A caminhonete velha com placa de Minnesota estaciona numa vaga diante da janela. Há um homem e uma mulher no banco da frente e dois meninos no banco de trás. É julho, a temperatura beira os trinta e oito graus. Essas pessoas parecem meio transtornadas. Há roupas penduradas lá dentro; malas, caixas e outras coisas amontoadas atrás. Pelo que Harley e eu conseguimos entender mais tarde, foi tudo o que sobrou depois que o banco em Minnesota tomou deles a casa, o caminhão, o trator, os implementos agrícolas e algumas vacas.
As pessoas dentro do carro ficam quietas um instante, como que tentando se recuperar. O ar-condicionado do nosso apartamento está a todo vapor. Harley está nos fundos, cortando grama. Há uma discussão no banco da frente do carro e depois ele e ela saem e vêm até a porta da frente. Toco meu cabelo com a mão para ter certeza de que está no lugar e espero até que toquem a campainha pela segunda vez. Aí vou atender. “Estão procurando apartamento?”, digo. “Entrem, aqui está mais fresco.” Trago todos para dentro da sala. A sala é onde eu trato de negócios. É onde recebo o pagamento dos aluguéis, assino os recibos e falo com as partes interessadas. E onde também faço o cabelo. Me defino como uma estilista. É o que diz meu cartão. Não gosto da palavra cabeleireira. É uma palavra antiquada. Tenho uma cadeira que fica no canto da sala e um secador que posso empurrar para trás da cadeira. E há uma pia, que Harley instalou alguns anos atrás. Ao lado da cadeira, tenho uma mesa com revistas. As revistas são velhas. As capas de algumas foram arrancadas. Mas as pessoas olham qualquer coisa enquanto ficam embaixo do secador.
O homem diz seu nome.
“Meu nome é Holits.”
Diz que a mulher é sua esposa. Mas ela nem me olha. Em vez disso, fica olhando para as unhas. Ela e Holits não sentam, nenhum dos dois. Holits diz que estão interessados numa das unidades mobiliadas.
“Quantas pessoas são?” Mas só estou perguntando o que sempre pergunto. Já sei quantos são. Vi os dois meninos no banco de trás do carro. Dois e dois são quatro.
“Eu, ela e os garotos. Os garotos têm treze e catorze, e os dois vão dividir um quarto, como sempre.”
Ela fica de braços cruzados e segura as mangas da blusa. Olha para a pia e a cadeira do salão de beleza como se nunca tivesse visto uma coisa parecida. Talvez não tenha mesmo.
“Eu faço cabelo”, digo.
Ela faz que sim com a cabeça. Em seguida, dá uma olhadinha rápida no meu vaso de planta. Tem exatamente cinco folhas.
“Está precisando de um pouco de água”, digo. Me aproximo e toco uma das folhas. “Por aqui tudo precisa de água. Nem no ar tem água suficiente. Chove só três vezes por ano, e isso quando temos sorte. Mas a gente se acostuma. Precisa se acostumar. Mas em todo canto por aqui tem ar-condicionado.”
“Quanto custa o apartamento?”, pergunta Holits.
Respondo e ele se volta para a mulher para saber o que ela acha. Mas ele parece estar olhando para uma parede. Ela nem retribui o olhar dele. “Acho que a senhora precisa mostrar pra gente primeiro”, diz ele. Portanto, pego a chave do 17 e depois vamos para fora.
Ouço Harley antes que ele apareça.
Então ele surge entre os prédios. Está andando atrás do cortador de grama, de bermuda e camiseta, com o chapéu de palha que comprou em Nogales. Passa o tempo cortando grama e fazendo pequenos serviços de manutenção. A gente trabalha para uma empresa, a Fulton Terrace, Inc. São os proprietários deste lugar. Se há algum problema mais sério, alguma encrenca no ar-condicionado, por exemplo, ou algum defeito grave nas instalações hidráulicas, temos uma lista de telefones para ligar.
Aceno para ele. Tenho de fazer isso. Harley tira a mão do cabo do cortador de grama e acena de volta. Depois desce o chapéu sobre a testa e volta a se concentrar no que está fazendo. Termina de cortar a grama daquele trecho, dá a volta e segue na direção da rua.
“Aquele é o Harley.” Sou obrigada a gritar. Entramos pela lateral do prédio e subimos uma escada. “Em que é que o senhor trabalha, senhor Holits?”, pergunto.
“Ele é fazendeiro”, responde a mulher.
“Não sou mais.”
“Por aqui não tem muito serviço para um fazendeiro.” Falo sem pensar.
“A gente tinha uma fazenda em Minnesota. A gente plantava trigo. Umas vacas. E Holits sabe cuidar de cavalos. Sabe tudo de cavalos.”
“Está tudo bem, Betty.”
Então começo a ter uma ideia da situação. Holits está desempregado. Não é da minha conta, e lamento muito, se esse é mesmo o caso — é, sim, depois fica claro —, mas quando paramos na frente da unidade tenho de falar uma coisa. “Se vocês resolverem aceitar, é o primeiro mês, o último mês e cinquenta por cento de depósito por garantia.” Olho para a piscina na hora em que digo isso. Algumas pessoas estão sentadas nas cadeiras da piscina e tem uma pessoa dentro da água.
