Nova Iorque
10 de março de 2014
A rapariga acorda na cama de outra pessoa.
Está ali deitada, perfeitamente imóvel, e tenta reter o tempo como uma respiração no peito; como se pudesse impedir que o relógio avançasse, evitar que o rapaz ao seu lado acordasse, manter viva a memória da noite apenas pela força de vontade.
Como é evidente, sabe que não é possível. Sabe que ele esquecerá. Esquecem sempre.
Não é culpa dele — nunca é culpa deles.
O rapaz ainda está a dormir, e ela vê os seus ombros subirem e descerem lentamente, o ponto em que o cabelo escuro se encaracola contra a nuca, a cicatriz ao longo das costelas. Pormenores há muito memorizados.
O seu nome é Toby.
Na noite anterior, disse-lhe que o seu era Jess. Mentiu, mas apenas porque não consegue dizer o seu verdadeiro nome — um dos pormenores perversos enredados na relva, como urtigas. Farpas escondidas prontas a picar. O que é uma pessoa senão as marcas que deixa para trás? Aprendeu a saltar por entre as ervas pungentes, mas há alguns cortes que não se podem evitar — uma memória, uma fotografia, um nome.
No último mês, foi Claire, Zoe, Michelle — mas, há duas noites, quando era Elle e ficaram juntos até ao fecho de um café noturno, depois de uma das suas atuações, Toby disse que estava apaixonado por uma rapariga chamada Jess — simplesmente ainda não a conhecera.
Por isso agora é Jess.
Toby continua a mexer-se, e ela sente a velha dor familiar no peito enquanto o rapaz se alonga e vira na direção dela — mas não acorda, ainda não. Agora tem o rosto a centímetros do dela, os lábios entreabertos no sono, caracóis pretos sobre os olhos, pestanas escuras contra um rosto belo.
Uma vez, a escuridão provocou a rapariga enquanto caminhavam ao longo do Sena, disse-lhe que ela tinha um «tipo», insinuando que a maior parte dos homens que escolhia — e até algumas das mulheres — se pareciam bastante com ele.
O mesmo cabelo escuro, os mesmos olhos argutos, os mesmos traços marcados.
Mas não era justo.
Afinal, a escuridão só tinha esse aspeto por causa dela. Fora ela que lhe dera essa forma, que escolhera o que pensar dele, o que ver.
Não te lembras, disse-lhe ela então, quando não passavas de sombra e fumo?
Querida, disse ele no seu jeito suave e envolvente, eu era a própria noite.
Agora é manhã, noutra cidade, noutro país. A luz intensa do sol atravessa as cortinas, e Toby volta a mexer-se, erguendo-se da superfície do sono. E a rapariga que é — era — Jess volta a reter a respiração enquanto tenta imaginar uma versão desse dia em que ele acorde e a veja e se lembre.
Em que sorria e lhe afague o rosto e diga: «Bom dia.»
Mas não vai acontecer assim, e ela não quer ver a familiar expressão vaga, não quer assistir enquanto o rapaz tenta preencher os espaços onde as memórias dela deveriam estar, vê-lo manter a compostura numa displicência treinada. A rapariga assistiu demasiadas vezes a essa representação, conhece os movimentos de cor, por isso, em vez disso, desliza para fora da cama e caminha descalça até à sala.
Vê o seu reflexo no espelho da entrada e repara naquilo em que toda a gente repara: sete sardas, espalhadas como uma série de estrelas, pelo nariz e pelas faces.
A sua própria constelação privada.
Inclina-se para frente e embacia o espelho com a respiração. Passa o dedo pela nuvem tentando escrever o seu nome. A... d...
Mas não vai mais longe, pois as letras desaparecem. Não tem a ver com a superfície em que escreveu — por muito que tente dizer o seu nome, por muito que tente contar a sua história. E tentou, a lápis, a tinta negra, a tinta colorida, com sangue.
Adeline.
Addie.
LaRue.
Não vale a pena.
As letras desfazem-se, esbatem-se. Os sons morrem-lhe na garganta.
Os dedos escorregam do espelho, e ela vira-se, estudando a sala.
Toby é músico, e os vestígios da sua arte encontram-se por todo o lado.
