Uma das questões essenciais a clarificar no âmbito do tratamento processual que se faça da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos é esta de saber qual a jurisdição competente para o julgamento da presente acção. As dúvidas imediatas que a questão convoca prendem-se, por um lado, com o facto de estar em causa o reconhecimento da propriedade privada sobre determinadas parcelas de terrenos e, por outro lado, com a circunstância de a propriedade privada cujo reconhecimento se pretende estar relacionada com bens presuntivamente integrantes do domínio público. Na verdade, se o primeiro elemento nos convoca para a competência dos tribunais comuns, o segundo não deixa de apontar para a jurisdição administrativa. Por outro lado, uma vez definida a jurisdição, curial se torna perceber qual o tribunal competente, em função dos vários critérios delimitadores da competência interna dos tribunais.
Como começou por se enunciar, a comunhão, na mesma acção, da pretensão de propriedade privada e da presunção de dominialidade em relação a determinadas parcelas de terreno, levanta, legitimamente, a questão de saber se a competência jurisdicional para as presentes acções radica nos tribunais ditos comuns ou, antes, na ordem dos tribunais administrativos e fiscais. A dúvida é tão mais intensa quanto, como melhor veremos, o Estado deve ser demandado na presente acção.
Não obstante as dúvidas iniciais que o caso convoca, uma reflexão mais ponderada sobre a questão permite-nos concluir, com segurança, que competente para a presente acção será a jurisdição dos tribunais judiciais ou tribunais comuns57, em deterimento da jurisdição administrativa. Na verdade, «[c]abe aos tribunais judiciais julgar todas as causas, cujo conhecimento a lei não atribua a outras espécies de tribunais, cumprindo aos tribunais administrativos dirimir os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas», sendo que «[p]or relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido»58. Ora, no caso em apreço não está, certamente, em causa, uma relação jurídica administrativa, na medida em que o que o autor invoca nesta acção é o reconhecimento da propriedade privada sobre determinadas parcelas de terreno, propriedade esta cujo reconhecimento se fará de acordo com normas, regras e princípios de direito privado. Por outro lado, a entidade pública que seja demandada no presente processo surge desligada de qualquer poder de autoridade, aparecendo numa posição de paridade com o particular, o que se afigura igualmente determinante para atribuição de competência aos tribunais comuns. Em síntese se diga que, se «a apreciação do pedido depender, exclusiva ou essencialmente, da interpretação e aplicação de normas de índole jurídico-privada e, na acção, o ente publico actue, no processo, despojado de tais poderes, ou seja, em paridade e com igualdade de armas relativamente à outra parte, emerge a competência residual dos tribunais judiciais comuns»59. Assim entendemos suceder no presente caso.
Confirmando este entendimento, o artigo 17.º, n.º 5, da Lei n.º 54/2005, prescreve que a «delimitação [dos leitos e margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza] a que se proceder por via administrativa não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas»60. Na verdade, como bem se vê, através do presente preceito, o legislador deixou claro que uma coisa é a delimitação dos terrenos do domínio público, outra coisa é o reconhecimento da propriedade privada sobre os mesmos, sendo que, para esta última questão, serão competentes os tribunais comuns. Este mesmo entendimento encontra-se plasmado, jurispudencialmente, quando se sentencia, ainda que de forma reflexa, que é aos tribunais comuns que «compete decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas»61.
Resolvido o problema da jurisdição, importa agora perceber qual o tribunal da jurisdição comum competente para apreciar e julgar a acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos. Antes de mais, comece por se salientar que a matéria da competência sofreu recentes e consideráveis alterações. Efectivamente, a determinação do tribunal competente faz-se por referência às regras do processo civil e às regras em matéria de organização judiciária, precisamente duas áreas nas quais foi, recentemente, aprovada nova legislação.
