Estão sentados à sombra junto a uma pequena mesa de ferro de jardim, tomando vinho em pesadas taças de metal.
“E por que você precisa se sentir desse jeito agora?”, pergunta ele.
“Não sei”, responde ela. “Sempre fico triste quando isso acontece. Foi um ano tão curto, e eu nem conheço nenhum dos outros.” Ela se inclina para a frente a fim de segurar a mão dele, mas ele é rápido demais para ela. “Eles parecem tão... tão pouco profissionais.” Ele pega o guardanapo que está no colo dela e enxuga os lábios dela de um jeito que se tornou detestável para ele no último mês. “Não vamos falar mais sobre isso”, diz ela. “Ainda temos três horas. Não vamos nem mesmo pensar nesse assunto.”
Ele encolhe os ombros e olha para além dela, na direção das janelas abertas, com seus quadrados de céu branco, semelhantes a cobertores, e olha para a rua, assimilando tudo ao mesmo tempo. A poeira recobre os prédios baixos e poeirentos e enche a rua toda.
“O que você vai vestir?”, pergunta ele sem se virar.
“Como você pode falar disso assim?” Ela afunda para trás na sua cadeira, entrecruzando os dedos, girando o anel de chumbo em volta do dedo indicador.
Não há mais nenhum cliente no pátio e nada se mexe na rua.
“Provavelmente vou me vestir de branco, como sempre. Mas pode ser que não. Não vou, não!”
Ele sorri, depois esvazia sua taça, saboreando no fundo os pedaços quase amargos de folhas macias que tocam seus lábios. “Vamos?”
Paga o vinho e separa mais cinco mil pesos adicionais para a dona da cantina. “Isto é para você.”
A velha hesita, olha para a mulher mais jovem e depois, com um movimento igual ao de um pássaro assustado, apanha as notas, amassa e enfia no bolso da frente. “Gracias.” Ela se curva toda dura e, em sinal de respeito, toca a testa.
O pátio está escuro e tem um cheiro parecido com madeira podre. Há umas arcadas pretas e bojudas em redor e uma delas se abre para uma rua. É meio-dia. O brilho pálido e mortiço o deixa zonzo por um instante. Ondulações de calor sobem das paredes de adobe da rua estreita. Seus olhos ficam cheios d’água, o ar está seco e quente em seu rosto.
“Você está se sentindo bem?” Ela segura o braço dele.
“Sim. Só um instante.” Numa rua muito próxima a eles, tem uma banda tocando. A música flui por cima das casas sem telhado, dissolve-se no calor acima da cabeça dele. “A gente precisa ver isso.”
Ela franze as sobrancelhas. É a mesma careta que faz quando alguém lhe diz que hoje em dia há poucos homens interessados na Arena. “Se você quer mesmo, querido.”
“Quero, sim. Vamos, você não vai me fazer um favor na minha última tarde?”
Ela aperta o braço dele com mais força e os dois descem a rua devagar, à sombra de um muro baixo, enquanto a música se aproxima cada vez mais à medida que se aproximam do fim da rua. Quando ele era menino, a banda tocava diversas vezes por ano, depois, durante muito tempo, passou a tocar duas vezes por ano, mas agora eles só tocavam e marchavam uma vez por ano. De repente a poeira lanosa e macia diante de seus pés espirra e ele chuta uma aranha marrom que se agarrou à ponta da sua sandália huarache, até conseguir jogar a aranha longe.
“Acha que é melhor a gente fingir?”, pergunta ele.
Os olhos dela seguiram a aranha e agora se voltam para ele, vazios e cobertos por uma película cinzenta, imóveis abaixo da testa úmida. Seus lábios se contraem: “Fingir?”.
Num impulso, ele lhe dá um beijo. Os lábios dela estão secos, rachados, ele a beija com força e aperta seu corpo contra a parede quente de tijolos. A banda guincha, zoa e passa no fim da rua, faz uma pausa e segue em frente. Agora mais distante, à medida que avança a passos firmes e depois dá uma volta e entra em outra rua.
“Do mesmo jeito que era quando a gente se conheceu e eu era um jovem discípulo esforçado. Lembra?” Ele lembra, de todo modo. Tardes longas e quentes na Arena; treinando, treinando, aperfeiçoando — todos os gestos, todos os pensamentos, todos os encantos. O sangue palpitava e corria depressa de tanta emoção enquanto seus compadres terminavam, um a um. Ele era um dos contemplados pela sorte e era dedicado. Então ascendeu para o restrito grupo dos elegíveis e depois, por fim, subiu mais ainda, acima deles.
