Se projeto significar um diagrama ou padrão, os cientistas e os que veem o mundo de forma religiosa e espiritual podem dizer que sim, o Universo tem um projeto. Todos vemos isso com nossos olhos, e os cientistas procuram representar esse aspecto em suas equações, pois acreditamos que as leis da física são o diagrama do Universo. Criar ou simplesmente entender uma teoria matemática, depois observar que até os minúsculos átomos, nas maiores e mais distantes estrelas, agem de acordo com as leis da física presentes nessas equações, essa é uma das maiores maravilhas e alegrias de ser físico.
É um mistério por que a natureza segue leis. Por que há leis específicas observáveis também é. Mas está claro que as leis da natureza são suficientes para demonstrar como a vida surgiu sem necessidade de apelar para qualquer mão ou olho imortais encarregados de executar esse projeto. As leis ditam que, a partir da sopa cósmica primordial, as estrelas se condensariam e criariam carbono e outros elementos necessários à vida das coisas. Determinaram que algumas dessas estrelas explodiriam, formando novos sistemas solares com os detritos da explosão. E estabeleceram que, a partir da sopa química primordial, pelo menos em um planeta, o nosso, esses processos levariam naturalmente a objetos de lindas formas, desde as geodésicas até tigres e pessoas.
A questão que me aparta de Deepak não é se o Universo tem um projeto, mas se alguma coisa é responsável por ele e se esse projeto tem um propósito. Criacionistas e adeptos do “projeto inteligente” acreditam, como Deepak, que o emaranhado de criaturas vivas não poderia ser resultado de leis naturais. Essa perspectiva possui uma longa tradição. Em 1779, o filósofo britânico David Hume publicou um livro chamado Diálogos sobre a religião natural, no qual três personagens fictícios debatem o tema. Um deles, Philo, argumenta da seguinte maneira: “Junte diversos pedaços de aço, sem molde ou fôrma; eles nunca se organizarão de modo a compor um relógio.”
Em 1802, o teólogo William Paley fez sua famosa elaboração sobre o tema:
Ao atravessar uma charneca, suponha que tropecei numa pedra, e me indagaram como a pedra foi parar naquele lugar: eu possivelmente responderia, a despeito de tudo que sei em contrário, que a pedra sempre esteve lá; talvez nem fosse muito fácil demonstrar o absurdo dessa resposta. Mas se encontrasse um relógio no chão, e me perguntassem como ele foi parar ali, eu dificilmente pensaria na resposta dada anteriormente, que, até onde eu sabia, o relógio podia estar ali desde sempre. … A inferência, acreditamos, é inevitável: que o relógio deve ter tido um fabricante; que, em algum momento e lugar, deve ter existido um artífice, ou artífices, que o montou com o propósito na verdade cumprido pelo relógio; que o artífice compreendeu sua construção e estipulou seu uso.
O ponto crucial desses argumentos inacreditáveis é que coisas tão fabulosas como um relógio ou sua avó são realmente complicadas. Por isso, só poderiam ter surgido como produto da extraordinária perícia de algum ser. Esses são argumentos sinceros e atraentes, baseados na melhor ciência da época, que não estava à altura da tarefa de explicar como a vida veio a acontecer. Mas, parafraseando Arthur C. Clarke, qualquer consequência suficientemente avançada de uma lei científica que ainda não compreendemos é indistinguível da ação de um “poder superior”.
Muitas e muitas vezes na história pessoas atribuíram qualquer aspecto da natureza que não conseguiam explicar a uma origem sobrenatural. O personagem Philo, de Hume, estava certo ao dizer que as peças de aço reunidas não formariam um relógio, mas essa analogia parecia convincente só porque as pessoas da época de Hume, quase um século antes de Darwin ter publicado seu grande trabalho, não estavam cientes do princípio de seleção natural – que deixa claro como uma natureza sem rumo pode produzir objetos extraordinariamente complexos (como o DNA e, em última análise, como nós). Se um cientista do futuro mostrasse a um filósofo do século XVIII um avião, um aparelho de raios X ou um telefone celular, o filósofo também ficaria confuso e poderia muito bem conferir a esses dispositivos uma origem divina. Talvez então algum filósofo argumentasse:
• Junte diversas asas numa fuselagem de aço; elas nunca poderão se arranjar de forma que a fuselagem voe.