Recorde-se que, em matéria processual civil, entrou em vigor, a 1 de Setembro de 2013, o novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho. Por outro lado, em matéria de organização judiciária, foi recentemente aprovada a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, a chamada Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário. A propósito desta lei, importa salientar que o essencial das soluções que consagra não entrou ainda em vigor, uma vez que, tirando alguns (escassos) preceitos desta lei para os quais se estabelecem regras especiais, ela apenas entrará em vigor quando o decreto-lei que aprove o Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais começar a produzir os seus efeitos – artigo 188.º da LOSJ62. Por outro lado, quando entrar em vigor, será totalmente revogada a legislação que actualmente regula a organização judiciária63, conforme prescreve o 187.º da LOSJ.
Neste sentido, uma vez que, por um lado, ainda se encontra em vigor a antiga legislação sobre organização judiciária e, por outro, se espera para breve a entrada em vigor das novas regras, não podemos deixar de analisar a questão do tribunal competente para a apreciação da acção de reconhecimento da propriedade privada por referência àqueles dois regimes: o regime actualmente em vigor, que mantém a sua aplicação enquanto a LOSJ não for regulamentada – e que optamos por designar por “Regime do N-CPC”; e o novo regime, cuja entrada em vigor se aguarda para breve e que determinará a revogação do regime actual – que identificamos por “Novo regime da LOSJ”.
A determinação do tribunal competente opera-se mediante a mobilização de um conjunto de critérios: «Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território» – artigo 60.º, n.º 2 do N-CPC64. Assim sendo, será mediante uma conjugação de todos aqueles critérios que, na prática, se chegará ao tribunal concretamente competente para o conhecimento da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos. Não se pode, ainda assim, avançar sem se dar nota de que algumas das regras do novo Código de Processo Civil em matéria de competência se encontram redigidas em conformidade com as novas regras e a nova terminologia adoptadas pela LOSJ, que não coincidem exactamente com as regras ainda em vigor. Assim sendo, enquanto o actual regime de organização judiciária se mantiver em vigor, algumas das soluções prescritas em sede processual civil terão que ser lidas em conformidade com aquele regime e outras adaptadas em conformidade com o mesmo – especificidades das quais se procurará dar nota quando assim se afigurar oportuno. Isto posto, e partindo dos enunciados critérios de competência, comecemos por lhes passar revista individualizada, a fim de aferirmos, com segurança, o tribunal competente.
a) Em razão da matéria
Em conformidade com a regra da competência em razão da matéria, «[t]odas as acções cujas matérias não sejam especificamente atribuídas aos tribunais ou juízos de competência especializada, devem ser propostas nos tribunais judiciais de competência indiscriminada»65. Em sentido convergente, prescreve o artigo 65.º do N-CPC que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada». Como bem se vê, a lei processual fala agora em tribunais e secções especializadas, por ser esse o novo figurino traçado pelas novas leis de organização judiciária. No entanto, enquanto vigorarem a LOFTJ e a Nova LOFTJ, ter-se-á que falar, respectivamente, em tribunais de competência específica e juízos de competência especializada66.
Esclarecimento feito, cumpre, então, começar por salientar que, assumida a competência dos tribunais comuns, a determinação da competência se faz principiando por apurar se existe algum tribunal de competência específica ou algum juízo de competência especializada, no caso das comarcas piloto, para o julgamento da causa67. Se houver será esse o tribunal ou juízo competente; caso não exista serão competentes os tribunais de competência genérica ou os juízos de competência genérica. Assim sendo, e concluindo que não existem tribunais que julguem especificamente a matéria sobre que incide a acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos, terá que se concluir que serão competentes os tribunais de competência genérica. No caso das comarcas piloto, na medida em que existem juízos especializados de instância cível, em princípio, estes serão competentes68.