Nos instrumentos encostados às paredes. Nas linhas e notas dispersas escrevinhadas em mesas — compassos de melodias meio recordadas, misturados com listas de supermercado e de tarefas semanais. Mas, aqui e ali, outra mão — as flores que começou a deixar no parapeito da cozinha, apesar de não se conseguir lembrar de quando esse hábito começou. O livro sobre Rilke que não se lembra de ter comprado. As coisas que perduram, mesmo quando o mesmo não acontece com as memórias.
Toby demora a levantar-se da cama, por isso Addie prepara um chá para si — ele não bebe, mas está sempre ali, no seu armário, uma lata de Ceilão solto e uma caixa de saquetas de seda. Uma relíquia de uma viagem noturna à mercearia, um rapaz e uma rapariga a deambularem por entre os corredores, de mãos dadas, porque não conseguem dormir. Porque ela não queria permitir que a noite chegasse ao fim. Não estava pronta para o desapego.
Levanta a caneca, inala o aroma enquanto as memórias deslizam, indo ao seu encontro. Um parque em Londres. Um pátio em Praga. Uma sala de chá em Edimburgo.
O passado desenhado como uma folha de seda sobre o presente.
Está uma manhã fria em Nova Iorque, as janelas embaciam-se com o gelo, por isso puxa um cobertor das costas do divã e enrola os ombros nele. Um estojo de guitarra ocupa uma extremidade do sofá, e o gato de Toby encontra-se na outra, por isso empoleira-se antes no banco do piano.
O gato, que também se chama Toby («Para poder falar comigo próprio sem que seja esquisito...», explicou), olha para ela enquanto sopra o chá.
Pergunta-se se o gato se lembrará.
As mãos agora estão mais quentes. Pousa a caneca em cima do piano e abre a tampa revelando as teclas, alongando os dedos e começando a tocar o mais baixo possível. No quarto, consegue ouvir o Toby-humano mexer-se, e todos os centímetros do seu corpo, do esqueleto até à pele, se contraem de terror.
Esta é a parte mais difícil.
Addie podia ter-se ido embora — devia ter-se ido embora —, ter-se esgueirado quando ele ainda estava a dormir, quando a manhã ainda era uma extensão da sua noite, um momento preso no âmbar. Mas agora é demasiado tarde, por isso fecha os olhos e continua a tocar, mantém a cabeça baixa quando ouve os seus passos por detrás das notas, continua a mover os dedos quando o sente à porta. Ficará ali, a absorver a cena, a tentar reconstituir a cronologia da noite anterior, que se pode ter extraviado, em que pode ter conhecido uma rapariga e depois tê-la levado para casa, caso tenha bebido demais, porque não se lembra de nada daquilo.
Mas sabe que Toby não a irá interromper enquanto estiver a tocar, por isso, saboreia a música por mais alguns segundos antes de se obrigar a parar, olhar para cima, fingir que não repara na confusão no seu rosto.
— Bom dia — diz, com uma voz alegre e uma pronúncia que outrora foi de francês profundo, mas está agora tão esbatida que mal a deteta.
— Ah, bom dia — diz ele, passando uma mão pelos caracóis pretos e soltos e, em sua defesa, Toby tem o mesmo aspeto de sempre — um pouco desconcertado e surpreendido por ver uma rapariga bonita sentada na sua sala, envergando apenas a roupa interior e a T-shirt da sua banda preferida sob uma manta.
— Jess — diz ela, dizendo o nome de que ele não se consegue lembrar, porque não está ali. — Não faz mal — diz ela —, se não te lembrares.
Toby cora e afasta o Toby-gato do caminho enquanto se afunda entre as almofadas do sofá.
— Desculpa... não é meu costume. Não sou esse tipo de rapaz.
Ela sorri.
— E eu não sou esse tipo de rapariga.
Ele sorri também, então, numa linha de luz que desfaz as sombras no seu rosto. Acena com a cabeça para o piano, e ela quer que ele diga alguma coisa, como «Não sabia que tocavas», mas, em vez disso, Toby diz:
— Tocas muito bem — e ela pensa: «É espantoso o que se pode aprender quando se tem tempo.»
— Obrigada — diz, passando a ponta dos dedos pelo teclado.
Agora Toby está irrequieto, fugindo para a cozinha.
— Café? — pergunta, remexendo por entre os armários.
— Encontrei chá.
