Los Angeles, Califórnia
7 de abril de 1952
— Meu Deus, és mesmo bonita — diz Max, erguendo o copo.
Addie cora, com os olhos a descerem sobre o martíni.
Conheceram-se nessa manhã, numa rua de Wilshire, os vincos dos lençóis dele ainda marcados na pele dela. Addie estava parada no passeio envergando o vestido cor de vinho que é o preferido dele, e, quando ele saiu para o seu passeio matinal, parou e perguntou-lhe se podia ter a ousadia de a convidar para a acompanhar, onde quer que ela fosse, e, quando lá chegaram, a um edifício bonito escolhido ao acaso, beijou-lhe a mão e despediu-se, mas não se foi embora, e ela também não. Passaram o dia inteiro juntos, saltitando de uma casa de chá para um parque e de seguida para o museu de arte, arranjando desculpas para continuar na companhia um do outro. E, quando ela lhe disse que era o melhor aniversário que tivera em anos, ele pestanejou de horror, chocado com a ideia de uma rapariga como ela estar sozinha, e por isso ali estão, a beber martínis no Roosevelt.
(Claro que não é o seu aniversário, e não sabe bem porque lhe disse que era. Talvez para ver o que ele faria. Talvez porque até ela começa a estar cansada de reviver a mesma noite, vezes sem conta.)
— Já alguma vez conheceste alguém — diz ele — e sentiste que conheces essa pessoa há muito tempo?
Addie sorri.
Diz sempre as mesmas coisas, mas, de cada uma das vezes, é sincero. Ela brinca com o fio de prata ao pescoço, o anel de madeira enfiado no decote do vestido. Um hábito que parece não conseguir destruir.
Um empregado de mesa aparece junto dela com uma garrafa de champanhe.
— O que é isto? — pergunta ela.
— Para a aniversariante, nesta noite especial — diz Max animadamente. — E para o cavalheiro felizardo que tem a oportunidade de a passar com ela.
Admira as bolhinhas minúsculas que se erguem da flute, sabe, ainda antes de dar um gole, que é do bom; velho, caro. Também sabe que Max se pode dar facilmente a esses luxos.
É escultor — Addie sempre teve um fraco por belas-artes — e talentoso, sim, mas longe de estar a passar fome. Ao contrário de muitos dos artistas com quem Addie esteve, este tem dinheiro, com fundos de família suficientemente robustos para resistir às guerras e aos anos de escassez entre as mesmas.
Ele ergue o copo, enquanto uma sombra cai sobre a mesa.
Presume que é do empregado, mas depois Max olha para cima e enruga um pouco a testa.
— Posso ajudá-lo?
E Addie ouve uma voz como seda e fumo.
— Penso que sim.
Ali está Luc, num elegante fato preto. É belo. É sempre belo.
— Olá, minha querida.
A testa de Max franze-se mais profundamente.
— Conhecem-se?
— Não — diz ela ao mesmo tempo que Luc diz «Sim», e não é justo, a forma como a voz dele se impõe e a dela não.
— É um velho amigo — diz ela, com um tom cortante. — Mas...
Mas, mais uma vez, ele interrompe-a.
— Mas não nos vemos há algum tempo, por isso, se tivesse a gentileza de...
Max indigna-se.
— Isso é bastante inoportuno...
— Vá.
É apenas uma palavra, mas o ar reverbera com a sua força, a sílaba a envolver o homem como gaze. O confronto dissipa-se do rosto de Max. A irritação abranda, e os seus olhos ficam vítreos enquanto se levanta da mesa e se afasta. Não chega a olhar para trás.
— Raios — pragueja ela, afundando-se no seu lugar. — Porque tens de ser tão enervante?
Luc senta-se na cadeira vaga e ergue a garrafa de champanhe, voltando a encher os copos.
— O teu aniversário é em março.
— Quando se tem a minha idade — diz ela —, festeja-se as vezes que se quer.
— Há quanto tempo estás com ele?
— Dois meses. Não é assim tão mau — diz ela, sorvendo a bebida.
