Brooklyn, Nova Iorque

13 de março de 2015

cap2

— Henry Samuel Strauss, isto é uma treta.

Bea passa a última página com violência, sobre o balcão da máquina de café, assustando o gato, que foge para uma torre de livros próxima.

— Não podes acabar assim. — Agarra o resto do manuscrito com força, contra o peito, como se tentasse protegê-lo dele. A página de rosto devolve o olhar a Henry.

A Vida Invisível de Addie LaRue .

— O que lhe aconteceu? Foi mesmo com o Luc? Depois de tudo?

Henry encolhe os ombros.

— Presumo que sim.

Presumes que sim?

A verdade é que não sabe.

Passou os últimos seis meses a tentar transcrever as histórias dos cadernos, a compilá-las naquele rascunho. E todas as noites, depois de ficar com cãibras nas mãos e de a cabeça lhe começar a doer de tanto olhar para o ecrã de computador, atirava-se para a cama — já não tem o cheiro dela — e perguntava-se como terminaria.

Se terminaria.

Escreveu dezenas de desfechos diferentes para o livro, uns em que ela era feliz e outros em que não era, uns em que ela e Luc estavam loucamente apaixonadas e outros em que ele se agarrava a ela como um dragão ao seu tesouro, mas todos esses desfechos lhe pertenciam a ele, não a ela. Eram a história dele, e esta é dela. E tudo o que escrevesse para lá desses últimos segundos partilhados, desse beijo final, seria ficção.

Tentou.

Mas isto é real — apesar de mais ninguém saber.

Não sabe o que aconteceu a Addie, para onde foi, como está, mas pode esperar. Espera que ela esteja feliz. Espera que ainda irradie alegria desafiante e esperança obstinada. Espera que não o tenha feito ape- nas por ele. Espera, de alguma forma, que, um dia, a possa ver de novo.

— Vais mesmo fingir que esta porcaria aconteceu, não vais? — diz Bea.

Henry olha para ela.

Quer dizer-lhe que é tudo verdade.

Que Bea conheceu Addie, tal como escreveu, que repetiu a mesma coisa de cada uma das vezes. Quer dizer-lhe que teriam sido amigas. Que foram amigas, num estilo de a-primeira-noite-do-resto-das-nossas-vidas. Que foi, afinal, o máximo que Addie conseguiu ter.

Mas ela não iria acreditar nele, por isso deixa que o sinta como se fosse ficção.

— Gostaste? — pergunta.

E Bea desfaz-se num sorriso rasgado. Já não há névoa nos seus olhos, não há brilho, e ele nunca se sentiu mais grato por ouvir a verdade.

— Está bom, Henry — diz ela. — Está mesmo, mesmo bom. — Bate com a mão na página de rosto. — Não te esqueças só de me incluíres nos agradecimentos.

— O quê?

— A minha tese. Lembras-te? Queria fazê-la sobre a rapariga daquelas peças. O fantasma na moldura. É ela, não é?

E é claro que é.

Henry passa a mão pelo manuscrito, aliviado e triste por estar terminado. Desejava ter podido viver um pouco mais com ele, desejava ter podido viver com ela.

Mas agora está contente por o ter.

Porque a verdade é que já se começa a esquecer.

Não que tenha sido alvo da maldição dela. Ela não foi apagada, de todo. Os pormenores estão simplesmente a esbater-se, como acontece com todas as coisas, a atenuar-se aos poucos, com a mente a perder o domínio sobre o passado de modo a abrir caminho para o futuro.

Mas ele não quer deixá-lo ir.

Está a tentar não o deixar ir.

Fica deitado na cama, à noite, fecha os olhos e tenta invocar o seu rosto. A curva exata da sua boca, o tom particular do seu cabelo, a forma como o candeeiro da mesinha de cabeceira lhe iluminava a face esquerda, a têmpora, o queixo. O som do seu riso, noite dentro, a sua voz quando estava prestes a adormecer.

Sabe que estes pormenores não são tão importantes como os do livro, mas não consegue suportar perdê-los.

Acreditar é um pouco como a gravidade. Se houver pessoas sufi- cientes a acreditarem numa coisa, esta torna-se sólida e real como o chão debaixo dos pés. Mas, quando se é o único a agarrar-se a uma ideia, a uma memória, a uma rapariga, é difícil evitar que esta escape.

— Sabia que ias ser escritor — diz Bea. — Todas as armadilhas... tens estado apenas em negação.

— Não sou escritor — diz, de forma ausente.

— Diz isso ao livro. Vais vender os direitos, certo? Tens de o fazer... é demasiado bom.

— Oh. Sim — diz ele, pensativo. — Acho que gostava de tentar.

E fá-lo-á.

Arranjará um agente, e os direitos serão negociados, e acabará por vender a obra com uma condição — haver apenas um nome na capa, não o dele —, e, por fim, irão concordar. Pensarão que é um truque de marketing inteligente, sem dúvida, mas o coração de Henry exultará ao pensar noutras pessoas a lerem aquelas palavras — não as dele, mas as dela, no nome dela passado de lábios em lábios, da mente para a memória.

Addie, Addie, Addie.

O adiantamento chegará para pagar os empréstimos universitários, será suficiente para respirar um pouco enquanto pensa no que irá fazer depois. Ainda não sabe o que será, mas, pela primeira vez na vida, isso não o assusta.

O mundo é grande, e viu tão pouco dele com os seus próprios olhos. Quer viajar, tirar fotografias, ouvir as histórias de outras pessoas, talvez fazer um pouco da sua. Afinal, a vida às vezes parece tão longa, mas sabe que avançará muito depressa e por isso não quer perder nem um instante.