7
AUTÓPSIA
Jazia ali, imóvel, sem vida, aparentemente serena, contra um fundo de aço inoxidável e azulejos brancos. Um lençol branco cobria-lhe o corpo, vendo-se apenas o seu belo rosto. Agora, tinha os olhos fechados, talvez obra do médico legista. A areia desaparecera-lhe do cabelo, deixando-o liso, brilhante, como seda espalhada pelo aço frio e estéril da marquesa.
Tess engoliu em seco, um pouco engasgada. Estava junto à mesa, a olhar para o rosto sereno de Sonya, murmurando palavras incompreensíveis sem se aperceber. Que tipo de homem faria aquilo? Contudo, ela sabia. Já os vira. Enquanto investigadora, caçara-os, apanhara-os ou matara-os. Com aquele sacana não seria diferente.
Há dez anos que era agente do FBI e encontrara todo o género de psicopatas, seres hediondos com mentes dominadas pelas trevas dos seus desvios e que tinham posto em prática as mais sádicas e incompreensíveis fantasias, deixando rastos de cadáveres para agentes como ela enterrarem. Um a um, Tess apanhara os assassinos que perseguira; no entanto, parte dela não conseguia entendê-los. Volvidos dez anos… não havia grande esperança de perceber como essas mentes funcionavam e, na maior parte das vezes, nem queria. Evitava que o seu horror a contaminasse, não queria que o abismo lhe devolvesse o olhar. Desejava saber e perceber apenas o suficiente para apanhar os assassinos antes que eles pudessem voltar a matar.
Quase tocou com a mão no cabelo de Sonya, mas deteve-se e enfiou-a bem fundo no bolso. Quão pouco sabiam acerca de Sonya… só que era uma jovem recém-licenciada a começar a vida. Quanto ao assassino, nada conheciam dele. Nem impressões digitais, nem vestígios, zero. Mas, por mais inteligente que fosse e cuidadoso que tivesse sido, Tess ia encontrá-lo. Isso era um facto, mais do que uma promessa. O compromisso do seu registo impecável que até o agente especial responsável Pearson tinha de reconhecer. Ela ia encontrá-lo. Em breve.
— Também faço isso, sabe? — afirmou o Dr. Rizza, baixinho.
— O quê?
— Falar com eles — disse ele, apontando para a marquesa.
— Ah… e eles falam consigo?
— Sim, sempre. Ela já me disse muito, e nem sequer acabámos a nossa conversa.
— Importa-se de partilhar?
— Vamos esperar pelo Michowsky e pelo Fradella. Devem estar a chegar.
— Está bem, claro — respondeu Tess, deixando os olhos vaguear, distraídos, pelas coisas, os incontáveis pormenores do gabinete do Dr. Rizza. Os diplomas, impecavelmente emoldurados, estavam pendurados por cima da secretária, talvez exibidos por ordem cronológica. Não havia retratos a adornar as paredes frias, mas, junto à secretária, um par de prateleiras recebia alguns objetos pessoais. Um pequeno rádio, uma relíquia de antes da era digital que provavelmente ainda funcionava. Alguns livros de referência, ilustrados, sobre entomologia, biologia marinha, botânica e zoologia, sem dúvida também anteriores às respetivas versões em base de dados. Uma chávena de café com a mensagem: «Os médicos legistas também são cool.» Exemplo típico do humor negro da profissão. Há anos que não o visitava, mas pouca coisa mudara.
— Como se mantém são, doutor? — perguntou Tess.
— Depois de fazer isto? — questionou ele, junto ao lavatório. O som de instrumentos metálicos a serem largados num tabuleiro ressoou ruidosamente pela grande sala, ecoando contra as paredes vazias revestidas de azulejo.
— Sim…
A água parou de correr e, por um segundo, a única coisa que Tess ouviu foi o zumbido grave do compressor de refrigeração.
O Dr. Rizza endireitou as costas e limpou as mãos a um toalhete de papel, deitando-o depois num caixote do lixo ativado por sensor. Então, passou as mãos pelo cabelo escasso, como que para convencer as restantes madeixas a ficar no sítio. Também ele não mudara muito desde que Tess visitara a sua morgue. Um pouco menos de cabelo, mais alguns quilos, e várias rugas.
— Penso em cada laceração e contusão como pistas úteis para vos ajudar a apanhar estes animais. Quando chegam a mim, estas vítimas já partiram. Já não sofrem. Encontraram a paz. Concentro-me nisso.
Tess olhou para ele, surpreendida. Parecia perturbado, assombrado, apesar do que partilhava. Passado um pouco, continuou, numa voz quase inaudível.