— Apaixona-se por mim todos os dias.
— E esquece-te todas as noites.
As palavras magoam, mas não tão profundamente como dantes.
— Pelo menos faz-me companhia.
Os olhos esmeralda varrem-lhe a pele.
— Eu também faria — diz ele —, se quisesses.
Uma onda de calor percorre-lhe as faces.
Luc não pode saber que teve saudades dele. Que pensou nele, tal como costumava pensar no seu estranho, sozinha na cama, à noite. Que pensou nele sempre que brincou com o anel pendurado ao pescoço e de todas as vezes que não o fez.
— Bem — diz ela, terminando a bebida — Roubaste-me o companheiro. O mínimo que podes fazer é tentar preencher esse vazio.
E, sem mais nem menos, o verde nos olhos de Luc está de volta, mais brilhante.
— Anda — diz ele, puxando-a da cadeira. — A noite é uma criança, e podemos fazer muito melhor do que isto.
O Cicada Club fervilha de vida.
Candelabros art déco pendem, baixos, cintilando contra um teto lustroso. Todo o lugar é alcatifa vermelha pisada e escadas a serpentearem até lugares em mezanino. São mesas cobertas com toalhas de linho e uma pista de dança polida instalada diante de um palco baixo.
Chegam quando uma banda constituída por metais termina uma atuação, as trompetes e o saxofone a ecoarem pelo clube. O sítio está apinhado, e, no entanto, quando Luc a arrasta por entre a multidão, há uma mesa vazia mesmo à frente. A melhor da casa.
Ocupam os seus lugares, e, instantes depois, aparece um empregado de mesa, com dois martínis equilibrados na bandeja. Addie pensa no primeiro jantar que partilharam em casa do marquês, há séculos, com a refeição pronta antes de ter chegado a aceitá-la, e pergunta-se se Luc terá planeado aquilo com antecedência ou se o mundo simplesmente se verga perante a sua vontade.
A multidão irrompe em aplausos quando um novo intérprete sobe ao palco.
Um homem estreito com um rosto macilento, sobrancelhas finas arqueando-se sob um chapéu cinzento.
Luc olha para ele com o orgulho feroz de algo que se possui.
— Como se chama? — pergunta ela.
— Sinatra — responde quando a banda se levanta e o homem começa a cantar. Uma melodia leve, suave e doce, derrama-se pela sala. Addie ouve, enfeitiçada, e depois os homens e as mulheres começam a levantar-se das cadeiras e a avançar para a pista de dança.
Addie levanta-se, estendendo a mão.
— Dança comigo — diz.
Luc olha para ela, mas não se levanta.
— O Max teria dançado comigo — diz ela.
Espera que ele recuse, mas Luc levanta-se e pega-lhe na mão, conduzindo-a até à pista.
Addie espera que seja rígido, inflexível, mas Luc move-se com a graciosidade fluida do vento a percorrer campos de trigo, das tempestades a varrerem céus de verão.
Tenta lembrar-se de um momento em que tenham estado tão próximos e não consegue.
Sempre mantiveram a distância.
Agora, o espaço desaparece.
O corpo dele envolve o dela como um cobertor, como uma brisa, como a própria noite. Mas, nessa noite, não parece algo feito de sombra e de fumo. Nessa noite, os braços são sólidos contra a sua pele. A sua voz desliza-lhe pelo cabelo.
— Mesmo que todas as pessoas que conheces se lembrassem — diz Luc —, continuo a ser eu quem te conhece melhor.
Ela procura o rosto dele.
— E eu conheço-te a ti?
Inclina a cabeça sobre a dela.
— És a única a conhecer-me.
Os seus corpos comprimem-se, encaixando perfeitamente.
O ombro dele, moldado à face dela.
As mãos dele, moldadas à sua cintura.
A sua voz, moldada aos seus espaços vazios enquanto diz:
— Desejo-te. — E depois, outra vez: — Sempre te desejei.
Luc olha para ela, com os seus olhos verdes-negros de prazer, e Addie tenta manter-se firme.