Holits enxuga o rosto com as costas da mão. O cortador de grama do Harley está roncando. Mais ao longe, carros passam em velocidade pela Calle Verde. Os dois meninos saíram da caminhonete. Um deles fica parado em posição de sentido, as pernas unidas, os braços colados ao corpo. Mas quando olho vejo que ele começa a bater com os braços para cima e para baixo, e começa a pular, como se quisesse sair voando. O outro está se agachando junto à caminhonete, ao lado do banco do motorista, fazendo flexões de joelho.
Eu me viro para Holits.
“Vamos dar uma olhada”, diz ele.
Giro a chave e a porta abre. É só um pequeno apartamento mobiliado de dois quartos. Todo mundo já viu centenas de apartamentos assim. Holits para no banheiro e aperta a descarga. Fica olhando até a caixa encher. Mais adiante, diz: “Aqui podia ser o nosso quarto”. Está falando do quarto que dá para a piscina. Na cozinha, a mulher se apoia na beira da pia e olha pela janela.
“Aí fica a piscina”, digo.
Ela faz que sim com a cabeça. “A gente já ficou nuns motéis que tinham piscina. Mas tem cloro demais na água das piscinas.”
Espero que ela continue a falar. Mas ela não diz mais nada. Também não consigo pensar em mais nada para dizer.
“Acho que não precisamos perder mais tempo. Acho que vamos ficar com ele.” Holits olha para a mulher quando diz isso. Dessa vez os olhos dela encaram os deles. A mulher assente com a cabeça. Ele solta um suspiro alto. Em seguida ela faz uma coisa. Começa a estalar os dedos. Uma das mãos ainda está apoiada na beira da pia, mas com a outra ela começa a estalar os dedos. Estala, estala, estala, como se estivesse chamando seu cachorro ou tentando atrair a atenção de alguém. Depois para e corre as unhas pela bancada da cozinha.
Não sei como reagir. Holits também não. Ele mexe os pés.
“Vamos voltar para o escritório e oficializar o negócio”, digo. “Estou contente.”
Eu estava contente. Naquela época do ano, tínhamos muitas unidades vazias. E aquela gente parecia confiável. Estavam só numa maré de azar, mais nada. Não há nenhuma vergonha nisso.
Holits paga em dinheiro — o primeiro mês, o último, e cinquenta por cento de depósito. Conta as notas de cinquenta dólares enquanto fico olhando. U. S. Grants, assim ele chama as notas, por causa do general estampado nas cédulas, mas parece nunca ter visto tantas. Assino o recibo e lhe dou duas chaves. “O senhor está quite.”
Ele olha as chaves. Dá uma para a mulher. “Então estamos no Arizona. Você nunca imaginou que fosse conhecer o Arizona, não é?”
Ela balança a cabeça. Está tocando uma das folhas da minha plantinha.
“Está precisando de água”, digo.
Ela solta a folha e se vira para a janela. Me aproximo dela. Harley ainda está cortando grama. Mas agora está na frente do prédio. Houve uma conversa sobre o trabalho de um fazendeiro e assim, por um instante, imagino que Harley está empurrando um arado em vez de estar manobrando seu cortador de grama Black & Decker.
* * *
Vejo-os descarregando caixas, malas e roupas. Holits leva para dentro alguma coisa com tiras penduradas. Demoro um instante para entender que é uma rédea. Depois não sei o que fazer. Não sinto vontade de fazer nada. Por isso pego as notas de cinquenta na caixa. Acabei de colocar as notas ali, mas tiro de novo. As notas vieram de Minnesota. Quem sabe aonde elas irão parar na semana que vem? Podem ir para Las Vegas. Tudo o que sei de Las Vegas é o que vejo na televisão — o bastante para encher um dedal. Posso imaginar uma das notas de cinquenta chegando à praia de Waikiki ou a algum outro lugar. Miami ou Nova York. Nova Orleans. Penso numa dessas notas passando de mão em mão em pleno Mardi Gras, o carnaval de Nova Orleans. Elas podem ir para qualquer lugar, e pode acontecer qualquer coisa por causa delas. Escrevo meu nome à caneta na testa larga e velha da figura do general Ulysses S. Grant, no meio da nota: MARGE. Deixo bem nítido. Faço o mesmo em todas as notas, logo acima das sobrancelhas grossas. As pessoas vão parar no meio de uma compra e vão pensar: Quem será essa Marge? É isso que vão se perguntar, Quem será essa Marge?
Harley entra vindo de fora e lava as mãos na minha pia. Sabe que é uma coisa que eu não gosto que faça. Mas ele vai em frente e lava as mãos assim mesmo.
“Esse pessoal de Minnesota”, diz. “Os suecos. Estão muito longe de casa.” Enxuga as mãos numa toalha de papel. Quer que eu lhe diga o que sei. Mas não sei nada. Não parecem suecos e não falam como suecos.
“Não são suecos”, digo para ele. Mas Harley age como se não me escutasse.
“E o que é que ele faz?”
“É fazendeiro.”
“O que você sabe sobre isso?”
Harley tira o chapéu e coloca na minha cadeira. Passa a mão no cabelo. Depois olha o chapéu e põe na cabeça outra vez. Parece que não desgruda do chapéu. “Por aqui não tem trabalho para um fazendeiro. Você falou isso para ele?” Pega uma lata de refrigerante na geladeira e vai se sentar na sua cadeira reclinável. Apanha o controle remoto, aperta alguma coisa e a televisão solta um chiado. Aperta mais alguns botões até achar o que está procurando. É um programa de hospital. “O que mais faz o sueco? Além de ser fazendeiro?”
