Era meados de agosto e a vida de Myers estava numa encruzilhada. A única coisa diferente desta vez, em relação às outras vezes, era que desta vez ele estava sóbrio. Tinha acabado de passar vinte e oito dias numa instituição de recuperação de alcoólatras. Mas durante esse período sua mulher cismou de meter o pé na estrada com outro beberrão, amigo dos dois. O homem tinha acabado de entrar numa grana preta e andava falando em comprar um bar e um restaurante na região leste do estado.
Myers telefonou para a mulher, mas ela desligou na cara dele. Não só não queria falar com o marido como não queria nem que ele chegasse perto da casa. Ela tinha arranjado um advogado e uma ordem de proteção judicial. Então ele pegou umas poucas coisas, embarcou num ônibus e foi morar perto do mar, num quarto alugado numa casa cujo dono era um homem chamado Sol que tinha posto um anúncio nos classificados do jornal.
Sol estava de jeans e camiseta vermelha quando abriu a porta. Eram umas dez da noite e Myers tinha acabado de descer de um táxi. Sob a luz da varanda, Myers viu que o braço direito de Sol era mais curto do que o outro e a mão e os dedos eram atrofiados. Ele não estendeu nem a mão esquerda boa nem a mão direita atrofiada para cumprimentar Myers, o que não incomodou Myers nem um pouco. Já se sentia bem perturbado sem isso.
Foi você que acabou de telefonar, não foi?, disse Sol. É você que quer ver o quarto, não é? Vamos, entre.
Myers pegou sua mala e entrou.
Esta é a minha mulher. Esta é a Bonnie, disse Sol.
Bonnie estava vendo televisão, mas virou os olhos para ver quem estava entrando. Apertou um botão num aparelho que tinha na mão e o volume sumiu. Apertou o botão outra vez e a imagem sumiu. Em seguida ela se levantou do sofá e ficou de pé. Era uma garota gorda. Era gorda por todos os lados e arquejava quando respirava.
Desculpe chegar assim tão tarde, disse Myers. Muito prazer.
Está tudo bem, disse Bonnie. Meu marido falou com você pelo telefone quanto estamos cobrando?
Myers fez que sim com a cabeça. Continuava segurando a mala.
Bem, isto aqui é a sala, disse Sol, como você pode ver. Ele balançou a cabeça e levou os dedos da mão boa até o queixo. Acho melhor explicar que a gente é novato nessa história. Nunca alugamos um quarto para ninguém. Mas tem um quarto lá atrás que nunca é usado e aí a gente parou e pensou: puxa, por que não? Sempre se pode ganhar um dinheirinho extra.
Você tem toda razão, disse Myers.
De onde você é?, perguntou Bonnie. Não é de nenhum lugar aqui perto da cidade.
Minha mulher quer ser escritora, disse Sol. Quem, o que, onde, por que e quanto?
Eu acabei de chegar, respondeu Myers. Passou a mala para a outra mão. Desci do ônibus faz uma hora, li o anúncio de vocês no jornal e telefonei.
Que tipo de trabalho você faz?, Bonnie queria saber.
Já fiz de tudo, respondeu Myers. Colocou a mala no chão e abriu e fechou os dedos. Depois pegou a mala outra vez.
Bonnie não insistiu. Sol tampouco, se bem que Myers percebeu que ele estava curioso.
Myers pegou uma fotografia de Elvis Presley em cima do televisor. A assinatura de Elvis atravessava o peito do seu paletó branco, enfeitado com lantejoulas. Deu um passo e chegou mais perto.
O Rei, disse Bonnie.
Myers fez que sim com a cabeça, mas não falou nada. Junto ao retrato de Elvis, estava uma fotografia de casamento de Sol e Bonnie. Na foto, Sol estava bem-vestido, de paletó e gravata. O braço esquerdo, bom e forte, de Sol envolvia a cintura de Bonnie até onde conseguia alcançar. A mão direita de Sol e a mão direita de Bonnie estavam juntas por cima da fivela do cinto de Sol. Bonnie não iria a lugar nenhum se Sol não deixasse. Bonnie não ligava. Na fotografia, Bonnie estava de chapéu e era toda sorrisos.
Adoro ela, disse Sol, como se Myers tivesse dito algo em contrário.
E o quarto que você ia me mostrar?, disse Myers.