— Há dias, porém, em que os meus jantares são líquidos, se é que me entende. Saio daqui e não consigo ver, nem falar com ninguém. Limito-me a ir para casa e a fechar-me lá dentro com uma garrafa de uma bebida forte, esperando que isso apague tudo.
— E apaga?
— Nah… só amortece a dor e a raiva. Torna-a suportável e dá-me forças para voltar no dia seguinte.
Juntou as mãos, embrenhado em pensamentos.
— Oiço música clássica sempre que posso — continuou, decorrido pouco tempo. — Resulta comigo… é pura, limpa, cheia de emoção, de vida. E às vezes voo.
— É piloto?
— Piloto privado, sim. Só a licença mínima necessária para ir lá acima sozinho. Alugo uma pequena aeronave de vez em quando. Levo-a lá para cima e limito-me a deixar que aquela serenidade entre em mim. Durante uma hora, posso imaginar que o mundo é um sítio melhor, livre destes horrores sem sentido.
Olhou para o nada durante algum tempo e depois perguntou:
— O que faz?
Tess pensou na resposta que estava prestes a dar. Não havia muito que pudesse partilhar sem abrir a porta a mais perguntas.
— Oh… leio, sobretudo. Policiais, se é que acredita — disse, rindo-se. O som da sua voz ecoou de forma inquietante na quietude fria da sala. — Assassinos em série, dramas policiais, investigações à moda antiga, histórias de detetives modernos. Thomas Harris é um dos meus favoritos; tenho um monte de teorias sobre a psicologia do Doutor Hannibal Lecter.
— Não tem que chegue disso no trabalho? — O Dr. Rizza arqueou as sobrancelhas, enrugando a testa alta.
— Tenho, e sobra. Mas mantém-me a mente aberta a novas ideias. Fascina-me como o mundo do crime se tornou de súbito perverso, à falta de melhor palavra, há cerca de cinquenta anos. Antes dos anos mil novecentos e setenta, o crime era relativamente simples. Esfaqueamentos, estrangulamentos, ferimentos de bala. Motivos claros, como o ciúme, a ganância ou a vingança. Crimes limpos, quase elegantes, comparados com hoje. Descobrir o culpado era um desafio para o cérebro, a maior parte das vezes. Não algo que nos dava voltas ao estômago.
O rosto do Dr. Rizza iluminou-se.
— Sei o que quer dizer. Há uma teoria que defende que, nos anos mil novecentos e setenta, com a expansão da televisão, as pessoas começaram a ter mais consciência deste tipo de crimes, quando, na verdade, eles existem desde o início dos tempos. A história tem os seus exemplos, como Jack, o Estripador, ou Calígula, há dois mil anos. Outra vertente defende que até os psicopatas precisam de inspiração e que, com as tendências atuais do entretenimento, na música, no cinema e na literatura, obtêm todo o tipo de ideias. Mas não é assim que se mantém sã, Winnett, isso é como fica melhor no que faz. Está a fugir à pergunta?
— Não intencionalmente, não. Eu…
— Desculpem termos demorado tanto — disse Michowsky, precedido pelo som das portas automáticas. — Cruzámo-nos com o capitão. Queria uma atualização.
— Está bem, vamos começar — respondeu o médico. O entusiasmo trazido pela sua conversa anterior tinha desaparecido, substituído por uma inconfundível expressão de tristeza misturada com aversão. — Isto não é o relatório completo. Sabem bem que não devem contar com isso antes de quarenta e oito horas. Isto é preliminar. Queria dar-vos um avanço.
Michowsky e Fradella puxaram dos blocos de notas.
O Dr. Rizza soltou um suspiro antes de falar.
— Neste momento, posso confirmar a causa da morte. Foi apunhalada, talvez com um bisturi, e depois a lâmina foi empurrada para a frente, assim. — Levou uma faca para junto de um manequim e fez a demonstração. — Não seccionou. Esta perfuração profunda, seguida do corte ao empurrar para a frente, levou a que a jugular e a carótida fossem cortadas. Não há sinais de hesitação. Morreu por exsanguinação, rapidamente. Os salpicos de sangue arterial devem ter sido enormes. Quando encontrarem a cena primária do crime, verão o que quero dizer. É aí que acabam as notícias relativamente boas.
Esperou que Michowsky e Fradella terminassem de escrever e prosseguiu:
— Como esperado, não há vestígios nem impressões digitais no corpo. Ao depositá-la na praia, o assassino expô-la à areia e à maresia, e isso limpou tudo.
— E quanto ao exame toxicológico? — perguntou Tess.
— Já lá chegamos. O relatório toxicológico preliminar veio com uma confusão de vestígios de vários químicos. Enviei amostras para um conjunto completo. Saberemos mais dentro de trinta e seis a quarenta e oito horas.