“Lembro”, diz ela.
Aquele último ano como sua mulher, ela talvez se lembrasse, e talvez se lembrasse daquela tarde. Por um momento ele se permite pensar naquela tarde.
“Foi bom... foi bom, sim”, diz ela. Seus olhos estão frios e turvos, vazios em seu rosto, como os olhos de uma serpente que ele matou um dia nas montanhas, na época em que as cobras mudam de pele e ficam meio cegas.
Alcançam o fim da rua e param. Faz silêncio e o único barulho que chega até eles é uma tosse crepitante, abafada, que vem de algum ponto no fim da rua, da direção de onde está a banda. Olha para ela, que dá de ombros, antes que os dois entrem na outra rua e sigam por ali. Passam por alguns velhos sentados nos pórticos, as portas fechadas com tábuas pregadas às suas costas, seus grandes sombreiros empoeirados empurrados para cima do rosto, as pernas dobradas com os joelhos levantados bem juntas ao peito, ou então esticadas na rua. A tosse recomeça, seca e pesada, como se viesse de dentro da terra, a garganta entupida de poeira. Ele fica escutando e olha bem para os homens.
Ela aponta para um corredor estreito onde está um homem pequeno, grisalho, de cabeça descoberta, espremido entre duas casas. O homem abre a boca... e solta uma tosse.
Ele a segura e a vira para ele. “Com quantos de nós você viveu?”
“Puxa... cinco ou seis. Preciso pensar. Por que você está perguntando?”
Ele balança a cabeça. “Lembra do Luis?”
Ela puxa o braço e se solta dele, sua pulseira pesada faz um barulho tilintante e seco. “Ele foi o meu primeiro. Eu o amava.”
“Ele me ensinou quase tudo... Eu precisava saber.” Morde o lábio e o sol pressiona seu pescoço feito uma pedra quente e chata. “Lembra do Jorge?”
“Sim.” Estão andando de novo e ela segura o braço dele outra vez. “Um homem bom. Um pouco parecido com você, mas eu não o amei. Por favor, não vamos falar mais disso.”
“Está certo. Acho que eu gostaria de caminhar até a plaza.”
Homens e mulheres de olhos inexpressivos observam os dois passarem. Estão inclinados junto às portas ou agachados em recantos escuros e alguns olham para eles das janelas com ar entediado. Os dois seguem adiante, para fora da cidade, rumo à planície. Em volta, por todo lado, há blocos de argamassa e restos de paredes velhas brancas de cimento cobertas de limo e lascas e pedaços partidos, granulosos, que estalam esmagados sob seus pés. Por cima de tudo, uma grossa capa de poeira. O sol blindado rebrilha branco e ofuscante sobre a cabeça deles, queimando as roupas por cima das suas costas pegajosas.
“Era melhor a gente voltar”, diz ela, apertando um pouco o braço dele.
“Daqui a pouco.” Ele aponta para as flores finas, amarelas e desbotadas que se espicham para o alto na fenda preta de um bloco partido da estrada de cimento. Estão parados no Zocalo, a Praça Principal, de frente para as ruínas da Catedral Metropolitana. Margeando a praça há uma linha de pequenos montes poeirentos e marrons, com um único buraco no lado de cada um, de frente para eles. Para além das colinas, fileiras marrons de casas de adobe se estendem e se espalham na direção dos morros, até que só se consegue avistar o topo das casas mais altas. Depois, uma linha comprida que sobe e desce formada por montanhas cinzentas e corcundas que se estendem vale abaixo, até onde a vista alcança. As montanhas sempre trouxeram à sua lembrança mulheres de peitos grandes deitadas, mas agora tudo aquilo parece estranho e sujo.
“Por favor, amor”, diz ela. “Vamos voltar agora e beber um pouco de vinho enquanto ainda temos tempo.”
Na Arena, a banda começou a tocar, alguns trechos de melodia escapavam e atravessavam a planície até onde eles estavam. Ele escuta. “Sim. Não podemos nos atrasar.” Olha para o chão e revira a terra com o calcanhar. “Está certo, sim, vamos lá tomar um pouco de vinho.” Ele se curva e pega um pequeno ramalhete de flores amarelas para ela.
