Nova Orleães, Luisiana
29 de julho de 1970
— Amo-te.
Estão em Nova Orleães quando ele o diz, a jantar num bar escondido no Bairro Francês, uma das suas muitas encenações.
Addie abana a cabeça, espantada por as palavras não se transformarem em cinzas na sua boca.
— Não faças de conta que isto é amor.
A irritação lampeja no rosto de Luc.
— O que é o amor, então? Diz-me. Diz-me que o teu coração não estremece quando ouves a minha voz. Que não sofre quando ouves o teu nome nos meus lábios.
— É pelo meu próprio nome que sofre, não pelos teus lábios.
Os contornos da boca dele contorcem-se para cima, os olhos agora cor de esmeralda. Um brilho nascido do prazer.
— Em tempos, talvez — diz ele. — Mas agora é mais do que isso.
Addie tem receio de que ele tenha razão.
E então Luc pousa uma caixa diante dela.
É simples e preta e, se Addie estendesse a mão para lhe tocar, seria suficientemente pequena para lhe caber na palma.
Mas não o faz, pelo menos de início.
— O que é isto? — pergunta.
— Um presente.
Ainda assim, não o aceita.
— Francamente, Adeline — diz ele, retirando a caixa da mesa. — Não mordo.
Abre-a e volta a pousá-la diante dela.
Lá dentro encontra-se uma chave de metal simples, e, quando lhe pergunta de onde é, ele responde:
— De casa.
Não teve casa desde Villon. Na verdade, nunca teve um sítio seu, e quase se sente grata, antes de se lembrar de que, evidentemente, ele é o motivo de tudo isso.
— Não faças troça de mim, Luc.
— Não estou a fazer troça de ti — diz ele.
Pega-lhe mão e leva-a a percorrer o bairro, até um sítio ao fundo da Bourbon Street, uma casa amarela com uma varanda e janelas altas como portas. Addie introduz a chave na fechadura, ouve o som pesado da volta e apercebe-se de que, se pertencesse a Luc, ao invés de a ela, a porta simplesmente abriria. E, de súbito, a chave de metal parece real e sólida na sua mão, um tesouro.
A porta abre-se para uma casa com tetos altos e soalhos de madeira, com mobília e armários e espaços a serem preenchidos. Addie sai para varanda, com os sons em camadas do bairro a erguerem-se para ir ao seu encontro, no ar húmido. Música jazz derrama-se pelas ruas, colidindo, sobrepondo-se, uma melodia caótica, mutável e viva.
— É tua — diz Luc —, uma casa — e os velhos sinais de aviso ecoam, profundamente, na medula dos seus ossos.
Mas, ultimamente, é um raio a minguar, um farol visto de demasiado longe do porto.
Luc puxa-a para si, e Addie repara de novo na perfeição com que os seus corpos encaixam.
Como se ele fosse feito para ela.
Foi-o, evidentemente. O seu corpo, o seu rosto, aqueles traços, feitos para a deixar à vontade.
— Vamos sair — diz ele.
Addie quer ficar ali, estrear a casa, mas ele diz haverá tempo para isso, que haverá sempre tempo. E, pela primeira vez, ela não receia a ideia de eternidade. Pela primeira vez, os dias e as noites não se arrastam, precipitam-se para diante.
Sabe-o, sabe que, seja aquilo o que for, não irá durar.
Não pode durar.
Nada dura.
Mas, naquele momento, está feliz.
Percorrem o bairro, de braço dado, e Luc acende um cigarro, e, quando ela lhe diz que lhe faz mal à saúde, ele solta uma gargalhada aspirada e silenciosa, com o fumo a sair-lhe por entre os lábios.
Os passos de Addie abrandam diante da montra de uma loja.
A loja está fechada, claro, mas, mesmo por trás do vidro fumado, consegue ver o casaco de cabedal, preto com fivelas prateadas, a envolver um manequim.
O reflexo de Luc cintila atrás dela enquanto acompanha o olhar de Addie.
— É verão — diz ele.
— Não será sempre.
Luc passa as mãos pelos ombros dela, e Addie sente o cabedal macio pousar-lhe na pele, ficando o manequim da montra agora despido, e tenta não pensar em todos os anos em que não o teve, obrigada a suportar o frio, em todas as vezes que teve de se esconder e de lutar e de roubar.
Tenta não pensar nelas, mas pensa.
Estão a meio caminho, de volta à casa amarela, quando Luc descola dela.
— Tenho trabalho a fazer — diz. — Vai andando para casa.
Casa — a palavra ressoa no seu peito enquanto ele se afasta.
Mas ela não vai.
Vê Luc dobrar a esquina e atravessar a rua e depois demora-se na sombra enquanto ele se aproxima de uma loja com uma palmeira luminescente pintada na porta.
Uma mulher mais velha encontra-se no passeio, a fechar o estabelecimento, o perfil inclinado sobre uma argola cheia de chaves, um saco grande pendendo de um cotovelo.
Deve ouvi-lo aproximar-se, porque murmura algo para a escuridão, algo sobre fechar, algo sobre mais um dia. E depois vira-se e vê-o.
No vidro da montra, Addie também vê Luc, não como é para ela, mas como deve parecer à mulher que se encontra à porta. Ainda tem os caracóis negros, mas o rosto é mais magro, mais afiado, com um ar selvagem, os olhos encovados, os membros demasiado finos para serem humanos.
— Um pacto é um pacto — diz ele, as palavras a vergarem-se no ar. — E está feito.
Addie observa, esperando que a mulher suplique, que corra.
Mas pousa o saco no chão e ergue o queixo.
— Um pacto é um pacto — diz. — E estou cansada.
E, de certa forma, é pior.
Porque Addie compreende.
Porque também está cansada.
E, enquanto observa, a escuridão desfaz-se outra vez.
Passaram-se mais de cem anos desde a última vez que Addie o viu em toda a verdade, a ira da noite, com todos os seus dentes. Só que, desta vez, não há laceração, não há rutura, não há horror.
A escuridão envolve simplesmente a idosa como uma tempestade, cobrindo a luz.
Addie vira costas.
Regressa à casa amarela em Bourbon Street e serve-se um copo de vinho branco, revigorante e gelado. Está um calor tórrido; as portas da varanda encontram-se abertas de par em par para aligeirar a noite de verão. Está encostada ao varandim de ferro quando o ouve chegar, não na rua, lá em baixo, como um amante a fazer a corte, mas no quarto, atrás dela.
E, quando os seus braços a envolvem pelos ombros, Addie lembra-se da forma como agarrou a mulher, à entrada, na forma como a envolveu, engolindo-a inteira.