b) Em razão da hierarquia
Os tribunais judiciais encontram-se hierarquizados «formando uma pirâmide, cuja base é constituída pelos tribunais de 1.ª instância. No plano imediatamente a seguir encontram-se os tribunais da Relação, que funcionam como tribunais de 2.ª instância. No vértice da pirâmide situa-se o Supremo Tribunal de Justiça»69. Desta forma, a regra da competência em razão da hierarquia procura responder à questão de saber qual o tribunal, da citada ordem hierárquica, que se afigura competente para o julgamento da causa. A regra é a de que as acções são julgadas pelo tribunal de 1.ª instância, sendo os Tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça, essencialmente, instâncias de recurso, apesar de, excepcionalmente, algumas acções aí deverem ser intentadas. Desta perspectiva, se a competência para o julgamento não estiver atribuída aos tribunais superiores, são competentes os tribunais de 1.ª instância. No presente caso, não estando o julgamento da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos atribuído à competência de qualquer um dos demais tribunais, terá, necessariamente, de se concluir que serão competentes os tribunais de 1.ª instância.
c) Em razão do valor e da forma do processo
Antes de mais, faça-se notar que o N-CPC deixa de falar na competência em razão do valor e da forma do processo, para falar apenas na competência em razão do valor, passando a prescrever, que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo seu valor, se inserem na competência da instância central e da instância local» – artigo 66.º. Ora, na medida em que estes conceitos correspondem ao novo regime de organização judiciária que, como vimos, ainda não entrou em vigor, a solução para a determinação da competência em razão do valor e da forma do processo deve, neste momento, ser resolvida nos termos que a seguir se expõem.
(i) Quanto à competência em razão do valor, determinam as regras de organização judiciária ainda em vigor que, em razão do valor, poderá ser competente o tribunal singular ou o tribunal colectivo70. Sendo que o tribunal colectivo é competente para julgar as acções cujo valor exceda a alçada da Relação71, sem prejuízo dos casos em que a lei de processo exclua a sua intervenção. Acontece que as novas regras processuais civis deixaram de fazer referência à distribuição de competências entre o tribunal colectivo e o tribunal singular. Ou seja, apesar de as actuais regras de organização judiciária ainda serem aplicáveis, até à entrada em vigor das novas, o N-CPC já entrou em vigor, sendo que aquelas regras ainda operam a uma distribuição de competências entre o tribunal singular e o tribunal colectivo, ao passo que este já deixou deixou de prever a intervenção do tribunal colectivo.
Para resolver esta dicotomia de regimes, a própria lei que aprovou o N-CPC vem oferecer uma solução transitória, prescrevendo, no seu artigo 5.º, n.º 6 que «[a]té à entrada em vigor da Lei de Organização do Sistema Judiciário, competem ao juiz de círculo a preparação e o julgamento das ações de valor superior à alçada do tribunal da Relação instauradas após a entrada em vigor do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, salvo nos casos em que o Código de Processo Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 44 129, de 28 de dezembro de 1961, excluía a intervenção do tribunal coletivo»72. Assim sendo, no caso, não se verificando qualquer das causas que exclui a sua intervenção do tribunal colectivo (artigo 646.º, n.º 2, do antigo CPC), será competente o juiz de círculo, uma vez que, como veremos, esta acção tem um valor superior à alçada do tribunal da Relação.
A questão, não pode, contudo, dar-se ainda por terminada uma vez que nas comarcas piloto não existe juiz de círculo. Assim sendo, pode legitimamente questionar-se sobre quem recai a competência, em razão do valor, para o julgamento da presente acção, quando a mesma ainda deva ser intentada nas comarcas piloto, uma vez que o regime transitório do N-CPC atribui competência ao juiz de círculo, contudo, este não existe nas comarcas piloto. Parece-nos que, neste caso, será competente o equivalente ao juiz de círculo73, que é o juíz com afectação exclusiva ao julgamento em tribunal colectivo – artigo 78.º da Nova LOFTJ.
Não fica, no entanto, ainda o problema definitivamente resolvido, na medida em que, nos termos do Decreto-Lei n.º 25/2009, que complementa a Nova LOFTJ, estes juízes apenas foram colocados nas comarcas do Alentejo Litoral e do Baixo Vouga. Assim sendo, pergunta-se quem será competente na comarca da Grande Lisboa-Noroeste? Na ausência de qualquer elemento interpretativo, parece-nos que outra solução não resta que não seja o reconhecimento da competência ao tribunal singular.
