Determinado o valor da causa, encontramo-nos em condições de perceber qual o tipo de acção a propor e qual a forma de processo aplicável, em conformidade com as quais o autor deverá conformará a sua intervenção processual. Na verdade, a actuação do autor em sede processual será diferente consoante o tipo de acção a propor, por serem, desde logo, diferentes os factos a carrear e as provas a produzir consoante o tipo de acção a propor. A isto acresce a circunstância de que, com a apresentação da petição inicial, incumbe sobre o autor a obrigação de indicar a forma do processo – artigo 552.º, n.º 1, alínea c), do N-CPC, sendo usual, embora não obrigatório, o autor fazer também menção expressa ao tipo de acção a que se propõe dar entrada.
Assente que são competentes os tribunais comuns para o julgamento das acções de reconhecimento da propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens recursos hídricos, importa, primeiramente, perceber qual o tipo de acção que deverá ser proposta pelo autor. Assente também que será, logicamente, declarativa a natureza da acção a propor, aquilo que importa, verdadeiramente, destrinçar é se estaremos perante uma (i) acção declarativa de simples apreciação, (ii) uma acção declarativa de condenação (iii) ou uma acção declarativa constitutiva, conforme admite o artigo 10.º, n.º 2, do N-CPC. De imediato, parece-nos, facilmente, afastável a possibilidade de estarmos perante uma acção declarativa de condenação, porquanto não se pede na presente acção uma determinada prestação nem está ou pode estar em causa a violação de um direito (cfr. alínea b) do n.º 3). Assim sendo, a dúvida parece resumir-se à consideração da presente acção como acção declarativa de simples apreciação (alínea a) do n.º 3) ou como acção declarativa constitutiva (alínea c) do n.º 3).
A opção que se faça pela qualificação como um ou como outro tipo de acção não se afigura de tratamento doutrinal líquido e imediato. Na verdade, se o que estiver em causa na presente acção for a declaração da propriedade privada de determinada parcela de leito ou margem que se entende que já pertencia ao autor, mas que se pretende ver judicialmente declarada, parece que estaríamos perante uma acção de simples apreciação, concretamente, perante uma acção de simples apreciação positiva. Na verdade, nos termos do artigo 10.º, n.º 2, alínea a), do N-CPC, através da acção declarativa de simples apreciação, obtém-se a declaração da existência (apreciação positiva) ou inexistência (apreciação negativa) de um direito ou de um facto. Ora, se pensarmos que o que o particular faz é pedir que seja declarado titular de determinada parcela de terreno que, aparentemente, já lhe pertence, tudo indica que está em causa uma acção declarativa de simples apreciação.
No entanto, essa não parece ser a resposta para o presente caso. Basta pensar que um dos pressupostos para a procedência da acção de simples apreciação positiva é a existência de uma fundada situação de incerteza relativamente ao direito do autor; a admitir-se a existência de uma situação de incerteza esta teria sido originada pelo legislador de 1864 e de 1868, quando fez entrar no domínio público os recursos em causa, ou pelo legislador de 2005, quando passou a prever um prazo para o intentar da acção sob pena de não reconhecimento da propriedade privada. Ora, não nos parece que sejam esses os casos de dúvida sobre o direito a que o legislador se pretende reportar. Além disso, a acção declarativa de simples apreciação positiva pressupõe que o direito existe na esfera jurídica do autor, o que não parece compatível com a existência de uma presunção de dominialidade sobre os recursos em causa.
Ora, nesta acção, o que o autor pede é que lhe seja «reconhecido» o direito de propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens de determinados recursos hídricos, reconhecimento este que pressupõe que tal direito não se encontra ainda cristalizado na esfera jurídica do autor – e não se encontra porque recai sobre ele uma presunção de dominialidade. Neste sentido, o autor não pode pretender que seja simplesmente declarada a existência do seu direito de propriedade sobre as parcelas de terrenos, porquanto esta declaração pressupõe que esse direito já exista – pressuposição que não se pode aceitar em função da incontornável existência de uma presunção de dominialidade sobre estas parcelas.
