Nova Iorque

29 de julho de 2014

cap6

Agora tudo faz sentido.

Ele faz sentido.

Este rapaz, que nunca consegue estar quieto, que nunca desperdiça tempo, que nunca adia nada. Este rapaz, que escreve todas as palavras que ela diz, para que ela fique com algo, quando ele desaparecer, que não quer perder um único dia, porque não tem muito mais.

Este rapaz por quem ela se está a apaixonar.

Este rapaz, que em breve desparecerá.

— Como? — pergunta ela. — Como pudeste abdicar de tanto por tão pouco?

Henry olha para ela, de rosto vazio.

— Naquele momento — diz —, tê-la-ia dado por menos. Um ano. Outrora, parecia tanto tempo.

Agora não é nada.

Um ano, e está quase a chegar ao fim, e ela só consegue ver a curva do sorriso de Luc, a cor triunfante nos seus olhos. Não foram inteligentes, não tiveram sorte, não passaram despercebidos. Ele sabia, claro que sabia, e deixou que as coisas chegassem àquele ponto.

Deixou-a cair.

— Addie, por favor — diz Henry, mas já se levantou, já está a andar pelo bar.

Tenta agarra-lhe na mão, mas é demasiado tarde.

Addie está fora do seu alcance.

Já desapareceu.

Trezentos anos.

Sobreviveu trezentos anos, e, nesses séculos, houve muitas vezes em que o solo cedeu, momentos em que não se conseguiu equilibrar ou controlar a respiração. Em que o mundo a deixou sentir-se perdida, destroçada, impotente.

À porta da casa dos pais, na noite depois do pacto.

Nas docas de Paris, onde aprendeu o valor de um corpo.

Remy, a deixar-lhe as moedas na palma da mão.

Encharcada, junto ao cepo destruído do carvalho de Estele.

Mas, naquele momento, Addie não está perdida ou destroçada ou desesperada.

Está furiosa.

Enfia a mão no bolso, e claro que o anel está lá. Está sempre lá. Grãos de areia cobrem a superfície suave de madeira quando Addie passa o anel por cima do nó do dedo.

Passaram-se trinta anos desde que o usou pela última vez, mas o anel desliza sem esforço.

Sente o vento, como uma respiração fresca atrás das costas, e vira-se, esperando encontrar Luc. Mas a rua está vazia — pelo menos vazia de sombras e de promessas e de deuses.

Roda o anel em volta do dedo.

Nada.

— Mostra-te! — grita pelo quarteirão.

As cabeças viram-se, mas Addie não quer saber. Em breve irão esquecer, e, mesmo que não fosse um fantasma, está em Nova Iorque, um lugar imune às ações de um estranho na rua.

— Raios — pragueja. Arranca o anel do dedo e atira-o para a rua, ouve-o saltitar e rolar. E depois o som esmorece, subitamente. O candeeiro de rua mais próximo apaga-se, e uma voz surge das trevas.

— Passados todos estes anos, continuas a ter mau feitio.

Algo lhe aflora o pescoço, e depois um fio de prata, fino como brilho de orvalho, o mesmo que que se partiu há tanto tempo, brilha-lhe no decote.

Os dedos de Luc percorrem-lhe a pele.

— Tiveste saudades minhas?

Vira-se para o rechaçar, mas as mãos atravessam-no, e depois ele aparece atrás dela. Quando tenta pela segunda vez, Luc é sólido e duro como uma pedra.

— Desfá-lo — explode ela, batendo-lhe no peito, mas o punho mal aflora a parte da frente da camisa antes de Luc lhe agarrar no pulso.

— Quem és tu para me dares ordens, Adeline?

Addie tenta libertar-se, mas a mão dele é de pedra.

— Sabes — diz ele, quase de forma descontraída —, houve um tempo em que te prostraste, em que rastejaste pelo solo encharcado da floresta e imploraste pela minha intercessão.

— Queres que suplique? Muito bem, então. Suplico-te. Por favor. Desfá-lo.

Ele avança, obrigando-a a recuar.

— O Henry fez este pacto.

— Ele não sabia...

— Eles sabem sempre — diz Luc. — Simplesmente não querem pagar o preço. A alma é a coisa mais fácil de trocar. É no tempo que ninguém pensa.

— Luc, por favor.

Os seus olhos verdes cintilam, não de maldade ou de triunfo, mas de poder. A sombra de alguém que sabe que controla a situação.

— Porque o deveria fazer? — pergunta. — Porque o haveria de fazer?

Addie tem uma série de perguntas preparadas, mas debate-se, tentando encontrar as palavras certas, as palavras que possam apaziguar as trevas. Contudo, antes de as conseguir descobrir, Luc estende o braço e levanta-lhe o queixo, e ela espera que debite as suas deixas velhas e batidas, que faça troça dela ou que lhe peça a sua alma, mas não faz nada disso.

— Passa a noite comigo — diz ele. — Amanhã. Vamos celebrar este aniversário como deve ser. Concede-me isso, e pensarei em libertar o Sr. Strauss das suas obrigações. — A boca contorce-se. — Ou seja, se me conseguires convencer.

Claro que é mentira.

É uma cilada, mas Addie não tem outra hipótese.

— Combinado — diz ela, e a escuridão sorri e, de seguida, dissolve-se à volta dela.

Fica sozinha no passeio, até o coração estabilizar, e depois regressa a pé até ao Merchant.

Mas Henry desapareceu.

Encontra-o em casa, sentado às escuras.

Encontra-se na beira da cama, com os cobertores ainda enrodilhados da sesta da tarde. Olha em frente, para longe, como naquela noite de verão, no terraço, depois do fogo de artifício.

E Addie percebe que o vai perder, tal como perdeu toda a gente.

E não sabe se é capaz, outra vez, desta vez.

Não perdeu já o suficiente?

— Desculpa — sussurra ele quando Addie se aproxima. — Desculpa — diz, enquanto passa os dedos pelo cabelo.

— Porque não me disseste? — responde ela.

Henry fica calado por um instante e depois diz:

— Como se vai até ao fim do mundo? — Olha para cima, para ela. — Queria guardar cada passo.

Um suspiro baixo e tremente.

— O meu tio teve cancro, quando eu ainda andava na faculdade. Era terminal. Os médicos concederam-se alguns meses, e ele disse a toda a gente. E sabes o que fizeram? Não conseguiam enfrentá-lo. Estavam tão enredados na sua dor que fizeram o luto ainda antes de estar morto. Não há maneira de des-saber o facto de alguém estar a morrer. É algo que consome toda a normalidade e deixa algo errado e podre no seu lugar. Desculpa, Addie. Não queria que olhasses para mim dessa maneira.

Ela mete-se na cama e puxa-o para baixo, para o seu lado.

— Desculpa — diz ele, em voz baixa e repetitiva, como uma prece. Ficam ali deitados, frente a frente, com os dedos entrelaçados.

— Desculpa.

E Addie obriga-se a perguntar.

— Quanto tempo te falta?

Henry engole em seco.

— Um mês.

As palavras aterram como um golpe numa pele suave.

— Um pouco mais — diz. — Trinta e seis dias.

— Já passa da meia-noite — suspira Addie.

Henry expira.

— Então trinta e cinco.

Addie abraça-o com mais força, e ele corresponde a esse aperto, e ficam nos braços um do outro até doer, como se a qualquer minuto alguém pudesse tentar afastá-los, como se o outro pudesse soltar-se e desaparecer.