Começa a tocar uma canção diferente. Nada de complicado, apenas uma série de notas. O início de algo. Encontra a melodia, agarra-a, deixa-a escapar-se por entre os dedos enquanto Toby volta a entrar na sala, com uma chávena fumegante nas mãos.
— O que era isso? — pergunta, com os olhos a brilhar à maneira dos artistas — escritores, pintores, músicos, todos os que têm predisposição para momentos de inspiração. — Parecia-me familiar...
Um encolher de ombros.
— Tocaste-a para mim na noite passada.
Não é mentira, não propriamente. Tocou-a de facto para ela. Depois de ela lha ter mostrado.
— Toquei? — diz ele, franzindo o sobrolho. Já está a pôr o café de lado, à procura de um lápis e de um bloco na mesa mais próxima. — Meu Deus... devia estar com os copos.
Abana a cabeça enquanto o diz; Toby nunca se enquadrou no tipo dos criadores de música que preferem trabalhar sob o efeito de qualquer coisa.
— Lembras-te de mais? — pergunta, virando as folhas do bloco. Ela recomeça a tocar, conduzindo-o por entre as notas. Ele não sabe, mas anda a trabalhar nesta composição há semanas. Bem, andam.
Juntos.
Ela sorri um pouco enquanto continua a tocar. É esta a relva por entre as urtigas. Um sítio seguro onde caminhar. Não pode deixar a sua marca, mas, se tiver cuidado, pode oferecer a marca a outra pessoa. Nada de concreto, claro, mas a inspiração raramente o é.
Agora Toby pegou na guitarra, equilibrou-a num dos joelhos e acompanha-a, murmurando para si mesmo: isto é bom, isto é diferente, isto é alguma coisa. Ela para de tocar, levanta-se.
— Tenho de ir.
A melodia desfaz-se nas cordas quando Toby olha para cima.
— O quê? Mas nem sequer te conheço.
— Exatamente — diz ela, dirigindo-se ao quarto para ir buscar a roupa.
— Mas quero conhecer-te — diz Toby, pousando a guitarra e seguindo-a pelo apartamento, e este é o momento em que nada parece justo, a única vez em que sente uma vaga de frustração ameaçar abater-se sobre ela. Porque passou semanas a conhecê-lo. E ele passou horas a esquecer-se dela. — Espera.
Detesta esta parte. Não devia ter ficado. Devia ter desaparecido da vista bem como do coração, mas há sempre a esperança incómoda de que, dessa vez, será diferente, de que, dessa vez, eles se irão lembrar.
Eu lembro-me, diz-lhe a escuridão ao ouvido.
Abana a cabeça, obrigando a voz a calar-se.
— Qual é a pressa? — pergunta Toby. — Deixa-me ao menos fazer-te o pequeno-almoço.
Mas está demasiado cansada para entrar tão cedo no jogo e, por isso, em vez disso, mente, diz que tem de fazer qualquer coisa e não se permite parar de andar, porque, se o fizer, sabe que não terá forças para recomeçar, e o ciclo continuará, com a relação a principiar de manhã e não à noite. Mas não será mais fácil quando chegar ao fim e, se tiver de recomeçar, é preferível que seja um encontro num bar do que o rescaldo da paixoneta de uma noite que não se recorda.
Seja como for, dentro de um instante, não terá importância.
— Jess, espera — diz Toby, agarrando-lhe a mão. Debate-se à procura das palavras certas e depois desiste, recomeça. — Vou dar um concerto hoje à noite, no Alloway. Podias vir. É no...
Claro que ela sabe onde é. Foi onde se encontraram da primeira vez e da quinta e da nona. E, quando acede em aparecer, o seu sorriso é deslumbrante. É sempre.
— Prometes? — pergunta.
— Prometo.
— Encontramo-nos lá — diz ele, com as palavras cheias de esperança enquanto ela vira costas e sai porta fora. Olha para trás e diz:
— Entretanto, não te esqueças de mim.
Um velho hábito. Uma superstição. Um pedido.
Toby abana a cabeça.
— Como poderia esquecer-te?
Ela sorri, como se fosse apenas uma piada.
Mas Addie sabe, enquanto se obriga a descer as escadas, que já está a acontecer — sabe que, no momento em que fechar a porta, terá desaparecido.