— Desejas-me como troféu — diz ela. — Desejas-me como a uma refeição ou um copo de vinho. Mais uma coisa a ser consumida.
Ele enterra a cabeça, pressiona os lábios contra a clavícula dela.
— E será assim tão errado?
Addie evita um estremecimento quando ele lhe beija o pescoço.
— Será tão mau... — a boca dele percorre-lhe o maxilar — ... ser saboreada? —A sua respiração aflora-lhe a orelha. — Ser apreciada?
A boca dele paira sobre a dela, e os seus lábios também se moldam aos dela.
Ela nunca terá a certeza do que aconteceu primeiro — se foi ela a beijá-lo ou ele a beijá-la a ela, quem começou o gesto e quem lhe correspondeu. Saberá apenas que havia espaço entre ambos e que este desapareceu. Claro que já tinha pensado em beijar Luc, quando ele era apenas uma invenção da sua mente, e, depois, quando passou a ser mais do que isso. Mas, em todas as suas invocações, ele apossara-se da sua boca como se fosse um troféu. Afinal, foi assim que a beijou na noite em que se conheceram, quando selou o pacto com sangue nos seus lábios. Era assim que imaginava que beijaria sempre.
Mas agora beija-a como alguém a provar veneno.
Com cautela, testando, quase com medo.
E só quando ela responde, retribui o beijo da mesma forma, ele aprofunda a investida, com os dentes a aflorarem o lábio inferior, o peso e o calor do seu corpo contra o dela.
Sabe ao ar da noite, arrebatado pelo peso das tempestades de verão. Sabe aos vestígios leves e remotos de fumo de lareira, um lume a extinguir-se no escuro. Sabe à floresta e, de certa forma, de modo impossível, sabe a casa.
E então a escuridão alcança-a, alcança-os, e o Cicada Club desaparece; o som baixo da música e a melodia ligeira são engolidos pelo vazio opressivo, por um vento impetuoso e por corações acelerados, e Addie está a cair, para sempre e num único passo para trás — e depois os seus pés encontram o pavimento de mármore suave de um quarto de hotel, e Luc está ali, encostado ao seu corpo, e ela está ali, a puxá-lo contra a parede mais próxima.
Os braços dele erguem-se à sua volta, formando uma gaiola livre e aberta.
Podia destruí-la, se tentasse.
Não tenta.
Ele beija-a de novo e desta vez não está a provar veneno. Desta vez não há cautela, não há resistência; o beijo é súbito, acutilante e profundo, roubando ar e pensamento e deixando-a ainda mais esfomeada, e, por um instante, Addie sente as trevas escancaradas, sente-as abrirem-se à sua volta, apesar de o chão ainda ali estar.
Beijou muitas pessoas. Mas nenhuma delas a beijou como ele. A diferença não reside nos detalhes técnicos. A boca dele não está mais preparada para a tarefa. É apenas a forma como a usa.
É a diferença entre experimentar um pêssego fora de época e a primeira dentada numa peça de fruta amadurecida pelo sol.
A diferença entre ver apenas a preto e branco e uma vida a cores.
Dessa primeira vez, é uma espécie de luta, sem nenhum deles baixar a guarda, cada um deles à espreita da cintilação reveladora de uma lâmina esquecida à procura de carne.
Quando finalmente colidem, é com toda a força de corpos que estiveram demasiado tempo separados.
É uma batalha travada entre os lençóis.
E, de manhã, todo o quarto exibe os sinais da sua guerra.
— Há muito tempo — diz ele — que não quero ir-me embora.
Ela olha para a janela, o primeiro fio estreito de luz.
— Então não vás.
— Tenho de ir — diz ele. — Sou um ser das trevas.
Ela encosta a cabeça numa das mãos.
— Irás desaparecer com o sol?
— Vou simplesmente para onde há escuridão, de novo.
Addie levanta-se, vai até à janela e corre as cortinas, voltando a mergulhar o quarto numa negritude sem luz.
— Pronto — diz, tateando o caminho de volta à cama. — Já está escuro de novo.
Luc ri-se, um som suave e belo, e puxa-a para a cama.