Vão até a cantina de Manuel e, quando Manuel os vê sentarem-se a uma de suas mesas, primeiro os cumprimenta e depois vai à adega e traz de lá sua última garrafa de vinho tinto.
“Você vai estar na Arena hoje à tarde, Manuel?”
Manuel observa uma rachadura que atravessa toda a extensão da parede atrás da mesa. “Si.”
“Não fique assim, meu amigo. Não é tão ruim. Olhe aqui.” Inclina sua taça e deixa o vinho morno descer pela garganta. “Estou feliz? De que ia adiantar se eu não estivesse feliz? O momento deve ser perfeito, tem de haver alegria e concórdia da parte de todas as pessoas interessadas.” Sorri para ele; nenhum rancor. “É assim que sempre foi, então, veja bem — eu só posso estar feliz. E você também devia estar, meu amigo. Estamos todos juntos nisso.” Termina de beber outra taça e enxuga as mãos suadas na calça. Depois se levanta e aperta a mão de Manuel. “Precisamos ir embora. Até logo, Manuel.”
Na entrada da casa deles, ela se agarra a ele, sussurra e acaricia seu pescoço. “Amo você de verdade! Só amo você.” Puxa o homem para junto de si, seus dedos afundam nos ombros dele, puxando seu rosto na direção do seu. Então ela se vira e corre para a porta.
Ele grita: “Você tem de se apressar, se vai trocar de roupa!”.
Agora ele está caminhando nas sombras verdes do fim de tarde, atravessa uma praça deserta, seus pés calçados com sandálias vão se acomodando à terra quente e esfarelada. Por um momento o sol se escondeu atrás de um emaranhado de nuvens brancas e, quando ele entra na rua que leva à Arena, ela está muito clara, sem cor e não há sombras. Silêncio, pequenos grupos de pessoas arrastam os pés pela rua, mas desviam os olhos e não dão nenhum sinal de reconhecê-lo quando passa por elas. Na frente da Arena, um grupo de homens e mulheres poeirentos já está esperando. Olham para o chão ou para o céu enfeitado de rendas brancas e alguns estão de boca aberta com a cabeça quase tocando os ombros, balançando-se para a frente e para trás, como hastes esfarrapadas de pés de milho, enquanto acompanham as nuvens com os olhos. Ele entra por uma entrada lateral e segue diretamente para o camarim.
Ele se estende na mesa, o rosto voltado para a vela branca e gotejante, enquanto observa as mulheres. Seus movimentos lentos e distorcidos bruxuleiam nas paredes ao tirarem a roupa dele, esfregam seu corpo com óleo e perfume antes de vesti-lo de novo num traje branco, de textura áspera. Paredes de barro ladeiam o quarto estreito e quase não há espaço para a mesa e as seis mulheres que pairam à sua volta. Um rosto marrom, oleoso e enrugado espia o seu, exala um hálito úmido de comida velha, o hálito arranhando na garganta da mulher. Os lábios se estendem mais, até que se separam, abrem e fecham sobre sílabas roucas e ancestrais. As outras repetem as sílabas enquanto o ajudam a levantar da mesa e o conduzem até a Arena.
Ele se deita ligeiro sobre o pequeno tablado, fecha os olhos e fica ouvindo a cantoria das mulheres. O sol brilha em seu rosto e ele vira a cabeça para o lado. A banda retoma a música com mais força, mais perto agora, em algum lugar dentro da Arena, e por um momento ele fica ouvindo a banda tocar. A cantoria das mulheres se transforma de repente num murmúrio, depois para. Ele abre os olhos, vira a cabeça, primeiro para um lado, depois para o outro. Por um instante, todos os rostos estão concentrados nele, as cabeças esticadas para a frente. Ele fecha os olhos para aquela visão. Então soa o tilintar de um bracelete pesado perto do seu ouvido e ele abre os olhos. Ela está de pé acima dele, vestida num roupão branco e segurando a comprida e cintilante faca de obsidiana. Ela se curva mais para perto, o ramalhete de flores entretecido em seus cabelos — abaixa-se mais ainda sobre o rosto dele, ao mesmo tempo que abençoa o amor e a devoção dele e pede seu perdão.
“Perdoe-me.”
“De que adianta?”, sussurra ele. Então, quando a ponta da faca toca seu peito, ele grita: “Eu perdoo você!”.
E as pessoas ouvem e recuam em seus bancos, exaustas, na hora em que ela corta o coração dele e o segura na mão erguida para o sol luminoso.