Nova Orleães, Luisiana

1 de maio de 1984

cap14

É assim que acaba.

Com velas a arderem no parapeito, uma luz tremeluzente a lançar sombras longas pela cama. Com a parte mais escura da noite a espraiar-se para lá da janela aberta e a primeira cor de verão no ar e Addie nos braços de Luc, as trevas a envolvê-la como um lençol.

E isto, pensa, é estar em casa.

Isto talvez seja amor.

E essa é a pior parte. Finalmente esqueceu algo. Só que é a coisa errada. É a única coisa de que se deveria lembrar. Que o homem na cama não é um homem. Que a vida não é uma vida. Que há jogos e batalhas, mas, no fim, é tudo uma espécie de guerra.

Um toque como o de dentes ao longo do seu maxilar.

A escuridão a sussurrar contra a sua pele.

— Minha Adeline.

— Não sou tua — diz ela, mas a boca dele limita-se a sorrir contra o seu pescoço.

— E, no entanto — diz ele — estamos juntos. Pertencemos um ao outro.

Tu pertences-me a mim.

— Amas-me? — pergunta ela.

Os dedos dele percorrem-lhe as ancas.

— Sabes que sim.

— Então liberta-me.

— Não te estou a prender aqui.

— Não foi isso que quis dizer — diz ela, apoiando-se num braço. — Liberta-me.

Ele recua, apenas o suficiente para cruzar o seu olhar com o dela.

— Não posso quebrar o pacto. — A cabeça dele cai, com os caracóis negros a aflorarem-lhe a face.´— Mas talvez — sussurra contra o seu peito — o possa contornar.

O coração de Addie tem um baque dentro do peito.

— Talvez possa mudar as condições.

Ela sustém a respiração enquanto as palavras de Luc lhe brincam na pele.

— Posso melhorá-lo — murmura. — Tens apenas de te render.

A palavra é um choque a frio.

Uma cortina a cair sobre uma peça: o cenário adorável, a encenação, os atores bem treinados, todos desaparecem atrás do pano escuro.

Rende-te.

Uma ordem sussurrada nas trevas.

Um aviso dado a um homem despedaçado.

Um pedido repetido vezes sem conta ao longo de anos — até ter cessado. Há quanto tempo parou de perguntar? Mas claro que Addie sabe — foi quando o seu método mudou, quando o seu mau génio em relação a ela suavizou.

E ela é uma tola. Uma tola por pensar que significava paz ao invés de guerra.

Rende-te.

— O que foi? — pergunta Luc, fingindo confusão, até lhe lançar de novo a palavra à cara.

Rende-te? — rosna ela.

— É apenas uma palavra — diz ele. Mas Luc ensinou-lhe o poder de uma palavra. Uma palavra é tudo, e a palavra dele é uma serpente, uma armadilha preparada, uma maldição. — É assim que as coisas se passam — diz ele. — Para se poder alterar o pacto — diz.

Mas Addie recua, afasta-se, solta-se.

— E deverei confiar em ti? Ceder e acreditar que ma devolverás?

Tantos anos, tantas maneiras diferentes de pedir a mesma coisa.

Cedes?

— Deves pensar que sou uma idiota, Luc. — Tem o rosto a arder de raiva. — Estou surpreendida por teres tido tanta paciência. Mas, por outro lado, sempre gostaste da perseguição.

Os olhos verdes estreitam-se, no escuro.

— Adeline.

— Não te atrevas a dizer o meu nome. — Está de pé, a sibilar de raiva. — Eu sabia que eras um monstro, Luc. Vi-o vezes suficientes. E, no entanto, ainda pensei, de certa forma pensei que, passado todo este tempo..., mas claro que não era amor, pois não? Nem sequer era amabilidade. Era apenas mais um jogo.

Há um instante em que pensa que poderá estar enganada.

Uma fração de segundo em que Luc parece magoado e confuso, e ela pergunta-se se terá querido dizer o que disse, se, se...

Mas depois acaba-se tudo.

A mágoa desaparece-lhe do rosto e transforma-se em sombra, o efeito tão suave como o de uma nuvem a atravessar o sol. Um sorriso sinistro brinca-lhe nos lábios.

— E que cansativo tem sido este jogo.

Addie sabe que a arrancou à força, mas, ainda assim, a verdade colide contra ela. Se já estava fendida, agora está a partir-se.

— Não me podes culpar por tentar uma jogada diferente.

— Culpo-te por tudo.

Luc levanta-se, a escuridão a aglomerar-se como seda, à sua volta.

— Dei-te tudo.

— Nada era real!

Não irá chorar.

Não lhe irá dar a satisfação de a ver sofrer.

Nunca mais lhe voltará a dar seja o que for.

É assim que o confronto começa.

Ou melhor, é assim que acaba.

Afinal, a maior parte dos confrontos não se resolve num instante. Acumula-se ao longo de anos ou de semanas, cada uma das fações a reunir as acendalhas, a alimentar as suas chamas.

Mas este confronto foi forjado ao longo de séculos.

É tão antigo e inevitável como a mudança no mundo, o passar de uma era, a colisão de uma rapariga com as trevas.

Devia ter percebido que iria acontecer.

Talvez tenha percebido.

Mas, até hoje, Addie não sabe como o fogo começou. Se foram as velas que varreu de cima da mesa ou o candeeiro que arrancou da parede, se foram as lâmpadas que Luc estilhaçou ou simplesmente um derradeiro ato de ódio.

Sabe que não tem força para destruir nada, e, no entanto, fê-lo. Fizeram-no. Talvez ele a tenha deixado atear o fogo. Talvez o tenha deixado simplesmente arder.

Não importa, no fim de tudo.

Addie está na Bourbon Street e vê a casa consumida pelas chamas, e, quando os bombeiros chegam, não há nada para salvar. Apenas cinzas.

Mais uma vida desfeita em fumo.

Addie não tem nada, nem a chave no bolso. Estava ali, mas, quando a procura, desapareceu. A mão sobe até ao anel de madeira que ainda traz ao pescoço.

Arranca-o, atira o anel para os despojos fumegantes de sua casa e vai-se embora.