Não sei, por isso não digo nada. Mas Harley já está envolvido pelo programa. Na certa já esqueceu a pergunta que me fez. Uma sirene soa. Ouço o ganido dos pneus. Na tela, uma ambulância para na frente de um setor de emergência, as luzes vermelhas piscam. Um homem salta do veículo e dá a volta correndo para a abrir as portas de trás.
Na tarde seguinte, os meninos pegam a mangueira emprestada e lavam a caminhonete. Limpam por dentro e por fora. Um pouco depois vejo que a mulher sai de carro. Está de salto alto e com um vestido bonito. Vai procurar emprego, imagino. Pouco depois, vejo os meninos fazendo bagunça na piscina, de calção de banho. Um deles pula do trampolim e nada até a outra ponta por baixo d’água. Sobe cuspindo água e sacudindo a cabeça. O outro menino, o que tinha feito flexões de joelhos no dia anterior, está deitado de bruços em cima de uma toalha na ponta da piscina. Mas o outro menino continua nadando de uma ponta a outra da piscina, toca a parede e faz a volta dando um chutezinho na borda.
Há mais duas pessoas lá fora. Estão em espreguiçadeiras, uma de cada lado da piscina. Uma delas é Irving Cobb, cozinheiro do restaurante do Denny. Quer ser chamado de Spuds. As pessoas se habituaram a chamá-lo assim, Spuds, em vez de Irv ou de algum outro apelido. Spuds tem cinquenta e cinco anos e é careca. Já está parecendo um pedaço de carne-seca, mesmo assim quer tomar mais sol. Neste momento, sua nova mulher, Linda Cobb, está trabalhando no K. Mart. Spuds trabalha à noite. Mas ele e Linda Cobb arrumaram a vida de um jeito que os dois têm os sábados e os domingos livres. Connie Nova está sentada na outra cadeira. Se inclina para a frente e passa loção nas pernas. Está quase nua — só um maiozinho de duas peças cobrindo o corpo. Connie Nova é garçonete de boate. Mudou-se para cá faz seis meses, com seu assim chamado noivo, um advogado alcoólatra. Mas ela se livrou dele. Agora mora com um estudante de faculdade de cabelo comprido cujo nome é Rick. Por acaso sei que agora ele está fora da cidade, visitando parentes. Spuds e Connie estão de óculos escuros. O rádio portátil de Connie está ligado.
Spuds tinha ficado viúvo havia pouco tempo quando se mudou para cá, mais ou menos um ano atrás. Mas depois de ficar solteiro de novo por alguns meses, casou com Linda. É uma mulher ruiva de uns trinta e poucos anos. Não sei como se conheceram. Mas uns meses atrás, à noite, Spuds e a nova sra. Cobb convidaram a mim e Harley para um jantar excelente, que Spuds preparou. Depois do jantar, ficamos na sala deles tomando bebidas doces nuns copos grandes. Spuds perguntou se a gente queria ver filmes domésticos. Respondemos que sim, claro. Assim Spuds pendurou uma tela e instalou seu projetor. Linda Cobb nos serviu mais um pouco daquela bebida doce. Que mal pode fazer?, perguntei a mim mesma. Spuds começou a mostrar filmes de uma viagem que ele e sua falecida mulher tinham feito ao Alasca. Começava com ela pegando o avião em Seattle. Spuds falava enquanto o filme ia passando. A falecida tinha cinquenta e poucos anos, boa aparência, embora talvez fosse um pouco cheinha demais. Tinha um cabelo bonito.
“Essa é a primeira mulher do Spuds”, disse Linda Cobb. “É a primeira senhora Cobb.”
“É a Evelyn”, disse Spuds.
A primeira mulher ficou na tela por bastante tempo. Era engraçado ver a mulher e ouvir os dois falando sobre ela daquele jeito. Harley lançou um olhar para mim, então logo vi que ele também estava pensando alguma coisa. Linda Cobb perguntou se queríamos mais um drinque ou um biscoitinho de amêndoas. Não queríamos. Spuds estava falando alguma coisa sobre a primeira sra. Cobb outra vez. Ela ainda estava na porta do avião, sorrindo e mexendo a boca, mas tudo o que ouvíamos era o barulho do filme rodando no projetor. As pessoas eram obrigadas a se desviar dela para entrar no avião. Ela continuava acenando para a câmera, acenando para nós, ali, na sala do Spuds. Ela não parava de acenar. “Lá está a Evelyn de novo”, dizia a nova sra. Cobb toda vez que a primeira sra. Cobb aparecia na tela.
Spuds teria passado filmes para nós a noite inteira, mas dissemos que precisávamos ir embora. Harley deu uma desculpa.
Não lembro o que ele falou.