• Jogue a luz que quiser na cabeça de alguém; ela jamais permitirá que se enxergue a parte de dentro do cérebro dessa pessoa.
Ou:
• Grite o quanto quiser numa caixinha; você nunca será ouvido do outro lado do oceano.
Hoje a ciência explica como esses aparelhos podem ser construídos – do mesmo modo que justifica como processos naturais levam ao desenvolvimento da vida inteligente.
Há uma diferença entre a explicação científica da vida e a explicação desses aparatos. A ciência por trás do avião, do aparelho de raios X e do telefone celular não ameaça as crenças preferidas das pessoas. Ninguém acusa os cientistas de serem bitolados por acreditar na aeronáutica. Ninguém propõe que as imagens em raios X de ossos quebrados não vêm dos fótons. Ninguém diz que o eletromagnetismo é “apenas uma teoria”, nem sugere que cursos de telecomunicação também deveriam lidar com pombos-correios, só para se garantir. Mas a evolução se refere a como todos nós chegamos aqui – o que dificulta sua aceitação por parte de algumas pessoas. Os William Paley de hoje usam de bom grado os miraculosos prodígios científicos que produzem mensagens de texto oferecendo duas quesadillas pelo preço de uma para codificar algum tipo invisível de energia, transmitida pelo ar e reconstituída em seus aparelhos portáteis, mas questionam a integridade do método científico aplicado ao milagre biológico da vida. Sentem-se felizes ao recorrer às invenções e aos produtos criados por uma ciência que não entendem, porém hesitam em aceitar as “teorias” científicas que explicam as próprias origens da vida.
Os biólogos nos dizem que o responsável pelo projeto da vida não foi um ser, mas o ambiente. A suposição implícita no argumento de que coisas complexas devem ter sido criadas por uma inteligência superior é que seria mais simples chegar à criação da vida dessa forma que pela evolução. É uma crença compreensível, sobretudo para os que ignoram o papel da seleção natural na evolução, considerando-a apenas um tipo de enganação aleatória. Na verdade, contudo, graças ao incrível poder da seleção natural, a verdade pode ser o contrário. É por isso que a seleção natural (tecnicamente, “seleção artificial”) tornou-se a base de um novo método revolucionário de projetar moléculas, chamado “evolução dirigida”, no qual químicos e engenheiros químicos estabelecem ambientes que estimulam a evolução das moléculas em produtos comerciais úteis. A evolução dirigida tem se mostrado proveitosa, ao permitir a síntese de muitas proteínas que ninguém sabia como “projetar”, no sentido tradicional. Portanto, ao se admirar com as espantosas capacidades da vida, talvez o mais natural não fosse dizer que isso só poderia ser trabalho de um criador, mas que “só pode ser produto da evolução”.
A seleção natural explica como os organismos mudam de geração a geração; até aquilo que começou como um tipo de organismo simples, responsável por dores de estômago, pode evoluir, depois de bilhões de anos, no tipo de organismo complexo que o detecta. Darwin escreveu sobre os elefantes. Vamos supor que Noé tenha salvado um só casal de elefantes em sua grande arca, por volta de 3000 a.C., na época do dilúvio. Embora os elefantes estejam entre os animais que mais demoram para se reproduzir, em apenas cinco séculos eles teriam produzido 15 milhões de descendentes. Por volta de 2000 a.C., haveria trilhões, muitos milhares de elefantes para cada pessoa viva. Seríamos então esmagados por uma montanha de paquidermes. O que nos salvou? Ferimentos, doenças, inanição e morte. Esses fatores garantem que somente uma fração dos elefantes sobreviva para produzir crias. Essa não foi uma depuração imparcial. Pelo contrário, ao determinar quais deveriam viver e quais deveriam morrer, o ambiente agiu como um projetista inteligente. Os animais que não fossem resistentes, grandes, altos ou espertos o bastante para encontrar o alimento necessário, para se defender de predadores e sobreviver às doenças tendiam a morrer antes de passar adiante suas características ineficazes. Os mais bem-adaptados ao ambiente sobreviveram e criaram uma progênie capaz de competir com a geração seguinte, mais nova e aperfeiçoada. E assim por diante. No Capítulo 4, mencionei que, incluindo um processo como a seleção natural, em apenas 44 gerações a evolução poderia criar a frase de Shakespeare “Acho que parece uma doninha”, o que teria exigido de um gerador de letras aleatório mais tempo que a vida do sistema solar. Esse é o poder da evolução.