Eu sabia que a gente estava esquecendo alguma coisa, disse Sol.
Saíram da sala e foram para a cozinha, Sol na frente, depois Myers, levando sua mala, e depois Bonnie. Atravessaram a cozinha e viraram à esquerda antes da porta dos fundos. Havia um armário aberto ao longo da parede, uma máquina de lavar e uma de secar. Sol abriu uma porta no fim de um corredor pequeno e acendeu a luz do banheiro.
Bonnie se adiantou, bufou e disse: Este é o seu banheiro particular. Aquela porta na cozinha é a sua entrada exclusiva.
Sol abriu a porta para o outro lado do banheiro e acendeu outra luz. Este é o quarto, disse.
Arrumei a cama com lençóis limpos, disse Bonnie. Mas se você ficar com o quarto vai ter de cuidar disso daqui para a frente.
Como diz a minha mulher, isto não é um hotel, disse Sol. Mas você é bem-vindo, se quiser ficar.
Havia uma cama de casal encostada à parede, além de uma mesinha de cabeceira, um abajur, uma cômoda e uma mesa de jogar cartas com uma cadeira de metal. Um janelão dava para o quintal. Myers pôs a mala sobre a cama e aproximou-se da janela. Levantou a persiana e olhou para fora. Uma lua pairava alta no céu. Ao longe dava para ver um vale coberto pela floresta e picos de montanha. Seria sua imaginação ou ele estava ouvindo o rumorejar de um rio?
Estou ouvindo barulho de água, disse Myers.
É o Pequeno Rio Quilcene que você está ouvindo, disse Sol. A correnteza desse rio é a mais rápida do país.
E então, o que você achou?, perguntou Bonnie. Ela avançou e desceu um pouco a colcha da cama, fazendo uma dobra, e esse gesto simples quase fez Myers chorar.
Vou ficar com ele, respondeu Myers.
Que bom, fico feliz, disse Sol. Minha mulher também está contente, posso garantir. Vou mandar tirarem o anúncio do jornal amanhã. Quer se instalar agora mesmo, não é?
É o que eu pretendia, respondeu Myers.
Vamos deixar você se acomodar, disse Bonnie. Eu lhe dei dois travesseiros e tem uma colcha extra dentro do armário.
Myers só conseguiu fazer que sim com a cabeça.
Bem, boa noite, disse Sol.
Boa noite, disse Bonnie.
Boa noite, disse Myers. E obrigado.
Sol e Bonnie atravessaram o banheiro dele e entraram na cozinha. Fecharam a porta, mas antes Myers ouviu Bonnie dizer: Ele parece legal.
Meio caladão, disse Sol.
Vou fazer umas pipocas na manteiga.
Vou comer um pouco com você, disse Sol.
Pouco depois Myers ouviu a televisão ser ligada na sala outra vez, mas era um som muito suave e achou que não ia incomodar. Abriu a janela inteira e ouviu o barulho do rio que corria em disparada pelo vale a caminho do oceano.
Retirou suas coisas da mala e colocou dentro das gavetas. Depois usou o banheiro e escovou os dentes. Mudou a mesa de lugar, de modo que ela ficasse bem na frente da janela. Em seguida olhou a colcha, onde Bonnie a havia dobrado. Puxou a cadeira de metal, sentou-se e tirou uma caneta esferográfica do bolso. Pensou um minuto, depois abriu um caderno e, no alto de uma página em branco, escreveu as palavras O vazio é o começo de tudo. Olhou bem para aquilo e depois riu. Meu Deus, que bobagem! Balançou a cabeça. Fechou o caderno, trocou de roupa e apagou a luz. Ficou parado um instante, olhando pela janela e ouvindo o rio. Depois foi para a cama.
Bonnie fez a pipoca, salgou, despejou manteiga nela e levou numa tigela grande para onde Sol estava sentado vendo televisão. Deixou que ele se servisse primeiro. Sol usou a mão esquerda, para pegar bastante, e depois esticou a mão miúda para pegar o guardanapo de papel que ela oferecia. Bonnie também se serviu de pipocas.
O que você achou dele?, Bonnie quis saber. Do nosso novo inquilino.
Sol balançou a cabeça e continuou vendo televisão e comendo pipoca. Depois, como se tivesse pensado bem na resposta, falou: Gostei dele. É legal. Mas acho que está fugindo de alguma coisa.