Connie Nova está deitada de costas na cadeira, os óculos escuros cobrem metade de seu rosto. As pernas e a barriga reluzem com o óleo de bronzear. Certa noite, pouco depois de se mudar para cá, ela deu uma festa. Foi antes de dar o fora no advogado e trazer o cabeludo para morar com ela. Chamou sua festa de inauguração da casa nova. Harley e eu fomos convidados, junto com um bando de gente. Fomos, mas não nos aproximamos das outras pessoas. Achamos um lugar para sentar perto da porta e ali ficamos até irmos embora. Também não demoramos muito. O namorado de Connie estava oferecendo um cartão premiado. O prêmio eram seus serviços advocatícios gratuitos para um futuro processo de divórcio. O divórcio de qualquer um. Quem quisesse podia pegar um cartão da cesta que ele ia passando pela sala. Quando chegou a nossa vez, todo mundo começou a rir. Harley e eu trocamos olhares. Eu não peguei. Harley também não. Mas vi como ele olhou para os cartões amontoados dentro do cesto. Depois balançou a cabeça e passou o cesto para a pessoa a seu lado. Até o Spuds e a nova sra. Cobb pegaram um cartão. O cartão premiado tinha alguma coisa escrita atrás. “O portador tem direito a um processo de divórcio totalmente gratuito”, com a data e a assinatura do advogado. O advogado estava bêbado, mas acho que isso não é maneira de conduzir a vida dos outros. Exceto nós, todo mundo meteu a mão no cesto, como se fosse uma coisa muito engraçada. A mulher que tirou o cartão premiado bateu palmas. Parecia um desses programas de prêmios da televisão. “Puxa, é a primeira vez na vida que ganho um sorteio!” Eu soube que o marido dela era militar. Não tenho como saber se ela ainda está com o marido ou se conseguiu o divórcio, porque Connie Nova fez um novo grupo de amigos depois que ela e o advogado se separaram.
Fomos embora da festa logo depois do sorteio. Aquilo nos deixou tão impressionados que não conseguimos falar grande coisa: só um de nós ainda conseguiu dizer: “Não acredito que vi o que acho que vi”.
Pode ter sido eu que disse.
Uma semana depois, Harley pergunta se o sueco — está falando do sr. Holits — já arranjou trabalho. A gente acabou de almoçar e o Harley está na sua cadeira com uma lata de refrigerante. Mas não ligou a televisão. Respondo que não sei. E não sei mesmo. Espero para ver o que mais ele vai dizer. Mas ele não diz mais nada. Balança a cabeça. Parece que está pensando em outra coisa. Então aperta um botão e a tevê liga.
Ela arranja um emprego. Começa a trabalhar como garçonete num restaurante italiano a alguns quarteirões daqui. Trabalha em turnos, serve o almoço, vai para casa, depois volta para trabalhar de novo no turno do jantar. Nesse vaivém, ela vai se virando. Os meninos nadam na piscina o dia inteiro, enquanto Holits fica dentro do apartamento. Não sei o que ele faz lá dentro. Uma vez fiz o cabelo da mulher e ela me contou algumas coisas. Contou que foi trabalhar como garçonete logo depois que terminou o ensino médio, e foi assim que conheceu Holits. Estava servindo panquecas para ele num restaurante em Minnesota.
Naquela manhã ela desceu e me perguntou se eu podia lhe fazer um favor. Queria que eu fizesse seu cabelo depois do turno do almoço e a tempo de ela voltar para trabalhar no turno do jantar. Será que eu podia? Respondi que ia consultar minha agenda. Pedi que entrasse comigo. A temperatura já devia estar em trinta e oito graus.
“Sei que estou pedindo meio em cima da hora”, disse ela. “Mas ontem à noite, quando cheguei do trabalho, me olhei no espelho e vi as raízes do meu cabelo aparecendo. Falei para mim mesma: ‘Preciso fazer um tratamento’. Não sei onde mais posso ir.”
Achei a página da sexta-feira 14 de agosto. Não havia nada escrito na folha.
“Posso cuidar de você às duas e meia ou às três.”
“Às três é melhor”, diz ela. “Agora preciso correr, antes que eu me atrase. Meu patrão é um tremendo sacana. A gente se fala depois.”
Às duas e meia, digo a Harley que tenho uma cliente e que por isso ele vai ter de assistir a seu jogo de beisebol no quarto. Ele ficha chateado, mas enrola o fio e empurra a mesa com rodinhas para o quarto onde está a televisão. Fecha a porta. Verifico se tudo de que preciso está à mão. Arrumo as revistas para que fiquem num lugar fácil de pegar. Depois sento ao lado do secador e lixo as unhas. Estou com o uniforme cor-de-rosa que visto quando faço o cabelo. Continuo lixando as unhas e olhando para a janela de vez em quando.
Ela passa pela janela e toca a campainha. “Pode entrar”, digo. “Está aberta.”
Ela está vestindo o uniforme preto e branco do seu trabalho. Me dou conta de que nós duas estamos de uniforme. “Sente, meu bem, vamos começar logo.” Ela olha para a lixa de unha. “Também sou manicure”, digo.
Ela se instala na cadeira e respira fundo.
Digo: “Incline a cabeça para trás. Assim. Agora feche os olhos, por favor. Relaxe. Primeiro vou passar xampu e massagear essas raízes. Depois a gente continua. Quanto tempo você tem?”.
“Preciso voltar às cinco e meia.”
“Até lá a gente termina.”
“Posso comer no trabalho. Mas não sei como Holits e os meninos vão se virar para fazer o jantar deles.”
“Pode deixar, vão se arranjar muito bem sem você.”
Começo a esquentar a água e percebo que Harley deixou terra e grama no chão. Varro a sujeira e volto ao trabalho.
Digo: “Se eles quiserem, podem ir do outro lado da rua e comer um hambúrguer. Não vão morrer por causa disso”.
“Eles não vão fazer isso. Na verdade, não quero que precisem ir lá.”