(ii) Questão que também não se afigura de líquida resolução é esta relativa à competência em razão da forma de processo. Na verdade, o N-CPC deixou de prever que a distibuição da competênia se faça em razão da forma de processo, desde logo, porque o próprio legislador deixou de fazer a distinção entre processo ordinário, sumário e sumaríssimo74, da qual dependia a distribuição de competência em razão da forma de processo. A verdade é que ainda se mantêm, nas comarcas sujeitas à LOFTJ, as varas cíveis, os juízos cíveis e os juízos de pequena instância cível, e, nas comarcas sujeitas à Nova LOFTJ, os juízos de grande instância cível, os juízos de média instância cível e os juízos de pequena instância cível, cuja competência depende da forma de processo aplicável. Ou seja: a nossa organização judiciária ainda prevê estruturas orgânicas cuja distribuição de competência é feita de acordo com formas de processo que já deixaram de existir. E, diferentemente do que vimos suceder a propósito da competência em razão do valor, não está prevista para, estes casos, uma norma transitória que resolva a questão da competência. Desta forma, torna-se difícil apurar qual daquelas estruturas, que ainda se mantêm, será competente para o conhecimeto da causa.
A resposta parece-nos que deverá ser encontrada da seguinte forma: ainda que o legislador já não distinga, no processo declarativo, entre processo ordinário, sumário e sumaríssimo, para efeitos de tramitação processual, essa distinção deva ainda ser tida em conta para efeitos de distribuição de competência. Assim sendo, deverá-se-á fazer um juízo tendente a apurar qual a forma de processo aplicável caso o regime processual civil anterior ainda estivesse em vigor e, apuramento feito, determinar a competência em razão da forma de processo como continua a resultar da LOFTJ e da Nova LOFTJ.
Por isso, em razão da forma de processo aplicável, poderão ser competentes as varas cíveis, os juízos cíveis ou os juízos de pequena instância cível75, ou, no caso das comarcas piloto, os juízos de grande instância cível, os juízos de média instância cível, ou os juízos de pequena instância cível76. Na medida em que competência dos juízos cíveis e dos juízos de média instância cível é residual77, e não estamos perante uma matéria que caia no âmbito dos juízos de pequena instância cível, serão competentes, quando existam, as varas cíveis e, no caso das comarcas piloto, os juízos de grande instância cível.
d) Em razão do território
Finalmente, importa perceber qual o tribunal que, aferido por referência às regras de competência anteriores, se afigura territorialmente competente. A competência territorial, afere-se do seguinte modo: em primeiro lugar, deverá selecionar-se um determinado elemento de conexão, o qual irá apontar para um certo local; em segundo lugar, importa perceber qual o tribunal cuja circunscrição territorial integra esse mesmo local. Assim mesmo, ainda que colocando a resolução do problema sob uma perspectiva inversa: «[a] competência territorial para uma causa determina-se, portanto, em função de dois parametros. Por um lado, a circunscrição territorial correspondente ao tribunal e, por outro lado, o elemento de conexão de cada tipo de acções com a circunscrição»78. De entre aqueles elementos de conexão deverá, no caso da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos, ser mobilizado o relativo ao chamado foro real ou da situação dos bens, previsto no artigo 70.º, n.º 1, do N-CPC, que reza assim: «[d]evem ser propostas no tribunal da situação dos bens as acções referentes a direitos reais ou pessoais de gozo sobre imóveis, as acções de divisão de coisa comum, de despejo, de preferência e de execução específica sobre imóveis, e ainda as de reforço, substituição, redução ou expurgação de hipotecas». Na verdade, na hipótese que por ora curamos está, inegavelmente, em causa uma acção referente a um direito real, qual seja a propriedade privada sobre parcelas de leitos ou margens de recursos hídricos. Neste sentido, a presente acção de reconhecimento da propriedade privada deverá ser intentada no tribunal da situação dos bens.
