi o dia mais comprido do mundo. Mas eu e ele vamos nos comportar direito, Khaki.”

Nelson berrou alguma coisa mais alto do que a música. Berrou: “Não vai adiantar nada! Podem fazer o que quiserem que não vai adiantar nada!”. Ouvi Nelson gritar isso e depois não ouvi mais nada. A música parou e depois recomeçou. Não olhamos para trás. Continuamos andando. Saímos para a calçada.

 

 

Abri a porta do carro para ela. Peguei o caminho de volta em direção ao hospital. Donna ficou sentada quieta no banco. Chegou a usar o isqueiro para acender um cigarro, mas não disse nada.

Tentei falar alguma coisa. Falei: “Escute, Donna, não fique chateada por causa disso. Lamento o que aconteceu”, falei.

“Até que aquele dinheiro cairia bem”, disse Donna. “É nisso que eu estava pensando.”

Continuei dirigindo e não olhei para ela.

“É verdade”, disse ela. “Aquele dinheiro poderia ter me ajudado muito.” Balançou a cabeça. “Sei lá”, disse. Baixou o queixo e chorou.

“Não chore”, falei.

“Não vou trabalhar amanhã, hoje, seja quando for; o alarme tocou”, disse ela. “Não vou lá. Vou embora desta cidade. Para mim o que aconteceu agora foi um sinal.” Apertou o isqueiro do carro e esperou ele subir de novo.

Estacionei ao lado do meu carro e desliguei o motor. Olhei pelo espelho retrovisor, mais ou menos achando que eu ia ver o Chrysler velho entrar no estacionamento atrás de mim, com Nelson no banco do motorista. Fiquei com as mãos no volante por um minuto e depois deixei que caíssem nas minhas pernas. Não queria tocar em Donna. O nosso abraço naquela noite na cozinha de casa, os nossos beijos no Off-Broadway, tudo estava acabado.

Perguntei: “O que você vai fazer?”. Mas eu não estava ligando. Naquela hora, ela podia até morrer de um ataque do coração que para mim não ia ter a menor importância.

“Talvez eu vá mesmo para Portland”, disse ela. “Deve haver alguma coisa em Portland. Portland anda na cabeça de todo mundo ultimamente. Portland é a bola da vez. Portland isso, Portland aquilo. Portland é um lugar como qualquer outro. Dá tudo no mesmo.”

“Donna”, falei. “É melhor eu ir embora.”

Comecei a sair do carro. Abri um pouco a porta e a luz interna acendeu.

“Pelo amor de Deus, apague essa luz!”

Saí depressa. “Boa noite, Donna”, falei.

Deixei Donna de olhos cravados no painel do carro. Liguei meu carro e acendi o farol. Engrenei a primeira e pisei no acelerador.

 

 

Me servi de uísque, bebi um pouco e levei o copo para o banheiro. Escovei os dentes. Depois abri uma gaveta. Patti gritou alguma coisa lá do quarto. Abriu a porta do quarto. Ela ainda estava vestida. Tinha dormido sem trocar de roupa, acho.

“Que horas são?”, berrou. “Dormi demais! Puxa, meu Deus! Você me deixou dormir demais, seu bandido!”

Ela estava uma fera. Ficou parada na porta, toda vestida. Parecia que tinha se arrumado para ir ao trabalho. Só que não havia nenhuma maleta de amostras, nenhuma vitamina. Ela teve um pesadelo, só isso. Começou a sacudir a cabeça de um lado para o outro.

Eu não ia conseguir aguentar mais nada naquela noite. “Vá dormir de novo, meu anjo. Estou procurando uma coisa”, falei. Entornei umas coisas que estavam na caixa de remédios. Coisas caíram dentro da pia. “Onde está a aspirina?”, perguntei. Entornei mais coisas. Eu não queria nem saber. E as coisas não paravam de cair.