Não é da minha conta, por isso não falo mais nada. Preparo uma boa espuma e ponho mãos à obra. Depois que passo o xampu, enxáguo e penteio, coloco a mulher embaixo do secador. Os olhos dela estão fechados. Acho que pode ter dormido. Assim pego uma de suas mãos e começo.
“As unhas não.” Ela abre os olhos e puxa a mão.
“Tudo bem, querida. A primeira vez é grátis.”
Ela me devolve a mão, pega uma revista e põe no colo. “Os filhos são dele”, diz ela. “Do primeiro casamento. Estava divorciado quando a gente se conheceu. Mas amo os meninos como se fossem meus filhos. Mesmo que eu tentasse, não poderia amar mais do que já amo. Mesmo se fosse a mãe natural.”
Diminuo um pouco a intensidade do secador, assim ele fica fazendo um barulho baixo e silencioso. Continuo a fazer suas unhas. A mão dela começa a relaxar.
“A mulher deu o fora neles, em Holits e nos meninos, no dia do ano-novo, há dez anos. Nunca mais souberam dela.” Percebo que ela quer me contar mais. Por mim, tudo bem. Elas gostam de falar na cadeira de salão. Continuo a trabalhar com a lixa. “Holits obteve o divórcio. Depois ele e eu começamos a sair. Depois nos casamos. Por muito tempo a gente viveu bem. Tivemos altos e baixos. Mas a gente achava que estava progredindo, que ia chegar a algum lugar.” Balança a cabeça. “Aí aconteceu uma coisa. Quer dizer, aconteceu uma coisa com o Holits. Aconteceu que ele ficou interessado em cavalos. Especialmente naquele seu cavalo de corrida, ele comprou um, entende — coisa pouca, uma coisinha todo mês. Ele levava o cavalo para as corridas. Ficava acordado até de madrugada, como sempre, cuidando do seu trabalho e tudo mais. Achei que estivesse tudo em ordem. Mas eu não sei de nada. Para dizer a verdade, não sou nada boa para servir mesas num restaurante. Acho que aqueles italianos podem me despedir a qualquer momento, se eu der algum motivo. Ou até sem motivo nenhum. E se eu for despedida? O que vai acontecer?”
Respondo: “Não se preocupe, querida. Não vão despedir você”.
Logo depois ela pega outra revista. Mas não abre. Fica segurando a revista e continua falando. “De um jeito ou de outro, ele tem aquele cavalo. Betty Veloz. O nome Betty é uma brincadeira dele. Disse que o cavalo seria um vencedor se desse a ele o meu nome. Um grande vencedor, pois sim. A verdade é que, toda vez que corria, o cavalo perdia. Toda corrida. Betty Pangaré. Esse é que devia ser o nome dele. No início, eu fui a algumas corridas. Mas as apostas no cavalo eram sempre noventa e nove contra um. Nessa faixa. Só que o Holits é teimoso demais. Não desistia. Não parava de apostar no cavalo. Vinte dólares para ganhar. Cinquenta dólares para ganhar. Sem contar todas as outras coisas que a gente precisa pagar para manter um cavalo. Sei que não parece muito dinheiro. Mas vai somando. E, quando as chances de ganhar são assim — noventa e nove contra um, entende —, às vezes ele apostava num bilhete combinado. Me perguntava se eu tinha ideia de quanto dinheiro a gente ia ganhar se o cavalo chegasse entre os primeiros. Mas não chegava, e aí parei de ir às corridas.”
Continuo fazendo o meu trabalho. Me concentro nas unhas. “Você tem cutículas bonitas”, digo. “Olhe aqui as suas cutículas. Está vendo essas meias-luas? Quer dizer que seu sangue é bom.”
Ela traz as mãos para mais perto e olha. “O que é que você sabe sobre isso?” Ela dá de ombros. Deixa que eu segure sua mão outra vez. Ainda tem mais coisas para contar. “Uma vez, quando eu estava no ensino médio, uma orientadora pedagógica me pediu que eu fosse ao seu gabinete. Fazia isso com todas as garotas, uma de cada vez. ‘Que sonhos você tem?’, me perguntou aquela mulher. ‘O que você se vê fazendo daqui a dez anos? Vinte anos?’ Eu tinha dezesseis ou dezessete anos. Era só uma menina. Não consegui pensar em nada para responder. Fiquei ali parada feito uma palerma. A orientadora pedagógica tinha mais ou menos a mesma idade que eu tenho agora. Achei que ela era velha. Ela é velha, eu disse a mim mesma. Eu sabia que metade da vida dela já tinha ficado para trás. E tinha a sensação de que sabia alguma coisa que ela não sabia. Uma coisa que ela nunca iria saber. Um segredo. Uma coisa que ninguém deve saber, uma coisa de que ninguém fala até. Por isso fiquei calada. Apenas balancei a cabeça. Ela deve ter escrito na ficha que eu era idiota. Mas não consegui falar nada. Entende o que quero dizer? Achava que sabia coisas de que ela nem desconfiava. Agora, se alguém me fizesse a mesma pergunta de novo, sobre os meus sonhos e tudo, eu daria uma resposta.”
“E o que você ia responder, querida?” Agora estou com a sua outra mão. Mas não estou fazendo as unhas. Apenas seguro a mão, esperando o que ela vai dizer.
Ela se inclina para a frente na cadeira. Tenta puxar a mão.
“O que é que você ia responder?”