Apurado que deve ser competente o tribunal do local da situação dos bens, cumpre perceber qual o tribunal cuja circunscrição territorial abrange esse mesmo local. Este exercício é feito tendo em conta o Mapa III anexo ao Regulamento da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio e, no caso das comarcas piloto, no Anexo II da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto (Nova LOFTJ), complementada pelo Anexo do Decreto-Lei n.º 28/2009, de 28 de Janeiro e pelo Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro.
Para finalizar, importa apenas chamar a atenção para a circunstância de poder acontecer que um mesmo terreno, cujo reconhecimento da propriedade privada se pretende, poder situar-se num local que cai no âmbito de jurisidição de mais do que um tribunal, colocando-se a dúvida de saber, qual é, nestes casos, o tribunal territorialmente competente. A resposta é dada pelo legislador, que, no artigo 70.º, n.º 3, do N-CPC, estabelece que «se o prédio que é objecto da acção estiver situado em mais de uma circunscrição territorial, pode ela ser proposta em qualquer das circunscrições».
Como vimos, o novo regime de organização judiciária constante da LOSJ, com o qual o N-CPC já se encontra em plena sintonia, em termos substantivos e terminológicos, ainda não entrou em vigor – excepção feita a um número reduzido de artigos não estruturantes. Ainda assim, porque se prespectiva para breve a sua entrada em vigor79, importa perceber qual o tribunal competente para o julgamento da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre recursos hídricos ao abrigo das novas regras processuais e de organização judiciária. Também aqui a competência se afere por referência a vários critérios, como prescreve o artigo 37.º, n.º 1, da LOSJ: «[n]a ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território». Será, portanto, com base nestes critérios que se operará a análise subsequente.
a) Em razão da matéria
O critério da competência em razão da matéria continua a ter relevância no âmbito do novo regime, ainda que formulado noutros moldes, porque diferente a nova organização judiciária. Neste sentido, passa a prescrever-se que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada»80. No mesmo sentido, mas concretizando ligeiramente o critério, a LOSJ estabelece que «[a] presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada»81. Resulta, implicitamente, da presente solução que se for legalmente competente um dos “tribunais de competência territorial alargada”, que são os tribunais de competência especializada a que se refere o processo civil, ou alguma secção especializada nos tribunais de comarca, a sua competência prevalece sobre a das secções de competência genérica dos tribunais de comarca82.
Isto posto, diga-se que nenhum dos “tribunais de competência territorial alargada” se mostra competente para o julgamento da presente acção83. No entanto, já se mostra (em razão da matéria) competente a secção cível da instância central do tribunal de comarca, dada a sua competência material para a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum84. Se, no entanto, algum outro critério obstar à competência da secção cível da instância central será competente a secção de competência genérica da instância local do tribunal de comarca85.
b) Em razão do valor
Como já se deixou enunciado anteriormente, a forma de processo deixou de figurar como critério atributivo de competência. O legislador menciona, agora, apenas a competência em razão do valor, passando a prescrever que «[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo seu valor, se inserem na competência da instância central e da instância local»86. Mais uma vez concretizando o critério enunciado nas regras de processo civil, a lei de organização judiciária vem estabelecer que «[a] presente lei determina a competência, em razão do valor, entre as instâncias dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem às secções cíveis das instâncias centrais e às secções de competência genérica das instâncias locais, nas ações declarativas cíveis de processo comum»87. Quer isto dizer que, no âmbito dos tribunais de comarca, para além de a distribuição de competências entre a instância central e a instância local ser feita em razão da matéria, em matéria cível, ela será, igualmente, efectuada em razão do valor.