A evolução diz que o projeto dos seres vivos surge a partir de mutações aleatórias e de seleção na luta pela sobrevivência. Por conseguinte, quando se estuda um organismo vivo em seus detalhes, é impossível não se surpreender com o fato de que em geral seu “projeto” não é otimizado nem elegante. Em vez disso, é “bom o bastante”. Os organismos vivos podem ser maravilhosos do ponto de vista de suas funções, mas não são bonitos da perspectiva do projeto. Isso é muito diferente do esperável, caso o projeto fosse criado por um “projetista inteligente”, ou que pelo menos possuísse uma inteligência sobre-humana. A evolução cria projetos deselegantes porque, à medida que as espécies evoluem, a natureza não derruba tudo e reconstrói a partir do zero, porém adota a via mais vantajosa, alterando o que já estava ali. Às vezes acabamos com um dente do siso, um apêndice ou, como irei abordar no próximo capítulo, com o gene para uma cauda, características que antes serviam a uma função, mas não são mais necessárias. É provável que um projetista intencional tivesse feito outras escolhas, mas, como os organismos vivos não precisam ter um projeto perfeito, a evolução torna os organismos apenas bons o bastante para sobreviver.
A evolução explica a origem da vida inteligente em um nível, mas há mais a ser explicado. Embora os biólogos tenham dado grandes passos na compreensão do mecanismo da evolução, chegando até a escala molecular, a biologia é apenas a camada mais externa da cebola que representa a explicação científica. Ela descreve os organismos, seus órgãos, células e, como nas últimas décadas, até de que é feito o DNA, ou as proteínas e outras moléculas. Mas as descrições e leis da biologia têm como elemento fundamental objetos que também podem ser desmembrados em componentes mais elementares. No nível mais profundo – no núcleo da cebola – está a física. Ela estuda as forças e partículas elementares que, aos trilhões e trilhões, agem para criar as estruturas que os biólogos analisam. Nesse caso, alguém poderia também perguntar: será que o desenvolvimento da vida sem o auxílio de um projetista faz sentido no plano da física? É nesse nível que está a resposta ao desafio de Deepak: a partir das equações fundamentais que regem a matéria e a energia, sem nenhuma orientação ou um propósito, será que a vida pode ser espontaneamente criada? Se acreditarmos que não foi necessário nenhum projetista, precisamos fornecer uma resposta que funcione não só no plano onde se dão os processos biológicos, mas também naquele em que operam as leis da física.
Para averiguar, do ponto de vista físico, se o projeto na natureza exige um projetista, precisamos traduzir a questão para a linguagem da física. A Terra primitiva era uma turbulenta mistura de rocha, areia, ar e água, com vários componentes dissolvidos ou em suspensão. As coisas vivas, por outro lado, são feitas de moléculas e estruturas complexas. O ponto crucial da questão para a física é: será que essa ordem pode surgir sem um direcionamento? A ferramenta usada pelos físicos para analisar esse tipo de questão é um conceito chamado entropia. Grosso modo, entropia é a medida de desordem num sistema. Quanto mais desordenado, em geral, mais alta a entropia, que é inimiga da vida e de qualquer conceito de “projeto”.
Os físicos do século XIX perceberam que, com o tempo, as coisas tendem a se tornar mais desordenadas – ou seja, a entropia aumenta. De certa forma, isso é um reflexo da falta de projeto ou direcionamento das leis físicas. Para entender por que a entropia, ou a desordem, aumenta, vamos considerar um exemplo simples (e clássico): uma caixa de moléculas de gás, com uma divisória onde há um furo. Vamos supor que comecemos com mil moléculas do lado esquerdo e nenhuma do lado direito da caixa. Como as moléculas se agitam, algumas da esquerda vão passar para o outro lado pelo furo da divisória. Com o tempo, mais moléculas vão se deslocar da esquerda para a direita, mas às vezes algumas do lado direito vão passar para o esquerdo. Isso não acontece muito enquanto o lado direito estiver subpovoado. Mas chegará um momento em que haverá muitas moléculas no lado direito, o que reduzirá o êxodo. Depois de mais algum tempo, haverá mais ou menos o mesmo número de moléculas dos dois lados; o número, por unidade de tempo, que passa do lado esquerdo para o direito será aproximadamente o mesmo que o número se deslocando da direita para a esquerda. Esse é o exemplo de um estado de equilíbrio, como foi explicado no capítulo anterior.