Ela suspira e se recosta na cadeira. Deixa que eu segure sua mão. “Eu diria: ‘Sonhos, sabe, são uma coisa da qual a gente acorda’. É isso que eu ia dizer.” Alisa a barra da saia. “Se alguém perguntasse, era isso que eu ia dizer. Mas ninguém pergunta.” Solta outro suspiro. “Então, quanto tempo ainda vai demorar?”, pergunta.
“Falta pouco”, respondo.
“Você não pode imaginar como é.”
“Posso, sim”, digo. Empurro o banquinho para bem perto de suas pernas. Começo a contar como era antes de nos mudarmos para cá e como ainda está tudo a mesma coisa. Mas Harley escolhe bem esse momento para sair do quarto. Nem olha para nós. Ouço a tevê tagarelando no quarto. Harley vai até a pia e pega um copo-d’água. Inclina a cabeça para trás e bebe. Seu pomo-de-adão sobe e desce no pescoço.
Afasto o secador e toco no cabelo dos dois lados da cabeça dela. Levanto uma ondulação só um pouquinho.
Digo: “Você está parecendo novinha em folha, querida”.
“Nem tanto.”
Os meninos continuam nadando o dia inteiro, todos os dias, até começarem as aulas. Betty continua no emprego. Mas por algum motivo não voltou para fazer o cabelo. Não sei por quê. Talvez ache que não fiz um bom trabalho. Às vezes fico deitada na cama sem dormir, enquanto o Harley dorme feito uma pedra ao meu lado, e tento me imaginar na pele de Betty. Fico pensando o que eu faria.
Holits manda um de seus filhos com o pagamento do aluguel no dia primeiro de setembro e também no dia primeiro de outubro. Ainda paga em dinheiro. Recebo o dinheiro do menino, conto as notas na frente dele e depois assino o recibo. Holits arranjou algum trabalho. Pelo menos eu acho. Sai todos os dias na caminhonete. Eu vejo pela janela que ele sai de manhã cedo e volta no final da tarde. Betty passa pela janela às dez e meia e volta às três. Se ela me vê, acena ligeiro com a mão. Mas não sorri. Depois vejo Betty de novo, às cinco da tarde, voltando a pé para o restaurante. Holits chega de carro um pouco mais tarde. Isso continua até meados de outubro.
Enquanto isso, o casal Holits travou amizade com Connie Nova e seu amigo cabeludo, Rick. Também conheceram Spuds e a nova sra. Cobb. Às vezes, sábado à tarde, vejo todos eles sentados em volta da piscina, com bebidas na mão, ouvindo o rádio portátil de Connie. Uma vez o Harley disse que viu todos eles nos fundos do prédio, na área da churrasqueira. Estavam em trajes de banho também. Harley disse que o Sueco tinha um peito igual ao de um touro. Harley disse que estavam comendo cachorros-quentes e bebendo uísque. Disse que estavam embriagados.
Era sábado, e eram onze da noite. Harley dormia na sua poltrona. Dali a pouco eu teria que levantar e desligar o aparelho. Quando eu fizesse isso, sabia que ele ia acordar. “Por que você desligou? Eu estava vendo o programa.” Era o que ele ia dizer. Era o que sempre dizia. De todo jeito, a tevê continuava ligada, eu estava com rolinhos no cabelo e com uma revista no colo. De vez em quando eu erguia os olhos. Mas não conseguia fixar a atenção no programa. Eles estavam todos lá fora, na área da piscina — Spuds e Linda Cobb, Connie Nova e o cabeludo, Holits e Betty. Temos uma regra aqui que proíbe que as pessoas fiquem na piscina depois das dez da noite. Mas nessa noite eles não estavam ligando para regras. Se o Harley acordasse, iria lá fora e falaria alguma coisa com eles. Achei que não tinha problema eles se divertirem na piscina, mas já era hora de parar. Fiquei levantando e indo até a janela toda hora. Todos estavam com trajes de banho, menos Betty. Ela ainda vestia seu uniforme de trabalho. Mas estava descalça, com um copo na mão e bebia à vontade, junto com os outros. Toda hora eu adiava a decisão de desligar a tevê. Então um deles gritou alguma coisa, outro emendou e começou a rir. Olhei e vi Holits terminar a bebida em seu copo. Pôs o copo no estrado da piscina. Depois andou até a cabine de banhistas. Arrastou uma das mesas e subiu nela. Em seguida — pareceu fazer isto sem o menor esforço — subiu para o telhado da cabine de trocar de roupa. É verdade, pensei; ele é forte. O cabeludo bate palmas, como se tivesse adorado. Os outros também ficam incentivando Holits com gritos. Sei que vou ter de sair e dar um basta naquilo.
Harley está afundado na poltrona. A tevê continua ligada. Abro a porta de mansinho, saio e fecho a porta. Holits está de pé no telhado da cabine. Os outros gritam para incentivá-lo. Estão falando: “Vamos lá, você consegue”. “Não vá mergulhar de barriga agora.” “Estou apostando em você.” Coisas desse tipo.
Então ouço a voz de Betty. “Holits, olhe lá o que vai fazer.” Mas Holits fica parado lá em cima, na beiradinha. Olha a água lá embaixo. Parece estar calculando quanto impulso vai ter de tomar para chegar até lá. Recua até a outra ponta. Cospe na palma de uma mão e esfrega as mãos uma na outra. Spuds grita: “É isso aí, garoto! Você vai conseguir”.
Vejo Holits bater no estrado na piscina. Também escuto o barulho.