Do quê?
Não sei do quê. É só um palpite. Ele não é perigoso e não vai criar encrenca pra gente.
Os olhos dele, disse Bonnie.
O que é que tem os olhos dele?
São olhos tristes. Os olhos mais tristes que já vi num homem.
Sol não falou nada por algum tempo. Terminou a pipoca. Enxugou os dedos e esfregou o queixo com o guardanapo de papel. Ele é legal. Só que teve algum tipo de problema, mais nada. Não tem nada de trágico nisso. Me dá um golinho disso aí, pode ser? Estendeu a mão para pegar o copo de refrigerante sabor laranja que ela estava segurando e tomou um pouco. Sabe, esqueci de pegar com ele o dinheiro do aluguel. Pego amanhã de manhã, se ele estiver acordado. E eu devia ter perguntado quanto tempo ele pretende ficar. Droga, onde é que eu estou com a cabeça? Não quero transformar esta casa num hotel.
Você também não pode pensar em tudo. Além do mais, somos novatos nisso. Nunca alugamos um quarto.
Bonnie resolveu que ia escrever sobre o homem no caderno que estava enchendo de anotações. Fechou os olhos e pensou no que ia escrever. Esse desconhecido alto, curvado — mas bonitão! —, de cabelo cacheado e olhos tristes entrou na nossa casa naquela fatídica noite de agosto. Recostou-se no braço esquerdo de Sol e tentou escrever mais um pouco. Sol apertou o ombro dela, o que a trouxe de volta ao presente. Abriu os olhos e fechou, mas não conseguiu pensar em mais nada para escrever sobre ele naquele momento. O tempo vai dizer, pensou Bonnie. Ela estava contente por ele estar ali.
Esse programa é para meninas, disse Sol. Vamos para a cama. A gente precisa acordar cedo amanhã.
Na cama, Sol fez amor com ela e Bonnie o abraçou e fez amor com ele, mas durante o tempo todo em que fazia aquilo ela ficou pensando no homem grande, de cabelos cacheados, no quarto dos fundos. E se ele de repente abrisse a porta do quarto e ficasse lá vendo os dois?
Sol, disse ela, a porta do quarto está trancada?
O quê? Espere um pouco, disse Sol. Então ele terminou, virou para o lado, mas manteve o braço pequeno sobre o seio de Bonnie. Ela ficou deitada de costas, pensando um pouco, depois deu uma palmadinha nos dedos de Sol, deixou o ar sair pela boca e pegou no sono, pensando em cápsulas detonadoras, naquilo que tinha explodido na mão de Sol quando ele era adolescente, cortando nervos e causando a atrofia do braço e dos dedos.
Bonnie começou a roncar. Sol começou a sacudir o braço dela, até que ela se virou de costas para ele.
Num instante, ele se levantou e vestiu a cueca. Foi para a sala. Não acendeu a luz. Não precisava de luz. A lua estava alta e ele não queria luz nenhuma. Passou da sala para a cozinha. Verificou se a porta dos fundos estava trancada e depois ficou parado um instante na frente da porta do banheiro, escutando, mas não conseguiu ouvir nada anormal. A torneira pingava — era preciso trocar a carrapeta, mas a torneira sempre tinha pingado mesmo. Atravessou a casa toda de volta, fechou e trancou a porta do quarto deles. Ajustou o despertador e olhou se o pino da campainha estava levantado. Foi para a cama e chegou bem pertinho de Bonnie. Pôs a perna por cima da perna dela e desse jeito, afinal, pegou no sono.
Essas três pessoas dormiam e sonhavam enquanto lá fora a lua crescia e parecia mover-se pelo céu, até ficar sobre o oceano e ir se tornando menor e mais opaca. No sonho dele, alguém está oferecendo um copo de uísque a Myers, mas na hora que ele vai pegar o copo, relutante, ele acorda coberto de suor, o coração disparado.
Sol sonha que está trocando um pneu de um caminhão e que ele usa livremente os dois braços.
Bonnie sonha que está levando duas — não, três — crianças para o parque. As crianças têm até nome no sonho. Escolheu o nome delas um pouco antes do passeio no parque. Millicent, Dionne e Randy. O tempo todo Randy quer se soltar da mão dela e andar sozinho.