Embora a palavra “equilíbrio” seja vaga e subjetiva, o mais correto talvez fosse afirmar que a configuração inicial, com toda a congregação de moléculas no lado esquerdo, parece mais ordenada que o estágio final, com as moléculas espalhadas pela caixa inteira. Acreditamos que o arranjo inicial é ordenado porque tem regularidade – não há moléculas do lado direito da caixa. O estágio final da caixa não tem nenhuma restrição em sua organização – as moléculas estão em toda parte, por isso essa etapa é desordenada. Enquanto estamos vivos, é como se o nosso corpo estivesse no arranjo inicial. Por exemplo, nossas células sanguíneas devem manter certo equilíbrio bioquímico interno, sem se misturar com o entorno, e nosso sangue deve ficar dentro dos vasos e permanecer puro, sem se mesclar aleatoriamente com outros fluidos corporais.
No cenário da caixa, na configuração inicial, com todas as moléculas no lado esquerdo, existe um sistema de baixa entropia, enquanto a configuração final, com todas as moléculas em toda parte, apresenta uma situação de alta entropia. Com o passar do tempo, e sem nenhuma consciência ou poder superior trabalhando para influenciar a distribuição das moléculas, o sistema atingiu uma divisão mais ou menos igualitária, a mais desordenada, ou o estado de máxima entropia (sendo que este é o significado técnico do termo “equilíbrio”). Essa é uma tendência de toda a natureza – caminhar em direção a estados mais altos de entropia. Como expliquei antes, a vida resiste a esse impulso. E, quando termina, o impulso em direção à entropia prossegue.
A lei que explica por que as coisas vivas precisam trabalhar para se manter vivas – ou seja, manter sua ordem – se chama segunda lei da termodinâmica. Ela determina que a entropia de um sistema fechado nunca diminui. Essa é a formulação científica do que diz o personagem de Hume: “Junte diversos pedaços de aço, sem molde ou fôrma; eles nunca se organizarão de modo a compor um relógio.” Mas a segunda lei também diz: “Deixe um relógio sem manutenção na natureza, e o tempo fará com que ele se torne apenas diversas peças de aço, sem molde ou fôrma.” Por causa da segunda lei, se deixarmos cair um ovo já quebrado, ele nunca chegará ao chão como aquele gracioso e estruturado objeto que chamamos de ovo intacto; mas, se deixarmos cair um ovo intacto, ele vai se esparramar numa desordem aparentemente aleatória. Do mesmo modo, se encontrarmos uma caixa contendo moléculas distribuídas de forma igual, nunca mais veremos todas essas moléculas se reunirem em um só dos lados; mas, se encontrarmos uma caixa com todas as moléculas de um só lado, com o tempo elas vão acabar se distribuindo de maneira uniforme pela caixa. Em vista dessa lei, o desafio que um físico precisa enfrentar é: como começamos com átomos distribuídos à vontade pelo Universo e descobrimos que, depois de algum tempo, esses átomos se condensaram no estado ordenado que chamamos de seres vivos? Em outras palavras: se a tendência natural do Universo é a desordem, de onde vem a ordem da vida?
O termo “sistema fechado” é a chave. A entropia não pode declinar se não houver uma interferência externa. No entanto, a entropia de um sistema pode diminuir se a entropia de outro sistema aumentar na mesma quantidade ou em maior proporção. A mão de Deus pode interferir e manter todas as moléculas em um lado da caixa, mas essa mão vai sofrer uma desordem cada vez maior. Impedimos que a desordem do nosso corpo aumente consumindo ordem disfarçada em coisas como brócolis e frango (mesmo decompostos, eles ainda mantêm certa ordem) e expelindo desordem sob a forma de excremento e calor. Por isso, também o nosso planeta deve respeitar o equilíbrio da entropia. Para que a vida se desenvolva em nossa biosfera a partir de materiais inorgânicos, a Terra precisa exportar entropia – isto é, importar ordem. Como? De onde vem essa ordem?