“Holits!”, grita Betty.
Todos correm para ele. Quando chego lá, Holits está sentando. Rick o segura pelos ombros e grita na cara dele: “Holits! Ei, cara!”.
Holits tem um corte na testa e seus olhos estão vidrados. Spuds e Rick ajudam Holits a sentar numa cadeira. Alguém lhe dá uma toalha. Mas Holits segura a toalha como se não soubesse o que fazer com ela. Outra pessoa lhe estende uma bebida. Mas Holits não sabe o que fazer com aquilo também. As pessoas ficam falando com ele. Holits leva a toalha até o rosto. Depois afasta a toalha e olha o sangue. Mas fica só olhando. Parece não entender nada.
“Deixe eu ver como ele está.” Fico na frente dele. É grave. “Holits, você está bem?” Mas Holits fica só me olhando, e em seguida seus olhos perdem o rumo. “Acho melhor levar para o pronto-socorro.” Betty me olha quando digo isso e começa a balançar a cabeça. Olha Holits de novo. Dá outra toalha para ele. Acho que ela está sóbria. Mas todos os outros estão bêbados. Para lá de bêbados.
Spuds apoia o que eu disse. “Vamos levar o Holits para o pronto-socorro.”
Rick diz: “Eu também vou”.
“Vamos todos”, diz Connie Nova.
“É melhor a gente ficar junto”, diz Linda Cobb.
“Holits.” Digo seu nome outra vez.
“Não posso ir”, diz Holits.
“O que foi que ele disse?”, me pergunta Connie Nova.
“Disse que não pode ir”, explico para ela.
“Ir aonde? Do que ele está falando?”, Rick quer saber.
“Você pode repetir?”, pede Spuds. “Não ouvi.”
“Ele está dizendo que não pode ir. Acho que não tem ideia do que está falando. O melhor é vocês levarem o Holits para o hospital”, digo. Depois me lembro de Harley e das regras. “Vocês não deviam estar aqui fora. Nenhum de vocês. Temos regras. Agora tratem de levar o Holits para o hospital.”
“Vamos logo para o hospital”, diz Spuds como se fosse uma coisa que ele tivesse acabado de pensar. Deve estar mais alto do que todos. Para começo de conversa, nem consegue ficar em pé direito. Anda todo trôpego. Fica tentando levantar um pé e pôr no chão de novo. O cabelo do seu peito está branco como neve sob a luz da piscina, que bate bem em cima dele.
“Vou pegar o carro.” É o que diz o cabeludo. “Connie, me dê a chave.”
“Não posso ir”, diz Holits. A toalha desceu até seu queixo. Mas o corte está na testa.
“Pegue aquele roupão atoalhado para ele. Ele não pode ir para o hospital desse jeito.” Linda Cobb diz isso. “Holits! Holits! Somos nós.” Ela espera e depois tira o copo de uísque dos dedos de Holits e bebe.
Vejo pessoas em algumas janelas, olhando para baixo, abaladas. Luzes estão sendo acesas. “Vão dormir!”, grita alguém.
Por fim, o cabeludo traz o carro Datsun de Connie dos fundos do prédio até perto da piscina. Os faróis estão acesos. O cabeludo acelera o motor.
“Pelo amor de Deus, vão dormir!”, grita a mesma pessoa. Mais gente aparece nas janelas. Já espero ver o Harley sair a qualquer momento, com seu chapéu na cabeça, fervendo de ódio. Então eu penso: Não, ele vai continuar dormindo o tempo todo. Esqueça o Harley.
Spuds e Connie Nova ficam cada um de um lado de Holits. Ele não consegue andar direito. Está cambaleante. Em parte porque está bêbado. Mas não há dúvida de que se machucou para valer. Levam Holits até o carro e todos se amontoam lá dentro também. Betty é a última a entrar. Precisa ficar sentada no colo de alguém. Em seguida eles vão embora. Quem estava berrando, sei lá quem era, fecha a janela com força.
Na semana seguinte inteira, Holits não sai de casa. E acho que Betty deve ter pedido demissão do emprego, porque não a vejo mais passar pela janela. Quando vejo os meninos, vou para fora e pergunto bem direto: “Como vai o seu pai?”.
“Machucou a cabeça”, diz um deles.
Espero para ver se eles falam mais alguma coisa. Mas não falam nada. Encolhem os ombros e vão para a escola com suas merendeiras e suas pastas. Mais tarde, me arrependo de não ter perguntado sobre a madrasta deles.
Quando vejo Holits lá fora, com uma atadura e parado na varanda do apartamento, ele nem acena para mim com a cabeça. Age como se eu fosse uma desconhecida. É como se ele não me conhecesse ou não quisesse me conhecer. Harley diz que está recebendo o mesmo tratamento. Ele não gosta disso. “O que é que ele tem?”, pergunta Harley. “Sueco desgraçado. O que foi que aconteceu com a cabeça dele? Alguém deu uma cacetada nele ou o que foi?” Não conto nada ao Harley quando ele diz isso. Nem toco no assunto.
Então, numa tarde de sábado, vejo um dos meninos levar uma caixa para fora e colocar dentro da caminhonete. Volta ao primeiro andar. Logo depois desce com outra caixa e também a coloca dentro do carro. Aí me dou conta de que estão se preparando para ir embora. Mas não conto ao Harley o que sei. Logo ele vai ficar sabendo de tudo.