O que o autor pode pretender é que seja reconhecido titular do direito, ou seja, investido na respectiva titularidade, afastando a presunção de dominialidade que sobre os terrenos recaía. E isso apenas se consegue através da acção declarativa constitutiva, a qual visa «autorizar uma mudança na ordem jurídica existente» – artigo 10.º, n.º 2, alínea c), do N-CPC. Assim sendo, nesta acção, parte-se da dominialidade presumida das parcelas de terreno visadas pelo autor, ou seja, da sua presuntiva pertença ao domínio público99, pedindo-se o reconhecimento da propriedade privada sobre as mesmas. Sendo que este reconhecimento apenas se consegue através de uma acção declarativa constitutiva100.
Questão de maior simplicidade prende-se com a determinação da forma do processo. Partindo do entendimento legal segundo o qual os processos especiais são aqueles que estão expressamente previstos na lei, sendo comuns todos os demais processos, para os quais a lei não preveja forma especial (artigo 546.º do N-CPC), facilmente se chega à natureza comum do processo no caso da acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos. Na verdade, não se encontrando prevista na lei uma forma processual especial para a obtenção do reconhecimento da propriedade privada sobre os recursos hídricos, somos, por defeito, levados a concluir pela legal adequação em recorrer ao processo comum de declaração.
Sendo comum a forma do processo, era concebível, em face do regime processual civil anterior, que este assumísse uma de três formas: processo ordinário, processo sumário ou processo sumaríssimo (artigo 461.º do antigo CPC). O âmbito de aplicabilidade de cada uma destas formas era o que resultava da própria lei, tendo o legislador determinado que sempre o valor da causa excedesse o valor da alçada da Relação, ao processo seria empregue a forma de processo ordinária (artigo 462.º do antigo CPC). Esta divisão tripartida do processo comum deixou de existir ao abrigo do novo regime, no qual se passou a prescrever que «[o] processo comum de declaração segue forma única» – artigo 548.º do N-CPC. Assim sendo, a acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos será tramitada sob a forma de processo comum de declaração, ao qual são aplicáveis as regras previstas nos artigos 552.º e seguintes do N-CPC.
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99 Isso mesmo parece resultar do entendimento a seguir transcrito: «a lei esclarece, na linha do que vinha sendo entendido pela doutrina e jurisprudência, que uma vez que estejam preenchidos os pressupostos que levem à caracterização de leitos ou margem como dominiais, os mesmos se presumem públicos, cabendo ao particular o ónus de infirmar essa presunção através de invocação e demonstração de direitos históricos que possam servir de base ao reconhecimento de direitos privados» – José Robin de Andrade, op. cit., p. 123.
100 Parece-nos que esta mesma ideia está implícita no entendimento segundo o qual os negócios incidentes sobre estes bens, enquanto não for reconhecida a respectiva propriedade privada, estão feridos de nulidade, bem como no entendimento segundo o qual estes bens, não tendo sido reconhecida a respectiva propriedade privada, não devem ser registados. Assim mesmo se sufragou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 06-04-2013, Processo n.º 6584/06.2TBVNG.P1.S, como resulta das passagens que, por mera comodidade, aqui se transcrevem: i) «tratando-se de coisa pública, e como anotámos no bosquejo histórico as praias entraram no domínio público pelo menos a partir de 1864, o referido terreno não pode ser objecto de direitos privados, devendo considerar-se fora do comércio (art. 202.º, nº 2 do Código Civil – doravante CC). Consequentemente, quer as partilhas, quer a compra, na parte relativa à adjudicação desse prédio (cfr. o disposto no art. 2123.º do CC), são negócios nulos porque de objecto legalmente impossível (art. 280.º nº 1 do CC)»; ii) «[m]esmo que se entenda que o vício produz apenas a inexactidão do registo, este deve ser cancelado […]. Será ainda de referir que o registo predial é um instituto de direito privado, estando excluídas do seu âmbito as coisas fora do comércio. Portanto, os bens do domínio público não são, em si, objecto do registo predial».