Vimos que, em razão da matéria, poderia ser competente a secção cível da instância central do tribunal de comarca, ou, se algum outro critério obstasse à sua competência, a secção de competência genérica da instância local do tribunal de comarca. O critério decisivo que se mencionou é, precisamente, o critério da competência em razão do valor. A este propósito, importa salientar que o artigo 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ, prescreve que a secção cível da instância central do tribunal de comarca é competente para a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a € 50.000. Ora, na medida em que, como melhor veremos, a presente acção nunca tem um valor superior a € 50.000, a secção cível da instância central do tribunal de comarca não se afigura competente em razão do valor, antes se mostrando competentes as secções de competência genérica da instância local do tribunal de comarca. Assim mesmo: compete às secções de competência genérica, «[p]reparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada»88. Importando acrescentar que as secções de competência genérica podem ser desdobradas em secções cíveis89, as quais se mostrarão competentes caso sejam criadas.
c) Em razão da hierarquia
Em face do novo regime, e ainda que o legislador se reporte a este critério em terceiro lugar, ordem pela qual optamos também por o analisar, parece-nos que este deve ser um dos primeiros critérios a mobilizar na prática. Nos termos deste critério, se a acção não for da competência do Supremo Tribunal de Justiça ou dos Tribunais da Relação serão competentes os tribunais de 1.ª instância, ou seja, os tribunais de comarca e os tribunais de competência territorial alargada. Isso mesmo decorre da lei de organização judiciária quando, depois de mencionar que os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca90, vem prescrever que «[c]ompete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais»91. Ora, como a acção em causa não integra as hipóteses em que o Supremo Tribunal de Justiça e os Tribunais da Relação decidem em 1.ª instância, terá que se concluir, como aliás já se conclui, implicitamente, nos parágrafos precedentes, que será competente um tribunal integrante da ordem dos tribunais de 1.ª instância.
d) Em razão do território
Apurado que serão competentes as secções de competência genérica da instância local do tribunal de comarca, importa, por fim, perceber qual destas secções é competente em termos territoriais. A este propósito cumpre salientar que valem aqui as considerações tecidas a propósito da competência territorial ao abrigo do regime de organização judiciária ainda em vigor. Assim sendo, depois de se concluir que para o julgamento da presente acção é competente o tribunal da situação dos terrenos cujo reconhecimento da propriedade privada se pretende92, importa ver qual o tribunal cuja circunscrição territorial abrange o local onde o imóvel se situa. Importanto salientar que a circunscrição territorial dos tribunais virá a ser definida no Regime de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais a que o artigo 188.º da LOSJ faz referência e que, neste momento, aguarda aprovação.
Em síntese, de acordo com o regime de organização judiciária actualmente em vigor, para a apreciação e julgamento da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos são competentes: i) os tribunais da jurisdição comum; ii) de 1.ª instância; iii) dentro destes, os tribunais de competência genérica ou os juízos especializados de instância cível, no caso das comarcas piloto; iv) sendo competentes, quando existam, as varas cíveis ou, no caso das comarcas piloto, os juízos de grande instância cível, caso existam; v) que se integrem na circunscrição territorial do tribunal do local da situação do imóvel; iv) cabendo a apreciação da causa, quando não se verificar qualquer das causas que excluía a intervenção do tribunal colectivo, ao juiz de círculo ou, no caso das comarcas piloto, ao juíz com afectação exclusiva ao julgamento em tribunal colectivo (nas comarcas do Alentejo Litoral e do Baixo Vouga) ou ao tribunal singular (comarca da Grande Lisboa-Noroeste).
Nos termos do novo regime de organização judiciária, serão competentes para a apreciação e julgamento da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos: i) os tribunais da jurisdição comum; ii) de 1.ª instância; iii) concretamente, as secções de competência genérica da instância local do tribunal de comarca; iv) e, dentro destas, as secções cíveis, caso existam; iv) que se integrem na circunscrição territorial do tribunal do local da situação do imóvel.
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57 Neste sentido, vide o citado Parecer da APA, nos termos do qual: «O artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, determina que o reconhecimento de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos […] decorre de acção judicial a intentar pelos particulares interessados junto de tribunal comum».
58 Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 12-01-2012, Processo n.º 08/11.
59 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-09-2010, Processo n.º 125/09.7TBIDN.C1.
60 Itálico nosso.
61 Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 07-07-2009, Processo n.º 011/09.
