Nova Iorque

4 de setembro de 2014

cap17

É um dia perfeitamente normal.

Ficam na cama, enroscados no ninho dos lençóis, cabeça contra cabeça e mãos a percorrerem braços, a percorrerem rostos, dedos a memorizarem pele. Ele sussurra o nome dela, repetidamente, como se Addie pudesse guardar o som, engarrafá-lo para o usar quando ele não estiver presente.

Addie, Addie, Addie.

E, apesar de tudo, Henry está contente.

Ou, pelo menos, diz para si mesmo que está contente, diz para si mesmo que está pronto, diz para si mesmo que não tem medo. E diz para si mesmo que, se ficarem ali apenas, na cama, o dia irá alongar-se. Se sustiver a respiração, conseguirá impedir os segundos de avançarem, prender os minutos entre os seus dedos entrelaçados.

É um pedido silencioso, mas Addie parece captá-lo, porque não faz qualquer movimento para se levantar. Em vez disso, fica com ele na cama e conta-lhe histórias.

Não de aniversários — já esgotaram todos os dias 29 de julho —, mas de setembros e de maios, de dias tranquilos, o tipo de história de que mais ninguém, se lembraria. Fala-lhe dos lagos de fadas da ilha de Skye e das luzes do Norte, na Islândia, de nadar num lago tão límpido que conseguia ver o fundo, a dez metros de profundidade, em Portugal... ou seria Espanha?

São as únicas histórias que ele nunca escreverá.

A culpa é sua; não se consegue obrigar a sentar, a largar as mãos de Addie e a sair da cama e tirar o último caderno da prateleira — agora já são seis, com o último preenchido apenas até meio, e apercebe-se de que irá ficar assim, com as últimas páginas em branco, a sua letra pequena e apertada como uma parede, um fim falso para uma história em curso, e o seu coração saltita um pouco, um estremecimento minúsculo de pânico, mas não pode permitir que aquilo recomece, sabe que o ficará dilacerado, tal como um arrepio transforma um arrefecimento momentâneo num frio capaz de deixar os dentes a bater, e não pode perder o controlo, ainda não, ainda não.

Ainda não.

Por isso, Addie fala, e ele ouve, deixando que as histórias deslizem como dedos pelo seu cabelo. E, sempre que o pânico tenta vir à tona, resiste, sustém a respiração e diz para si mesmo que está bem, mas não se mexe, não se levanta. Não consegue, porque, se o fizer, quebrará o feitiço, e o tempo irá disparar, e tudo chegará ao fim demasiado depressa.

É um disparate, bem sabe, uma estranha vaga de superstição, mas o medo está ali agora, agora real, e a cama é segura, e Addie é firme, e está tão contente por ela estar ali, tão contente por cada minuto desde que se conheceram.

Algures à tarde, fica subitamente com fome. Faminto.

Não devia. Sente-se frívolo e errado, irracional mesmo, mas a fome é rápida e profunda, e, com a sua chegada, o relógio começa a contar o tempo.

Não consegue mantê-lo à distância.

Agora dispara, precipita-se.

E Addie olha para ele como se lhe conseguisse ler a mente, ver a tempestade formar-se na sua cabeça. Mas ela é a luz do sol. Ela é céus azuis.

Arrasta-o da cama para a cozinha, e Henry senta-se num banco e ouve-a enquanto ela prepara uma omeleta e lhe conta da primeira vez que viu um avião, que ouviu uma canção na rádio, que assistiu a um filme no cinema.

É o último presente ela que lhe pode dar, os momentos que nunca mais terá. E é o último presente que ele lhe pode dar a ela, ouvir.

E Henry desejava poder voltar para a cama com Book, mas ambos sabem que não há volta atrás. E, agora que está levantado, não consegue suportar a imobilidade. É todo energia irrequieta e necessidade urgente, e não há tempo suficiente, e ele obviamente sabe que nunca haverá.

Que o tempo termina sempre um segundo antes de estarmos prontos.

Que a vida são os minutos que desejamos, menos um.

E por isso vestem-se e saem e caminham, descrevendo círculos pelo quarteirão, enquanto o pânico começa a levar a melhor. É uma mão a comprimir gelo frágil, uma pressão firme sobre fissuras que se começam a espalhar, mas Addie está ali, com os dedos entrelaçados nos dele.

— Sabes como se vive trezentos anos? — diz ela.

E, quando ele pergunta como, ela sorri.

— Da mesma maneira que se vive um. Um segundo de cada vez.

E, aos poucos, as pernas dele começam a cansar-se, e a inquietação diminui, não desaparece, mas entorpece até um nível que consegue gerir, e vão até ao Merchant e pedem comida que não comem e pedem cervejas que não bebem porque ele não suporta a ideia de entorpecer as últimas horas, por mais assustador que seja encará-las sóbrio.

E faz um comentário qualquer sobre a sua última refeição, ri-se desse pensamento mórbido, e o sorriso de Addie vacila, por um segundo apenas, e depois ele está a pedir desculpa, a dizer que lamenta, e ela dobra-se sobre ele, e o pânico têm as garras cravadas em Henry.

A tempestade prepara-se na sua cabeça, agitando o céu no horizonte, mas ele não a evita.

Deixa-a chegar.

Só quando começa a chover é que percebe que a tempestade é real.

Inclina a cabeça para trás e sente o pingar da chuva no rosto e pensa na noite em que foram ao Fourth Rail, na carga de água que os deixou sem fôlego quando chegaram à rua. Pensa nisso antes de pensar no terraço, e é qualquer coisa.

Sente-se tão longe do Henry que subiu até lá um ano antes — ou talvez não esteja assim tão longe. Afinal, é apenas uma questão de degraus, da rua até ao parapeito.

Mas o que daria para voltar a descer.

Deus, o que daria por mais um dia, apenas.

O sol agora desapareceu, com a luz a tornar-se mais esparsa, e nunca mais o irá ver, e o medo esmaga-o, súbito e traiçoeiro. É uma rajada, a cortar uma cena demasiado parada. Debate-se contra ele, ainda não, ainda não, e Addie aperta-lhe a mão, para que não seja arrastado pelo vento.

— Fica comigo — diz ela, e ele responde:

— Estou aqui.

Os dedos apertam-se nos dela.

Ele não tem de perguntar, ela não tem de responder.

Há um acordo silencioso de que Addie ficará ali, com ele, mesmo até ao fim.

De que, desta vez, não estará sozinho.

E ele está bem.

Está tudo bem.

Ficará tudo bem.