Logo o sol irrompe no horizonte e os passarinhos começam a chamar uns aos outros. O Pequeno Rio Quilcene desliza pelo vale, passa em disparada por baixo da ponte da estrada, corre mais uns cem metros por cima de areia e pedras pontudas e se derrama no oceano. Uma águia desce voando do vale para a ponte e começa a voar de um lado para o outro sobre a praia. Um cachorro late.
Nesse instante, o despertador de Sol toca.
* * *
Myers ficou no seu quarto naquela manhã até ouvir os dois saírem de casa. Depois ele saiu do quarto e fez um café instantâneo. Olhou na geladeira e viu que uma das prateleiras tinha sido esvaziada para ele usar. Uma etiqueta pregada com fita adesiva indicava: Prateleira do sr. Myers.
Mais tarde, caminhou um quilômetro e meio em direção à cidade e a um pequeno posto de gasolina que ele se lembrava de ter visto noite anterior e que também vendia alimentos. Comprou leite, queijo, pão e tomates. Naquela tarde, antes da hora de os dois voltarem para casa, Myers deixou o dinheiro do aluguel em cima da mesa e voltou para o seu quarto. Tarde da noite, antes de ir dormir, abriu o caderno e, numa página vazia, escreveu: Nada.
Adaptou seus horários aos horários deles. De manhã, ficava no quarto até ouvir Sol na cozinha passando o café e preparando o café da manhã. Depois ouvia Sol chamar Bonnie para ela se levantar e aí os dois tomavam o café da manhã juntos, mas sem se falar muito. Depois Sol ia para a garagem, ligava o motor da caminhonete, dava marcha a ré e partia pela rua. Pouco depois a carona de Bonnie parava na frente da casa, uma buzina tocava e toda vez Bonnie dizia: Já estou indo.
Era então que Myers ia para a cozinha, esquentava água para o café e comia uma tigela de cereais. Mas não tinha lá muito apetite. Os cereais e o café o sustentavam durante a maior parte do dia, até a tarde, quando comia mais alguma coisa, um sanduíche, antes de os dois chegarem em casa, e depois disso Myers não ia mais à cozinha durante todo o tempo em que Sol e Bonnie pudessem estar lá, ou na sala vendo televisão. Myers não queria conversa.
Assim que chegava do trabalho, Bonnie ia para a cozinha beliscar alguma coisa. Depois ligava a televisão e esperava Sol chegar, depois ela se levantava e ia preparar alguma coisa para os dois comerem. Podiam conversar no telefone com amigos ou então ficavam sentados fora da casa, no quintal, entre a garagem e a janela do quarto de Myers, conversando sobre o seu dia, bebendo chá gelado até chegar a hora de entrar e ligar a televisão. Uma vez Myers ouviu Bonnie dizer para alguém no telefone: Como ela acha que vou ligar para o peso do Elvis Presley quando o meu próprio peso andou um tempo fora de controle?
Disseram que ele seria bem-vindo a qualquer hora que quisesse ir para a sala ver televisão com eles. Myers agradeceu, mas respondeu: Não, a televisão irrita os meus olhos.
Os dois estavam curiosos para saber dele. Sobretudo Bonnie, que lhe perguntou, um dia em que chegou mais cedo em casa e o surpreendeu na cozinha, se ele já tinha sido casado e se tinha filhos. Myers fez que sim com a cabeça. Bonnie olhou para ele e esperou que continuasse a falar, mas ele não continuou.
Sol também estava curioso. Que tipo de trabalho você faz?, queria saber. É só curiosidade. Esta é uma cidade pequena e conheço as pessoas. Eu aplaino madeira na serraria. Basta um braço bom para fazer isso. Mas às vezes aparecem umas vagas por lá. Talvez eu pudesse arranjar um trabalho para você. Qual é a sua área de atividade?
Você sabe tocar algum instrumento?, perguntou Bonnie. Sol tem um violão, disse ela.
Eu não sei tocar violão, disse Sol. Bem que eu gostaria.
Myers ficava no seu quarto, onde estava escrevendo uma carta para a sua mulher. Era uma carta comprida e, ele tinha a impressão, importante. Talvez a carta mais importante da sua vida. Na carta, tentava explicar à sua mulher que lamentava muito por tudo o que havia acontecido e que esperava que um dia ela o perdoasse. Eu ficaria de joelhos e pediria perdão se isso servisse para alguma coisa.