A cada dia a Terra recebe uma boa quantidade de energia do Sol, e também libera uma quantidade mais ou menos igual de radiação de volta para o espaço – esse equilíbrio de radiações impede que a temperatura do planeta continue a subir. Mas a qualidade da energia que a Terra irradia não é a mesma da que recebe. A superfície do Sol tem uma temperatura em média vinte vezes mais alta que a temperatura média da superfície da Terra, o que significa que o planeta deve irradiar vinte vezes mais fótons – as partículas de luz – para chegar à mesma quantidade de energia. Os físicos nos dizem que isso corresponde a vinte vezes a entropia, e, por conseguinte, dia após dia, a Terra irradia vinte vezes mais entropia do que recebe. Como calculou um físico da Caltech, Sean Carroll, a entropia líquida gerada pela Terra ao longo dos anos é muito mais que suficiente para acertar as contas pela redução de entropia experimentada pelo planeta na geração da vida.
Portanto, o dom da vida não é o dom de um deus, ou de uma “consciência universal”; é um presente do Sol.
É uma pena que a palavra “projeto” tenha se tornado um símbolo do fundamentalismo cristão, um eixo para a fé na história da criação do Gênesis. De repente a palavra se tornou radioativa em outros círculos. Os cientistas ficaram preocupados, como se a própria razão estivesse sob ataque. Céticos e ateus soltaram seus cachorros na luta, sempre prontos para refutar as superstições. Por essa razão, tornou-se impossível separar intensas emoções dos problemas que estavam em jogo. Apresentar um “projeto inteligente” como alternativa à teoria da evolução de Darwin nunca teve qualquer validade. Só gerou influência política. Governantes eleitos que queriam aplacar os eleitores religiosos tentaram contornar o forte protesto da comunidade científica.
Tendo isso em mente, é muito bom quando um respeitável cientista como Leonard concorda que o Universo apresenta realmente as características de um projeto. Mas a forma como ele chega lá é completamente materialista, significando que confia no acaso e nos ditames das leis da natureza. Existe um enorme vão entre “ditame” e “permissão”: não há dúvida de que as leis da natureza permitem que os seres humanos estejam aqui e inventem coisas como aviões e relógios, mas será que o princípio de Bernoulli, que permitiu aos irmãos Wright moldar uma asa de forma a sustentar um avião, foi uma imposição para eles? O estabelecimento do Universo primordial não pode ditar minhas ações bilhões de anos depois.
Nós aceitamos tacitamente a existência de meios para contornar as leis físicas, em geral usando uma contra a outra. Quando ergo o braço, eu desafio a gravidade evocando o eletromagnetismo, a força que controla os músculos. Posso afastar dois ímãs, utilizando uma lei contra ela mesma. Da forma como existe hoje, o Universo nos permite um enorme espaço para jogar com as leis da natureza. Claro que há limites. Eu não poderia erguer meu braço até Júpiter, pois meus músculos seriam muito fracos para vencer o forte campo gravitacional daquele planeta. Mas o materialismo não pode determinar como uma pessoa escolhe quais leis deve obedecer, refutar ou ponderar.
A liberdade está embutida na natureza. Quando carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio se encontram, seus elétrons livres ditam como eles vão se ligar; toda a vida baseia-se nessas ligações, e, como observamos, há bilhões de combinações possíveis. A natureza deixou muitos campos em aberto para variações; portanto, o exemplo simples que Leonard apresenta, das moléculas de gás flutuando do lado esquerdo para o direito de uma caixa, não é apenas reducionista, ela também não faz sentido. O mesmo vale para todo o argumento baseado na entropia. Ninguém nega que a entropia governa estados de troca de calor. Ninguém nega que as formas de vida são ilhas de entropia negativa. Mas o verdadeiro mistério é como chegaram até aqui. Todo o cosmo está seguindo em direção à morte do calor, como explica Leonard. Mas a morte do calor é apenas uma versão ampliada das moléculas flutuando numa caixa. Essa flutuação não explica como ilhas de entropia negativa, a exemplo de Sol, Terra e vida na Terra, podem durar bilhões de anos e se manter em crescimento cada vez mais autossustentável.
