Nova Iorque
Agosto de 2014
São os dias mais felizes da vida de Henry.
É algo esquisito de se dizer, Addie sabe.
Mas há uma estranha liberdade naquilo, um consolo peculiar no conhecimento. O fim precipita-se ao seu encontro, e, no entanto, não sente que está a cair para ele.
Sabe que deveria estar assustado.
Todos os dias, prepara-se para o terror irrequieto, espera que as nuvens de tempestade se aproximem, aguarda que o pânico inevitável lhe trepe dentro do peito, se intrometa, destruindo-o. Mas, pela primeira vez em meses, em anos, em tanto tempo quanto se consegue lembrar, não tem medo. Está preocupado com os amigos, claro, com a loja e com o gato. Mas, para lá do zunido baixo da preocupação, reside apenas uma estranha calma, uma estabilidade e o alívio incrível de ter encontrado Addie, de a ter conhecido, de a ter amado, de a ter ali, ao seu lado.
Está feliz.
Está pronto.
Não tem medo.
É o que diz para si mesmo.
Não tem medo.
Decidem ir para fora.
Sair da cidade, do calor estagnante do verão.
Ver as estrelas.
Aluga um carro, e conduzem para norte, e Henry dá-se conta, a meio caminho de Hudson, que Addie nunca conheceu a sua família e depois dá-se conta, com um peso súbito que o afunda, que só deveria ir a casa pelo Rosh Hashanah e que, por essa altura, já terá desaparecido. De que, se virar nesta saída, nunca terá a oportunidade de se despedir.
E então as nuvens começam a aproximar-se, e o medo tenta trepar-lhe dentro do peito, porque não sabe o que diria, não sabe de que serviria.
E depois já passou a saída, depois é demasiado tarde, e pode respirar de novo, e Addie está a apontar para um cartaz a anunciar fruta fresca e saem da autoestada e compram pêssegos na banca e sandes no mercado e guiam durante uma hora para norte, até um parque estadual, onde o sol está quente, mas a sombra sob as árvores é fresca, e passam o dia a deambular por trilhos arborizados e, quando a noite cai, fazem um piquenique no capô do carro alugado e deitam-se entre a relva bravia e selvagem e as estrelas.
Tantas que a noite não parece negra.
E ele continua a sentir-se feliz.
E ele continua a conseguir respirar.
Não têm tenda, mas, seja como for, está demasiado calor para resguardos.
Deitam-se numa manta, em cima da relva, e olham para cima, para o fantasma da Via Láctea, e ele pensa na Artifact, na High Line, na exposição do céu, em quão próximas as estrelas pareciam na altura e, agora, quão remotas.
— Se pudesses fazer tudo de novo — diz ele —, voltarias a fazer o pacto?
E Addie diz que sim.
Tem sido uma vida difícil e solitária, diz, mas também maravilhosa. Atravessou guerras e combateu nelas, assistiu a revoluções e renascimentos. Deixou a sua marca em milhares de obras de arte, como uma impressão digital no fundo de uma tigela a secar. Viu prodígios e enlouqueceu, dançou nas margens cobertas de neve e geladas até à morte, ao longo do Sena. Apaixonou-se pela escuridão muitas vezes, apaixonou-se por um ser humano uma vez.
E está cansada. Inexprimivelmente cansada.
Mas não há dúvida de que viveu.
— Nada é apenas bom ou mau — diz ela. — A vida é muito mais complicada do que isso.
E ali, no escuro, Henry pergunta se realmente valeu a pena.
Houve instantes de alegria que compensassem os períodos de sofrimento?
Houve momentos de beleza que compensassem os anos de agruras?
E ela vira a cabeça e olha para ele e diz:
— Sempre.
Adormecem sob as estrelas, e, quando acordam, de manhã, o calor dissipou-se, o ar está fresco, os primeiros sussurros de outra estação, a primeira que ele não verá, à espera, ao longe.
E, ainda assim, diz para si mesmo que não tem medo.
E depois as semanas transformam-se em dias.
Há algumas despedidas que tem de fazer.
Encontra-se com Bea e Robbie no Merchant, uma noite. Addie senta-se no balcão do bar, a beber um refrigerante, dando-lhe espaço. Ele quer que ela esteja presente, precisa de que ela esteja presente, uma âncora silenciosa na tempestade. Mas ambos sabem que, se ela estivesse na mesa com ele, Bea e Robbie se poderiam esquecer, e ele precisa de que se lembrem.
E, por algum tempo, tudo é maravilhosamente, dolorosamente normal.
Bea fala da sua última proposta para tese. Ao que parece, à nona é de vez, porque foi aceite, e Robbie fala da estreia do espetáculo na próxima semana, e Henry não lhe diz que se esgueirou para um dos ensaios com adereços no dia anterior, que ele e Addie estavam à espreita na última fila, enterrados nas cadeiras para ele poder ver Robbie em palco, brilhante e belo e no seu elemento, instalado no seu trono com o fulgor de Bowie e um sorriso de diabo e uma magia própria.
E, finalmente, Henry mente e diz-lhes que vai para fora.
Para norte, para visitar os pais. Não, não está na altura, diz, mas vão aparecer uns primos, a mãe pediu. Durante o fim de semana apenas, diz.
Pergunta a Bea se pode tomar conta da loja.
Pergunta a Robbie se pode dar de comer ao gato.
E eles dizem que sim, tão simples como isto, porque não sabem que é uma despedida. Henry paga a conta, e Robbie brinca, e Bea queixa-se dos colegas da faculdade, e Henry diz-lhes que lhes liga quando voltar.
E, quando se levanta para se ir embora, Bea beija-lhe a face, e ele puxa Robbie para um abraço, e Robbie diz que é melhor que ele não perca o espetáculo, e Henry promete que não irá perder, e depois estão a sair, desapareceram.
E é assim, conclui, que deveria ser uma despedida.
Não um ponto final, mas uma elipse, uma frase com reticências, até alguém aparecer para a continuar.
Uma porta que se deixou entreaberta.
Cair lentamente no sono.
E diz para si mesmo que não tem medo.
Diz para si mesmo que está tudo bem, que ele está bem.
E, quando começa a duvidar, a mão de Addie está ali, suave e firme, no seu braço, levando-o de volta a casa. E metem-se na cama e enroscam-se num no outro, contra a tempestade.
E algures, a meio da noite, ele sente-a levantar-se, ouve os seus passos no corredor.
Mas é tarde, e não deduz nada sobre aquilo.
Vira-se para o outro lado e volta a adormecer, e, quando acorda de novo, ainda é escuro, e ela está de volta à cama, ao seu lado.
E o relógio na mesinha de cabeceira avança mais um passo em direção à meia-noite.