Depois que Sol e Bonnie saíam de casa, ele sentava na sala com os pés sobre a mesinha de café e bebia café instantâneo enquanto lia o jornal da noite anterior. De vez em quando suas mãos tremiam e o jornal começava a farfalhar na casa vazia. Às vezes o telefone tocava, mas ele nunca fazia o menor movimento para atender. Não era para ele, porque ninguém sabia que ele estava ali.
Pela sua janela nos fundos da casa, ele podia ver o vale subindo até uma série de picos escarpados cujo topo ficava encoberto pela neve, embora estivessem em agosto. Mais abaixo nas montanhas, as árvores cobriam as ladeiras e as bordas do vale. O rio descia pelo vale, espumando e borbulhando por cima das pedras e por baixo dos barrancos de granito, até irromper fora dos seus limites na boca do vale, diminuir um pouco a velocidade, como se tivesse se consumido, depois retomar impulso e se lançar no oceano. Quando Sol e Bonnie não estavam em casa, Myers muitas vezes sentava-se sob o sol numa espreguiçadeira nos fundos e ficava olhando o vale e os picos. Uma vez viu uma águia pairando sobre o vale, outra vez viu um cervo andando e pastando na margem do rio.
Ele estava sentado lá naquela tarde, quando um grande caminhão-plataforma parou na frente da casa com uma carga de madeira.
Você deve ser o inquilino do Sol, disse o homem, falando pela janela do caminhão.
Myers assentiu com a cabeça.
Sol me disse que era só descarregar essa madeira no quintal que depois ele cuidava do assunto.
Vou abrir passagem para você, disse Myers. Tirou a cadeira dali e a colocou junto à escadinha da entrada de trás, onde ficou parado, vendo o motorista dar ré no caminhão e subir pelo gramado; depois ele empurrou alguma coisa dentro da cabine e o caminhão começou a levantar. Num instante as madeiras de um metro e oitenta começaram a deslizar da plataforma do caminhão e se amontoaram no chão. A plataforma levantou ainda mais e todas as peças de madeira rolaram sobre o gramado com um grande estrondo.
O motorista mexeu na alavanca de novo e a plataforma do caminhão voltou à posição normal. Em seguida ele engatou a marcha, buzinou e foi embora.
O que você vai fazer com aquela madeira que está lá fora?, perguntou Myers para Sol naquela noite. Sol estava parado junto ao fogão fritando manjubas quando Myers apareceu de surpresa na cozinha. Bonnie estava no chuveiro, lá dentro. Myers podia ouvir a água correndo.
Pois é, eu vou serrar e empilhar, se conseguir arranjar um tempo até setembro. Eu gostaria de fazer isso antes que comece a chover.
Talvez eu pudesse fazer isso para você, disse Myers.
Você já cortou madeira antes?, perguntou Sol. Tinha tirado a frigideira do fogo e estava enxugando os dedos da mão esquerda com um guardanapo de papel. Eu não vou poder pagar nada para você. É uma coisa que eu mesmo ia fazer, de um jeito ou de outro. Assim que eu conseguisse tirar um fim de semana de folga.
Eu faço, disse Myers. Vai servir como exercício.
Você sabe usar uma serra elétrica? E um machado e uma marreta?
Você pode me ensinar, disse Myers. Aprendo depressa. Era importante para ele cortar a madeira.
Sol colocou a frigideira de manjubas de novo no fogo. Então falou: Legal, vou ensinar você depois do jantar. Já comeu alguma coisa? Por que não come um pouco com a gente?
Já comi, respondeu Myers.
Sol assentiu com a cabeça. Deixe eu colocar essa boia na mesa para mim e para a Bonnie e depois que a gente comer ensino você.
Volto daqui a pouco, disse Myers.
Sol não disse mais nada. Fez que sim com a cabeça para si mesmo, como se estivesse pensando em alguma outra coisa.
Myers pegou uma das cadeiras de dobrar, sentou-se nela, olhou bem para a pilha de madeira e depois para o vale e as montanhas, onde o sol refletia e brilhava na neve. Era quase noite. Os picos se esticavam para dentro de umas nuvens e a névoa parecia estar caindo delas. Myers podia ouvir o rio chocar-se com o mato rasteiro da margem ao correr pelo vale.
Eu ouvi uma conversa, Myers ouviu Bonnie dizer a Sol na cozinha.