O reducionismo nunca passará pelo teste de saber como as leis naturais, sem uma mente, podem criar algo tão intrincado quanto um relógio. Leonard tenta escapar dos furos do reducionismo com esgrima verbal. Diz que um relógio é complexo, e é mesmo. Mas ele é mais que isso. O relógio foi projetado. Nas encostas dos Alpes suíços, um esquiador deixa uma trilha em linha reta na neve. Cem esquiadores descendo a mesma encosta deixam muito mais trilhas, formando uma rede emaranhada. As linhas serão mais complexas, mas estão longe de seguir um projeto. Um relógio suíço não é apenas uma pilha de processos simples, uns sobre os outros: ele tem um objetivo e um significado. Foi projetado para desempenhar uma tarefa específica. Pode não ser bonito, mas sem dúvida é preciso. E quando desliza para a imprecisão pode ser corrigido. Todos esses aspectos do projeto devem ter vindo de algum lugar. A espiritualidade argumenta que eles são aspectos da consciência, a projetista invisível nos bastidores do mundo visível.
Não fico chateado quando Leonard confunde meus argumentos com os dos criacionistas convictos do “projeto inteligente”. Ele não está dizendo que eu sou um deles. Mas sua confusão implica certa cumplicidade que devo refutar. O criacionismo e o projeto inteligente estão tão distantes das tradições de sabedoria do mundo quanto o materialismo. Ao escolher um lado no debate vigente entre fé religiosa e racionalidade científica, a espiritualidade está mais do lado da ciência, pois a sabedoria é o florescimento da razão, e não sua inimiga.
Acho lamentável quando um pronunciamento conservador da Casa Branca diz que não há nada de errado em ensinar uma alternativa à evolução para os estudantes, que as crianças vão se beneficiar com um debate aberto. O público parece concordar. No final, os tribunais federais precisaram afirmar a verdade mais óbvia: o projeto inteligente é um conceito religioso, não científico, e portanto não pode ser considerado uma “alternativa” à ciência nas salas de aula. Não há nada a debater.
Numa era de fé, a abundância de padrões na natureza foi usada para defender a existência de Deus. Leonard nos apresenta a analogia do relojoeiro, que ele associa ao tipo de mente científica primordial e primitiva. Não é bem verdade. O chamado argumento em favor da ideia de projeto foi respeitável nos meios intelectuais dos séculos XVII ou XVIII. Mas desapareceu com todas as outras alegações que tentavam manter a noção de um propósito no Universo (conhecida na filosofia como teleologia). Os cientistas de hoje oferecem o oposto, um argumento contra o projeto, embora reconheçam que ele pode aparecer temporariamente na rodopiante aleatoriedade que governa todas as coisas.
O lindo projeto encontrado na natureza – em comparação à mera complexidade das ilhas de calor – não pode ser descartado. A ciência é obrigada a explicar como esse projeto surgiu num Universo acidental. De sua parte, a espiritualidade está obrigada a explicar o contrário, como a aleatoriedade surgiu num Universo que tem um projeto. Mas, se a criação está imbuída de consciência, não existe uma guerra entre o acaso e o propósito, entre a aleatoriedade e o projeto. Podemos ter os dois ao mesmo tempo.
Examine sua própria vida. Você é um ser consciente. Às vezes pode andar a esmo apreciando a paisagem; outras vezes você sabe para onde está indo. Uma hora você rabisca, depois você desenha. Vagar sem rumo não nega uma destinação, assim como um rabisco num bloco de rascunho não nega o estudo de belas-artes. O mesmo se aplica a uma escala cósmica. Num plano mais profundo, o acaso do aleatório pode beneficiar um projeto. Na esfera humana, resolver um problema, abrindo-o para novas possibilidades costuma ser a melhor maneira de chegar a uma solução. A natureza parece concordar. O Universo combina matéria e energia, aparentemente ao acaso, só para chegar a súbitos saltos de forma e padrão. Antes do DNA havia uma sopa de aminoácidos. A sopa borbulhou por aí sem um “projeto” visível, mas dela surgiu um projeto incrivelmente complexo. Isso é obra da criatividade, não de uma guerra.
O aleatório pode facilmente viver na vizinhança do desígnio, do projeto, do significado. Tudo existe a um só tempo na natureza. Glóbulos vermelhos fluem aleatoriamente na minha corrente sanguínea, mas eu não estou escrevendo essas palavras de forma aleatória. Forçar uma escolha do tipo e/ou – como acontece quando a ciência diz “escolha o materialismo” e a religião diz “escolha Deus” – impõe um obstáculo no caminho da verdade. Não adianta sequer argumentar antes que todos estejam dispostos a avaliar as questões mais profundas, com a mente aberta.