XI. (Des)conexão com o Procedimento Administrativo de Delimitação do Domínio Público Hídrico

Para finalizar, importa apenas colocar em evidência que o reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos apenas pode fazer-se por via judicial. De facto, diferentemente do que se passava com o regime anterior à actual Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos, prescrito no Decreto-Lei n.º 468/71, esse reconhecimento deveria ser feito por via administrativa e não se cominava um prazo para o efeito.

No que respeita a esta nova competência, diga-se que nos parece acertada a decisão da respectiva atribuição aos órgãos judiciais: «[d]evem ser os tribunais e não a Administração a resolver, de acordo com o Direito, os conflitos concretos de composição de interesses quanto à natureza pública ou privada das coisas. Assim, sempre que os particulares pretenderem ver reconhecida a propriedade privada sobre parcelas de leitos e margens públicos, caberá aos tribunais resolver as questões de direito que envolvam a qualificação da natureza dos bens»147.

Não obstante a mudança de paradigma preconizada pelo novo diploma, a verdade é que este prevê, no seu artigo 17.º, um procedimeno administrativo de delimitação dos leitos e margens dominiais, o qual encontra, depois, regulamentação no Decreto-Lei n.º 353/2007, de 26 de Outubro. Este procedimento, assim denominado, pode prestar-se a equívocos, levantando a questão de saber se configura um mecanismo complementar ou um mecanismo alternativo à acção de reconhecimento da propriedade privada sobre leitos e margens de recursos hídricos, da qual nos vimos ocupando. A resposta vai no sentido de considerarmos que o mecanismo administrativo em causa não é uma alternativa ao reconhecimento judicial da propriedade privada sobre bens que integram o domínio público hídrico, existindo antes uma competência exclusiva dos tribunais para a apreciação desta questão. O mecanismo administrativo de delimitação visa apenas delimitar, isto é, traçar os limites do domínio público hídrico, em conformidade com o que a lei determina. Desta forma, equanto a delimitação realizada por via administrativa parte da dominialidade dos terrenos148 e pretende mantê-la, definindo exactamente os seus limites, a acção de reconhecimento, parte da dominialidade dos terrenos, mas pretende afastá-la, de forma a ser reconhecida a propriedade privada sobre os mesmos.

As diferenças assinaladas permitem-nos concluir por uma desconexão entre a acção de reconhecimento da propriedade privada e o mecanismo administrativo de delimitação. Ainda assim, não podem deixar de se encontrar, entre ambos, alguns elementos de conexação ou aproximação. Na verdade, a delimitação realizada por via administrativa pode ser importante ou quiçá essencial para a decisão que venha a ser proferida no âmbito da acção de reconhecimento, na medida que pode não ser exacto onde começa e termina o terreno do autor ou onde começa e termina o domínio público hídrico. Parece, portanto, que, nessas hipóteses, poderá o autor requerer a delimitação do domínio público hídrico, juntando ao processo o resultado do processo de delimitação ou o próprio juiz solicitá-lo ao autor no caso de não ter sido apresentado. Pode, por outro lado, não ser essencial para a decisão, mas surgir a necessidade de, uma vez reconhecida a propriedade privada, delimitar os imóveis pertencentes ao domínio público que passaram a confinar com um terreno de natureza privada, após o respectivo reconhecimento judicial.

Para finalizar, alerte-se que não obstante o mecanismo de delimitação administrativo, os tribunais comuns continuam competentes para as chamadas “acções de demarcação”, competência esta que, portanto, não fica precludida com a previsão de uma acção administrativa de delimitação. Neste sentido, dispõe, precisamente, o artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 353/2007: a «delimitação administrativa realizada nos termos do presente decreto-lei não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da demarcação das propriedades ou da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas, nos termos da lei processual civil».

-

147 JOÃO MIRANDA, op. cit., pp. 171 e 172. Neste sentido, também, vide MANUEL ANTÓNIO DO CARMO BARGADO, op. cit., p. 11.

148 Assim mesmo, DIOGO FREITAS DO AMARAL, op. cit., p. 564: «[d]aí que se deva sustentar que na delimitação se contém implícita a classificação das coisas delimitadas, como bens dominiais».