É o inquilino, disse Sol. Me perguntou se podia cortar a carga de madeira que está lá nos fundos.
Quanto ele quer para fazer isso?, Bonnie quis saber. Você explicou que a gente não pode pagar muito?
Falei que a gente não pode pagar nada. Ele está a fim de fazer isso por nada mesmo. Pelo menos foi o que me disse.
Por nada? Bonnie ficou um tempo quieta. Então Myers ouviu Bonnie dizer: Acho que ele não tem mais nada para fazer.
Mais tarde, Sol foi lá fora e disse: Acho que a gente pode começar agora, se você ainda estiver a fim.
Myers levantou da cadeira de jardim e seguiu Sol até a garagem. Sol trouxe dois cavaletes para serrar e arrumou-os no gramado. Depois trouxe uma serra elétrica. O sol tinha baixado por trás da cidade. Dali a trinta minutos estaria escuro. Myers baixou as mangas da camisa e abotoou os punhos. Sol trabalhou sem dizer nada. Grunhiu na hora que levantou uma das peças de um metro e oitenta e colocou-a em cima dos cavaletes. Depois começou a usar a serra, trabalhando de modo constante por algum tempo. A serragem voava. Por fim parou de serrar e recuou.
Pegou o espírito da coisa?, perguntou.
Myers apanhou a serra, ajustou a lâmina na fenda que Sol tinha começado a abrir e então começou a serrar. Encontrou um ritmo e se manteve nele. Continuou pressionando, inclinado sobre a serra. Em poucos minutos tinha serrado até o final da peça e as duas metades caíram no chão.
É assim mesmo, disse Sol. Você vai conseguir, disse. Pegou os dois pedaços de madeira e colocou-os junto à garagem.
De vez em quando — não em todas as peças de madeira, mas talvez em uma a cada cinco ou seis peças — você vai achar melhor partir a madeira ao meio com o machado. Não se preocupe com as lascas que soltarem. Eu cuido disso depois. É só partir com o machado uma a cada cinco ou seis peças que você pegar. Vou mostrar. Levantou a peça de um jeito brusco e, com um golpe do machado, partiu a madeira em duas partes. Agora tente você, disse.
Myers pôs a peça de madeira de pé, como Sol tinha feito, desceu o machado e partiu a madeira.
Está bom, disse Sol. Pôs as peças de madeira junto à garagem. Vá empilhando elas até esta altura aqui e depois vá fazendo uma pilha no lado de cá. Vou deixar uma cobertura de plástico por cima quando tudo estiver terminado. Mas você não é obrigado a fazer isso, entende?
Está tudo bem, disse Myers. Eu estou mesmo a fim, senão nem tinha pedido.
Sol encolheu os ombros. Em seguida deu as costas e voltou para dentro de casa. Bonnie estava parada na porta, olhando, Sol parou, estendeu o braço em volta de Bonnie e os dois olharam para Myers.
Myers pegou a serra e olhou para eles. De repente sentiu-se bem e sorriu. De início, Sol e Bonnie se surpreenderam. Sol sorriu em resposta, e depois Bonnie. Em seguida voltaram para dentro de casa.
Myers pôs outra peça de madeira sobre os cavaletes e trabalhou por algum tempo, serrando, até o suor começar a esfriar na testa e o sol sumir no horizonte. A luz da varanda foi acesa. Myers continuou trabalhando até terminar a peça que estava serrando. Levou as duas peças até a garagem e depois entrou, lavou-se no seu banheiro, depois sentou-se à mesa em seu quarto e escreveu no seu caderno. Estou com serragem nas mangas da camisa esta noite, escreveu. É um suor doce.
Naquela noite Myers ficou muito tempo acordado na cama. Quando se levantou, olhou pela janela na direção do monte de madeira que estava no quintal e seus olhos foram atraídos para além, para o vale e as montanhas acima. A lua estava parcialmente encoberta pelas nuvens, mas ele podia ver os picos e a neve branca e, quando levantou a janela, o ar doce e frio se derramou sobre o quarto; bem ao longe, Myers podia ouvir o rio correndo pelo vale.