— Vou ver se consigo apressar isso — sugeriu Tess. — Puxar uns cordelinhos.
— Dei o meu melhor, mas veja o que pode fazer. Talvez os feds tenham mais peso do que nós, os locais. Agora, voltemos à morte propriamente dita. A acumulação de sangue mostra que morreu e foi mantida post mortem naquela posição de oração, mas sem que os joelhos tocassem no chão.
— O que quer dizer com isso, doutor? — perguntou Michowsky.
— Que ela estava suspensa nalgum tipo de arnês quando foi morta.
— Oh, Deus — exclamou Tess, baixinho.
— Então, depois de a rigidez estar instalada, ele moveu-a e posicionou o corpo como o encontrámos.
— Isso quer dizer marcas de contenção? — perguntou Tess.
O Dr. Rizza afastou delicadamente o lençol, expondo-lhe apenas o braço e a perna esquerdos.
— Muito reduzidas. Estava à espera de mais. A ausência de marcas de contenção mais profundas só pode ser explicada se ele tiver utilizado algo assim — disse ele. Carregou num botão de um telecomando e projetou uma imagem na televisão montada na parede. — Estes arneses são vendidos em sex shops de luxo. São forrados de pelo artificial e, embora restrinjam eficazmente o movimento, são também macios e não rompem nem arranham a pele. Podem, todavia, deixar marcas de fricção, se a vítima se debater contra o cativeiro durante muito tempo, precisamente o que encontrei aqui — clarificou, apontando-lhe para o pulso. — Os tornozelos mostram o mesmo tipo de fricção, e também o pescoço. A cintura apresenta menos fricção, mas há alguma, o suficiente para me permitir prever o tipo de arnês com que ela foi imobilizada.
Carregou noutro botão e a imagem mudou para um arnês sexual comercialmente embrulhado em cores brilhantes. A embalagem mostrava a imagem de uma mulher suspensa do teto. Tinha os pulsos algemados e puxados para a frente, a cintura e os ombros sustentados por uma grossa faixa semelhante a couro forrada de pelo, e as pernas imobilizadas nos tornozelos, com os joelhos meio dobrados. Havia um homem na fotografia, aproximando-se por trás da mulher suspensa enquanto puxava com as duas mãos as cintas do arnês para a posicionar como quisesse.
Uma náusea atingiu Tess ao ver as imagens no monitor. Respirou fundo algumas vezes, afastando-se. O Dr. Rizza dirigiu-lhe um olhar inquisitivo, mas ela rejeitou a sua preocupação com um retorcer dos lábios e um rápido abanar de cabeça.
— Estes artigos estão disponíveis em algumas lojas — continuou Rizza. — Pode ser esta marca ou diferente. Eis algo que talvez possam usar: estas coisas não saem baratas. Custam centenas de dólares. O assassino tem posses. Não há muitas sex shops a vendê-las; só as de luxo. Também há poucos fabricantes e importadores. Talvez consigam elaborar uma curta lista de estabelecimentos e rastrear uma transação.
Bebeu um gole de chá e fez uma careta. Estava provavelmente frio e insípido.
— Foi violada, sodomizada e espancada — prosseguiu — repetidamente. Saberei mais com o exame completo. Não encontrei fluidos; nenhum ADN que possamos utilizar.
— Impressões digitais? — crocitou Tess, com a voz embargada. Pigarreou. — Quero dizer dela.
— As impressões digitais correspondem às registadas no relatório do desaparecimento. Era demasiado recente para terem estado no sistema, mas correspondem. Há mais.
— Desculpe… — sussurrou Tess. Era a segunda vez que o interrompia.
— Foi cortada, superficialmente, muitas vezes, com uma lâmina afiada, um bisturi ou talvez um X-ato. Contei cento e cinquenta e três cortes diferentes, não mais de alguns milímetros de profundidade, nas costas e nas coxas, bastante superficiais para deixar uma cicatriz fina, quase invisível. Todos os cortes foram perimortem. Alguns estão quase curados.
Tess sentiu o estômago formar um novo nó.
— Não se trata de cortes fatais. Foram feitos para infligir dor e terror. Imaginem cento e cinquenta e três cortes de papel — esclareceu o médico. — Há vestígios de inflamação nalguns que ainda não consigo explicar.
— Está a dizer… — começou Michowsky.
— Está a falar em tortura — respondeu Tess, antes que o Dr. Rizza pudesse falar, mas o médico legista assentiu. — Isto teve que ver com tortura, física e psicológica, levada a cabo durante dias.
— Disse que foi espancada, doutor — comentou Fradella —, mas não lhe vejo hematomas na cara e também não deteto muitos no corpo.