62 Sendo que este decreto-lei, destinado a regulamentar a LOSJ, não foi ainda sequer aprovado. Espera-se, no entanto, que o venha a ser a breve trecho, porquanto se prevê que essa aprovação terá lugar no prazo de 60 dias a contar da publicação da LOSJ – ainda que seja desconhecido o momento em que previsivelmente venha começar a produzir os seus efeitos.
63 Consabidamente, coexistem, no ordenamento jurídico português, duas Leis de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais: (i) a que foi aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, com sucessivas alterações, doravante, abreviadamente, designada por LOFTJ, regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 186-A/99, de 31 de Maio; (ii) e a que foi aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, com sucessivas alterações, doravante, abreviadamente, designada por Nova LOFTJ, complementada pelo Decreto-Lei n.º 25/2009, de 26 de Janeiro, que procede à organização das comarcas piloto, e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 28/2009, de 28 de Janeiro. A justificação para esta duplicidade de regimes está em que a Nova LOFTJ se aplica apenas a determinadas comarcas piloto, nas quais se encontra em vigor um diferente regime organizativo e processual, a título meramente experimental, continuando a aplicar-se a LOFTJ às demais comarcas.
64 No mesmo sentido, vide o artigo 17.º, n.º 1 da LOFTJ e o artigo 23.º, n.º 1, da Nova LOFTJ.
65 JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, Direito Processual Civil, 7.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2008, p. 135. Faça-se notar que é possível enquadrar-se, na competência em razão da matéria, a questão da competência entre as diferentes ordens jurisdicionais, que analisámos a propósito da “jurisdição” competente. Ainda assim, pelo menos em termos expositivos, parece-nos mais adequado analisar a competência em razão da matéria uma vez definida a ordem jurisdicional competente.
66 Na verdade, enquanto nas comarcas sujeitas à regulamentação da LOFTJ deve falar-se em tribunais de competência específica (artigo 18.º, n.º 2) nas comarcas que seguem o regime experimental da Nova LOFTJ deve falar-se em juízos de competência especializada (artigo 23.º).
67 Veja-se, a propósito, o disposto nos artigos 64.º e 78.º e ss. da LOFTJ e nos artigos 74.º e 111.º e ss. da Nova LOFTJ.
68 Podem existir juízos de instância civil mas não de todas as modalidades possíveis (grande, média e pequena instância cível), e, por isso, os que existem não serem competentes em razão da forma de processo, caso em que serão competentes os juízos de competência genérica.
69 JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, op. cit., p. 136. Veja-se, a propósito, os artigos 16.º e 19.º da LOFTJ, os artigos 17.º e 27.º da Nova LOFT e os artigos 67.º a 69.º do N-CPC.
70 Artigo 67.º, n.º 1, da LOFTJ e artigo 75.º, n.º 1, da Nova LOFTJ.
71 Artigo 106.º, alínea b), da LOFTJ e artigo 137.º, alínea b), da Nova LOFTJ.
72 A presente norma não se afigura de interpretação inteiramente líquida. Efectivamente, pela forma ampla como se encontra formulada parece transmitir a ideia de que vale como critério autónomo de competência jurisdicional, de tal forma que a partir da mesma é possível determinar a competência para o julgamento das acções a intentar depois da entrada em vigor do N-CPC e antes da entrada em vigor da LOSJ, resolvendo a questão mediante a atribuição de competência ao juiz de círculo. No entanto, essa interpretação não se nos afigura correcta, devendo antes esta norma ser interpretada como resolvendo apenas a questão da competência em razão do valor. Na verdade, esta norma não resolve a questão da competência em razão do território, nem da competência em razão da matéria, nem, naturalmente, da competência em razão da hierarquia. Quanto a estas continuam a valer as ainda vigentes regras de competência previstas na LOFTJ e na Nova LOFTJ. Em favor da consideração de que esta norma resolve apenas o problema da antiga competência em razão do valor, aponta o facto de este n.º 6 surgir, sistematicamente, depois de um preceito onde se refere a competência do tribunal colectivo (artigo 5.º, n.º 5), parecendo pretender complementá-lo; e aponta também o facto de este n.º 6 exluir a sua apliação nos casos em que não fosse admissível a intervenção do tribunal colectivo à luz do CPC anterior. Assim sendo, parece-nos que este artigo 5.º, n.º 6 da lei que aprovou o N-CPC, apenas pretende regular a competência outrora pertencente ao tribunal colectivo atribuindo-a ao juiz de círculo, enquanto não entrar em vigor o novo regime de organização judiciária. No mais, deverá a acção ser intentada no tribunal que resultar da aplicação das regras de competência da LOFTJ e da Nova LOFTJ ainda em vigor.