Na manhã seguinte, tudo o que ele podia fazer era esperar que os dois saíssem da casa para ele ir até o quintal e começar a trabalhar. Achou um par de luvas na escadinha da entrada dos fundos, que Sol devia ter deixado ali para ele. Serrou e partiu madeira até o sol ficar diretamente sobre sua cabeça, depois entrou, comeu um sanduíche e tomou um pouco de leite. Depois voltou lá para fora e recomeçou o trabalho. Seus ombros doíam, os dedos estavam machucados e, apesar das luvas, algumas farpas tinham entrado em suas mãos e ele sentia que bolhas estavam crescendo, mas continuou a trabalhar. Resolveu que iria cortar, partir e empilhar aquela madeira toda antes do pôr do sol e que era uma questão de vida ou morte fazer aquilo. Preciso terminar esse trabalho, pensou, senão... Parou para enxugar o rosto com a manga da camisa.
Na hora em que Sol e Bonnie voltaram do trabalho naquela noite — primeiro Bonnie, como de costume, depois Sol —, Myers já tinha quase terminado. Havia um denso monte de serragem entre os cavaletes e, a não ser por duas ou três peças ainda no quintal, toda a madeira estava empilhada em camadas junto à garagem. Sol e Bonnie ficaram parados na porta sem dizer nada. Myers levantou a cara do trabalho por um instante e assentiu com a cabeça, e Sol também balançou a cabeça em resposta. Bonnie apenas ficou parada olhando, respirando pela boca. Myers continuou.
Sol e Bonnie voltaram para dentro e começaram a jantar. Depois, Sol acendeu a luz da varanda, como tinha feito na noite anterior. Assim que o sol se pôs e a lua surgiu por cima das montanhas, Myers partiu a última peça de madeira, juntou os dois pedaços e levou para a garagem. Guardou os cavaletes, a serra, o machado, uma cunha e a marreta. Depois entrou na casa.
Sol e Bonnie estavam sentados à mesa, mas não tinham começado a comer.
É melhor você sentar aqui e comer com a gente, disse Sol.
Sente-se, disse Bonnie.
Ainda não estou com fome, disse Myers.
Sol não falou nada. Assentiu com a cabeça. Bonnie esperou um instante e então estendeu a mão para pegar uma travessa.
Você já fez tudo, eu aposto, disse Sol.
Myers disse: Amanhã eu limpo a serragem.
Sol mexeu a faca de um lado para o outro por cima do prato, como se quisesse dizer: Esqueça.
Vou embora daqui a um ou dois dias, disse Myers.
De certo modo, eu já estava imaginando isso, falou Sol. Não sei por que eu tive essa sensação, mas de algum modo, quando você se mudou para cá, eu não achei que fosse ficar muito tempo.
Não tem reembolso do aluguel, disse Bonnie.
Eh, Bonnie, disse Sol.
Está tudo bem, disse Myers.
Não, não está não, disse Sol.
Está tudo bem, disse Myers. Abriu a porta do banheiro, entrou e fechou a porta. Quando abriu a água da torneira, ouviu os dois conversando, mas não conseguia escutar o que estavam dizendo.
Myers tomou banho, lavou o cabelo no chuveiro, vestiu roupas limpas. Olhou para as suas coisas no quarto, coisas que tinha tirado da mala poucos dias antes, uma semana antes, e calculou que ia levar uns dez minutos para pôr tudo na mala e ir embora. Ouviu a televisão ser ligada no outro lado da casa. Foi até a janela, levantou-a e olhou de novo as montanhas, com a lua pairando sobre elas — nenhuma nuvem agora, só a lua e as montanhas, com calotas de neve no topo. Olhou o monte de serragem nos fundos e a madeira empilhada junto ao recanto sombrio da garagem. Escutou o rio correr por algum tempo. Depois foi até a mesa, sentou-se, abriu o caderno e começou a escrever.
A terra onde estou é muito exótica. Me faz pensar num lugar sobre o qual li, mas para onde nunca tinha viajado até agora. Do lado de fora da janela posso ouvir um rio e no vale atrás da casa tem uma floresta, precipícios e picos de montanha cobertos de neve. Hoje eu vi uma águia selvagem e um cervo, e cortei e serrei duzentos e cinquenta pés cúbicos de madeira.
Em seguida pousou a caneta na mesa e segurou a cabeça entre as mãos por um instante. Pouco depois, levantou, tirou a roupa e apagou a luz. Deixou a janela aberta quando foi para a cama. Daquele jeito estava bom.