França Ocupada
23 de novembro de 1944
As costas batem contra a parede de pedra dura.
A cela fecha-se rangendo, e soldados alemães riem-se atrás das grades quando Addie se deixa cair no chão, a tossir sangue. Uma mão-cheia de homens está amontoada num canto da cela, acocorados, a murmurar. Pelo menos não parecem importar-se com o facto de ela ser mulher. Os alemães repararam. Embora a tenham apanhada vestida com umas calças e um casaco inclassificáveis, embora tenha apanhado o cabelo para trás, percebeu pela forma mal-intencionada e lúbrica como a olharam que tinham percebido qual era o seu sexo. Disse-lhes numa série de línguas diferentes o que faria se se aproximassem, e eles riram e satisfizeram-se em espancá-la até perder os sentidos.
Levanta-te, ordena ao corpo esgotado.
Levanta-te, ordena aos ossos cansados.
Addie obriga-se a pôr-se de pé, vacila até à parte da frente da cela.
Agarra o aço gelado com as mãos, puxa até os músculos gritarem, até as grades gemerem, mas não se mexem. Força os ferrolhos até os dedos sangrarem e um soldado bater com a mão contra as grades e ameaçar usar o seu corpo como acendalha.
É mesmo tola.
É tola por ter pensado que poderia resultar. Por pensar que ser esquecida era o mesmo que ser invisível, que isso a iria proteger ali.
Devia ter ficado em Boston, onde a pior coisa com que tinha de se preocupar era com o racionamento da guerra e com o frio do inverno. Nunca deveria ter regressado. Foi sentido de honra tolo e orgulho teimoso. Foi por causa da última guerra e do facto de ter fugido, atravessado o Atlântico, em vez de enfrentar o perigo em casa. Porque, de alguma forma, apesar de tudo, é isso que França será sempre.
Casa.
E, algures pelo caminho, decidiu que podia ajudar. Não de uma forma oficial, claro, mas os segredos não têm dono. Podiam ser tocados e trocados, por qualquer pessoa, por um fantasma, até.
A única coisa que tinha de fazer era evitar ser apanhada.
Três anos a transportar segredos pela França Ocupada.
Três anos, para ir acabar ali.
Numa prisão nos arredores de Orléans.
E não importa que se esqueçam do seu rosto. Não importa, porque estes soldados não querem saber de lembrar-se. Aqui, todos os rostos são estranhos e estrangeiros e anónimos, e, se não sair dali, irá desaparecer.
Addie deixa-se escorregar contra a parede gelada e puxa o casaco esfarrapado para junto do corpo. Fecha os olhos. Não reza, propriamente, mas pensa nele. Deseja até, talvez, que fosse verão — uma noite de julho em que ele a pudesse encontrar sozinha.
Os soldados revistaram-na, brutalmente, levando tudo o que pudesse usar para os magoar ou para fugir. Também levaram o anel, partiram o fio de cabedal onde estava preso, arremessaram o aro de madeira para longe.
E, no entanto, quando vasculha por entre a roupa andrajosa, continua ali, à espera, com uma moeda na dobra da algibeira. Sente-se grata, então, por aparentemente não o conseguir perder. Grata, enquanto o aproxima do dedo.
Por um instante, vacila — tem o anel há vinte e nove anos, com tudo o que isso implica.
Vinte e nove anos, e nunca o usou.
Mas, agora, até a satisfação enfatuada de Luc seria melhor do que a eternidade numa cela de prisão ou pior.
Se ele aparecer.
As palavras como um sussurro no fundo da mente. Um medo que não consegue afugentar. Chicago a subir-lhe como bílis na garganta.
A raiva no seu próprio peito. O veneno nos olhos dele.
Preferia ser um fantasma.
Enganara-se.
Não quer ser este tipo de fantasma.
E, por isso, pela primeira vez em séculos, Addie reza.
Faz deslizar o anel de madeira pelo dedo e sustém a respiração, espera sentir algo, um estremecimento mágico, uma rajada de vento.
Mas não acontece nada.
Nada, e pergunta-se se, depois de todo aquele tempo, foi apenas mais um truque, uma forma de lhe dar esperança, para depois apenas a desiludir, deixando-a despedaçada. Já tem um impropério debaixo da língua quando sente a brisa — não cortante, mas quente, atravessando a cela da prisão, carregando consigo o aroma longínquo do verão.
Os homens da cela param de falar.
Aninham-se no seu canto, despertos, mas inertes, fitando o espaço, como que absortos numa ideia. No exterior da cela, as botas dos soldados param de martelar o chão de pedra, e as vozes alemães caem como uma pedra no fundo de um poço.
O mundo fica estranha e impossivelmente silencioso.
Até que o único som que se ouve é o tamborilar suave, quase rítmico de dedos a percorrerem as grades.
Não o vê desde Chicago.
— Oh, Adeline — diz ele, com a mão a deslizar pelas grades geladas. — O estado em que te encontras.
Ela consegue soltar uma pequena gargalhada dolorida.
— A imortalidade desenvolve uma grande tolerância ao risco.
— Há coisas piores do que a morte — diz ele, como se ela ainda não soubesse.
Olha em volta, para a prisão, com a testa franzida de desprezo.
— Guerras — murmura.
— Diz-me que não os estás a ajudar.
Luc quase parece ofendido.
— Até eu tenho limites.
— Uma vez vangloriaste-te por causa dos sucessos de Napoleão. Ele encolhe os ombros.
— Há a ambição e há o mal. E, por muito que gostasse de fazer uma lista das minhas proezas passadas, é a tua vida que importa neste momento. — Encosta os cotovelos nas grades. — Como tencionas sair desta situação?
Addie sabe o que ele quer que ela faça. Quer que ela implore. Como se ter posto o anel não fosse suficiente. Como se esta mão, este jogo, não estivesse já ganha. O estômago aperta-se, e as costelas magoadas doem-lhe, e tem tanta sede que podia gritar só para ter alguma coisa para beber. Mas Addie não se consegue obrigar a vergar.
— Tu conheces-me — diz, com um sorriso cansado. — Descubro sempre uma maneira.
Luc suspira.
— Como queiras — diz, virando costas, e é demasiado; não consegue suportar a ideia de que a vai deixar ali, sozinha.
— Espera — chama, desesperadamente, aproximando-se das grades, para descobrir que a fechadura está aberta, com a porta da cela a abrir-se sob o seu peso.
Luc olha por cima do ombro e quase sorri, virando-se para ela apenas o suficiente para lhe oferecer a mão.
Avança aos tropeções, para fora da cela e para a liberdade, para ele. E, por um instante, o abraço é apenas isso, e ele é sólido e quente, dobrado sobre ela, no escuro, e seria fácil acreditar que é real, que é humano, que é a sua casa.
Mas depois o mundo abre-se de par em par, e as sombras engolem-nos inteiros.
A prisão dá lugar ao nada, à escuridão, às trevas mais profundas. E, quando se desfaz, Addie está de volta a Boston, com o sol a começar a pôr-se, e podia beijar o chão de puro alívio. Addie puxa o casaco para junto do corpo e afunda-se no passeio, com as pernas a tremer, o anel de madeira ainda enfiado no dedo. Chamou, e ele veio. Pediu, e ele respondeu. E sabe que terá de lho pagar, mas agora não quer saber.
Não quer estar sozinha.
Mas, quando Addie olha para cima para lhe agradecer, Luc já desapareceu.