Na manhã seguinte, Betty manda um dos meninos para baixo. Traz um bilhete em que ela diz que lamenta, mas vão ter de ir embora. Dá o endereço da irmã em Indio, para onde ela diz que podemos enviar a devolução do depósito. Deixa claro que estão partindo oito dias antes de expirar o prazo do aluguel. Espera que haja algum tipo de reembolso por isso, embora eles não tenham comunicado a mudança com trinta dias de antecedência. Diz: “Obrigada por tudo. Obrigada por ter feito o meu cabelo naquele dia”. Assina o bilhete. “Sinceramente, Betty Holits.”
“Qual é o seu nome?”, pergunto ao menino.
“Billy.”
“Billy, diga para ela que eu lamento muito, de verdade.”
Harley lê o que Betty escreveu e diz que só quando fizer um dia frio no inferno é que eles vão receber algum dinheiro de volta da empresa Fulton Terrace. Diz que não consegue entender aquela gente. “Gente que fica para lá e para cá pela vida, como se o mundo tivesse obrigação de pagar suas dívidas.” Me pergunta para onde eles estão indo. Mas não tenho a menor ideia de para onde eles vão. Talvez estejam voltando para Minnesota. Como eu vou saber? Mas acho que não estão voltando para Minnesota. Acho que estão a caminho de algum outro lugar para tentar a sorte.
Connie Nova e Spuds estão com suas cadeiras nos lugares de costume, uma de cada lado da piscina. De vez em quando olham os meninos de Holits carregando coisas para a caminhonete. Então o próprio Holits sai com algumas roupas no braço. Connie Nova e Spuds chamam e acenam. Holits olha para eles como se não os conhecesse. Mas então levanta a mão livre. Só levanta a mão, mais nada. Eles acenam. Então Holits acena também. Continua acenando para eles mesmo depois que os dois pararam de acenar. Betty surge no térreo e toca o braço do marido. Ela não acena. Nem olha para aquela gente. Diz algo a Holits e ele entra no carro. Connie Nova está deitada de barriga para cima na sua cadeira e estica o braço a fim de ligar o rádio portátil. Spuds segura os óculos escuros na mão e fica olhando Betty e Holits por algum tempo. Depois encaixa as hastes dos óculos escuros nas orelhas. Acomoda-se na espreguiçadeira e volta a bronzear sua pele velha, que mais parece um couro.
Por fim a bagagem está toda dentro do carro e eles estão prontos para partir. Os meninos estão atrás, Holits está atrás do volante, Betty no assento ao lado. Exatamente do mesmo jeito que chegaram aqui.
“O que é que você está olhando aí?”, pergunta Harley.
Está fazendo uma pausa no serviço. Está na sua poltrona, vendo tevê. Mas levanta e vem até a janela.
“Olha só, lá vão eles. Não sabem nem para onde estão indo nem o que vão fazer da vida. Suecos malucos.”
Vejo o carro descer pela rampa e virar na rua que vai levá-los até a rodovia. Depois volto a olhar para Harley. Está se acomodando na sua poltrona. Está com sua lata de refrigerante e com seu chapéu de palha. Age como se não tivesse acontecido nada, nem fosse acontecer.
“Harley?”
Mas, é claro, ele não pode me ouvir. Me aproximo e fico bem na frente da sua poltrona. Ele fica surpreso. Não sabe como reagir. Se inclina para trás e apenas fica ali, me olhando.
O telefone começa a tocar.
“Você pode atender, por favor?”, diz ele.
Não respondo. Por que deveria?
“Então deixe tocar”, diz ele.
Vou pegar um escovão, uns panos de chão, esponjas e um balde. O telefone para de tocar. Ele continua sentado na poltrona. Mas desligou a tevê. Pego minha chave mestra, vou para fora e subo a escada até o 17. Entro e atravesso a sala até a cozinha deles — o que antes era a cozinha deles.
A bancada foi bem esfregada, a pia e os armários estão limpos. Não está tão ruim. Deixo o material de limpeza no fogão e vou dar uma olhada no banheiro. Ali não há nada que uma esponja de aço não possa resolver. Depois abro a porta do quarto que dá para a piscina. As persianas estão levantadas, a cama está sem lençol. O chão brilha. “Obrigada”, digo em voz alta. Onde quer que ela esteja, eu lhe desejo boa sorte. “Boa sorte, Betty.” Uma das gavetas da escrivaninha está aberta e vou até lá para fechar. Por trás, num canto da gaveta, vejo a rédea que Holits estava carregando no dia em que chegaram aqui. Devem ter esquecido, na pressa. Mas talvez não. Talvez o homem tenha deixado de propósito.
“Rédea”, digo. Levanto a rédea na janela e olho para ela sob a luz. Não é uma peça decorativa, é só uma rédea velha de couro escuro. Não sei grande coisa sobre rédeas. Mas sei que uma parte encaixa na boca. Essa parte é chamada de freio. É feita de aço. As tiras dão a volta pela cabeça do cavalo e sobem até onde ficam seguras entre os dedos do cavaleiro, no pescoço do animal. O cavaleiro puxa as rédeas para um lado e para o outro, e o cavalo vira. É simples. O freio é pesado e frio. Se a gente tivesse de usar um negócio desse enfiado nos dentes, acho que ia entender rapidinho. Quando sentisse puxar, a gente ia saber que estava na hora. A gente ia saber que estava indo para algum lugar.