73 Neste sentido: «A referência feita à categoria de juiz de círculo, constante de qualquer diploma, entende-se como dizendo respeito ao juiz em afectação exclusiva ao julgamento por tribunal colectivo» – artigo 170.º, n.º 1, da Nova LOFTJ.
74 Veja-se, neste sentido, o antigo artigo 461.º do CPC e o artigo 548.º do N-CPC.
75 Artigo 64.º, n.º 2, e artigos 96.º e ss., da LOFTJ.
76 Artigo 74.º, n.º 4, e artigos 127.º e ss., da Nova LOFTJ.
77 Artigo 99.º da LOFTJ e artigo 129.º, n.º 1, da Nova LOFTJ.
78 JORGE AUGUSTO PAIS DE AMARAL, op. cit., p. 141.
79 Ainda que, caso a data limite de 1 de Janeiro de 2014 não seja modificada, tenhamos dúvidas de que a presente acção, tirando eventuais hipóteses admissíveis de acções para além do prazo, venha a ser intentada ao abrigo das novas regras de organização judiciária.
80 Artigo 65.º do N-CPC, itálico nosso.
81 Artigo 40.º, n.º 2 da LOSJ, itálico nosso.
82 Os tribunais de primeira instância passarão a estar divididos da seguinte forma: i) tribunais de comarca, que se desdobram em “instâncias centrais” e em “instâncias locais”; ii) e tribunais de competência territorial alargada. Os tribunais de competência territorial alargada são (exclusivamente) tribunais de competência especializada. Diferentemente, os tribunais de comarca podem ser de competência genérica ou de competência especializada, uma vez que, apesar de as “instâncias centrais” serem compostas (exclusivamente) por secções de competência especializada, as “instâncias locais” são compostas por secções de competência genérica e pelas chamadas secções de proximidade. Veja-se, neste sentido, o disposto nos artigos 79.º a 83.º da LOSJ. Assim sendo, do novo figurino traçado pela LOSJ, parece-nos que as únicas secções de competência genérica são as que integram as chamadas “instâncias locais” dos tribunais de comarca.
83 Artigos 111.º a 116.º da LOSJ.
84 Artigo 117.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ.
85 Artigo 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ.
86 Artigo 66.º do N-CPC, itálico nosso.
87 Artigo 41.º da LOSJ, itálico nosso.
88 Artigo 130.º, n.º 1, alínea a), da LOSJ.
89 Artigo 130.º, n.º 2, da LOSJ.
90 Artigo 79.º da LOSJ.
91 Artigo 80.º, n.º 1, da LOSJ. Note-se que este critério também resolve a questão da distribuição de competências entre os tribunais de comarca e os tribunais de competência territorial alargada, atribuindo primazia a estes. No entanto, apesar de os tribunais de competência territorial alargada também serem tribunais de 1.ª instância e a lei não se referir a eles neste preceito, parece-nos que a norma em causa também pode ser mobilizada para resolver a questão da competência em razão da hierarquia dos tribunais de competência territorial alargada, atribuindo-lhes competência residual em face dos tribunais superiores.
92 Artigo 70.º, n.º 1, do N-CPC. Veja-se, igualmente, o disposto no artigo 43.º, n.º 2, da LOSJ.