— Por algum motivo, este assassino manteve-lhe o rosto quase intacto. Encontrei uma mordedura no lábio inferior, praticamente curada. Dependendo da profundidade original, pode ter sido mordida vários dias antes da morte. Não tenho a certeza se está relacionada, mas não podemos descartá-la. Quanto ao resto do corpo, o fluoroscópio mostrou sinais de hematomas profundos, provavelmente recentes, nas últimas vinte e quatro horas antes da morte. Acreditem em mim, ela foi espancada.
— É quase como se tivesse sido atencioso — disse Fradella. — Rosto intacto, amarras macias.
— Não seja idiota, Fradella — disparou Tess, mais brusca do que pretendia. — Ele violou-a durante cinco dias, por amor de Deus. Isto não tem que ver com ser-se atencioso, mas sim com controlo, com poder total.
Tess viu Fradella desviar o olhar, cerrando os maxilares. Agora, fizera o mesmo que criticara em Michowsky, repreendera Fradella em público.
— Desculpe, detetive Fradella, não queria…
— Não faz mal — respondeu ele friamente.
— Mais alguma coisa? — acrescentou Michowsky.
— Sim. Isto também é preliminar, como tudo o que vos disse até agora. Foram-lhe dadas injeções, repetidamente, tanto intravenosas como intramusculares. Este achado, combinado com um trato gastrointestinal vazio, mas sem sinais de desidratação, diz-me que ele a alimentava por via intravenosa.
— Porque haveria ele de fazer isso? — perguntou Fradella.
Tess retraiu-se, em antecipação à resposta do médico legista.
— Para gerir as excreções — respondeu ele. — As suas necessidades sanitárias. Provavelmente, manteve-a o tempo todo presa num arnês e queria as coisas o mais limpas possível.
— Oh — disse Fradella, e desviou o olhar.
— Pois. No entanto, isso só explica as marcas das agulhas intravenosas, não as das nádegas. Tirei amostras e enviei-as para detetar vestígios. O exame toxicológico revelará muitos químicos diferentes, e pode ter sido assim que eles lhe entraram no sistema, através de injeções. Logo que souber, dir-vos-ei. É tudo o que tenho, para já.
Ficaram em silêncio durante alguns momentos. Embrenhada em pensamentos, Tess esfregou vigorosamente a nuca, depois insistiu um pouco no lado esquerdo, por baixo da orelha. Às vezes, sentia necessidade de passar a mão naquela zona, para aliviar a dolorosa rigidez dos músculos doridos e do stresse. Algumas pessoas acumulam stresse na parte superior das costas, devido às más posturas, refletindo a tensão do cérebro cansado. Com ela, era principalmente do lado esquerdo. Desde que começara a trabalhar naquele caso, a dor quase esquecida do lado do pescoço tinha regressado em força, colando-lhe uma amostra de dor ardente que se estendia da cervical à parte de trás da orelha, junto à linha do cabelo. Talvez fosse a morgue… demasiado fria, imensas correntes de ar. Ou o ar condicionado junto à orelha. Uma compressa de aquecimento devia tratar disso mais tarde.
— Vejamos então se percebemos isto bem, doutor — disse ela. — Este assassino não foi hesitante, certo?
— Nem por um segundo — confirmou o Dr. Rizza. — É hábil com um bisturi e conhece os soros, tendo acesso a qualquer medicação de que precise, de fluidos intravenosos a tudo o mais que vamos encontrar no relatório toxicológico. A minha conclusão é que é algum profissional de saúde, provavelmente um médico, com acesso livre a medicamentos, o que pode significar um clínico de hospital, não de ambulatório. Também pode ser um hospício. Este homem já cortou carne humana antes. Não há dúvidas.
— Eu disse — observou Fradella —, isto tem assassino em série escrito em toda a parte.
— Sim, concordo — respondeu Tess, baixinho. — Precisamos de encontrar as outras vítimas. Doutor, alguma hipótese de a Sonya ser a sua primeira vítima?
— É possível, mas não é provável.
— Obrigada — respondeu ela, preparando-se para partir.
Os dois detetives dirigiram-se às portas automáticas e Tess seguiu-os de perto. Ia a virar a cabeça para se despedir quando o Dr. Rizza chamou o seu nome.
— Agente Winnett.
— Sim — respondeu ela. As portas fecharam-se, silenciosas, atrás de Michowsky e Fradella. Viu-os entrar no elevador a caminho da sala de patrulha.
— O meu jantar esta noite vai ser algum tipo de líquido — disse o Dr. Rizza, sorrindo tristemente. — O que vai fazer?
— Não tenho tempo para líquidos, doutor. Quando o seu trabalho termina, o meu começa. Vou apanhar um assassino.