Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1714
O som, quando surge, é um ribombar surdo, profundo e distante, como um trovão.
Riso, pensa Adeline, abrindo os olhos e reparando, finalmente, que a luz se extinguiu.
Olha para cima, mas não vê nada.
— Está aí alguém?
O rio transforma-se numa voz, algures atrás dela.
— Não precisas de te ajoelhar — diz. — Vamos lá ver como és de pé.
Ela levanta-se atabalhoadamente e vira-se, mas é recebida apenas pela escuridão, rodeada por ela, por uma noite sem luar depois do sol de verão ter desaparecido. E Adeline sabe, então, que cometeu um erro. Que este é um dos deuses sobre os quais foi alertada.
— Adeline? Adeline? — gritam as vozes da aldeia, tão esbatidas e remotas como o vento.
Olha de soslaio para as sombras entre as árvores, mas não há forma, não há deus que se possa encontrar — apenas aquela voz, próxima como uma respiração contra o seu rosto.
— Adeline, Adeline — diz, escarnecendo —, estão a chamar-te.
Vira-se de novo, não encontrando mais do que sombra profunda.
— Mostra-te — ordena ela, com a voz acutilante e quebradiça como um pau.
Algo lhe aflora o ombro, lhe roça o pulso, a envolve como um amante. Adeline engole em seco.
— O que és?
O toque da sombra recua.
— O que sou? — pergunta, com uma ponta de humor no tom aveludado. — Isso depende daquilo em que acreditas.
A voz cinde-se, duplica, ribombando por entre os ramos das árvores e serpenteando pelo musgo, dobrando-se sobre si mesma até ficar por todo o lado.
— Então diz-me, diz-me, diz-me — ecoa. — Sou o diabo, diabo, ou as trevas, trevas, trevas? Sou um monstro, monstro, ou um deus, deus, deus, ou... — as sombras no bosque começam a aglomerar-se, atraídas como nuvens tempestuosas.
Mas, quando se fixam, os contornos já não são mãos-cheias de fumo, mas linhas firmes, a forma de um homem, estabilizado pela luz das candeias da aldeia, atrás dele.
— Ou serei isto?
A voz derrama-se de uns lábios perfeitos, uma sombra revelando uns olhos de esmeralda que dançam sob sobrancelhas negras, um cabelo preto que lhe cai em caracóis sobre a testa, emoldurando um rosto que Adeline conhece demasiado bem. Um rosto que invocou milhares de vezes, a lápis e carvão e sonho.
É o estranho.
O seu estranho.
Sabe que é um truque, uma sombra a fazer-se passar por homem, mas a sua visão ainda lhe tira o fôlego. A escuridão olha para a sua própria forma, vendo-a como se fosse pela primeira vez, e parece aprovar.
— Ah, então a rapariga afinal acredita em alguma coisa. — Os olhos verdes erguem-se. — Bem — diz —, chamaste, e eu vim.
Nunca rezes aos deuses que respondem depois de escurecer.
Adeline sabe — sabe —, mas foi este o único que respondeu. O único disposto a ajudar.
— Estás preparada para pagar?
Pagar.
O preço.
O anel.
Adeline cai de joelhos, esquadrinha o solo até encontrar o fio de cabedal e puxa o anel do pai do chão.
Apresenta-o ao deus, com a madeira clara agora suja de terra, e ele aproxima-se mais. Poderá parecer de carne e osso, mas continua a mover-se como uma sombra. Um único passo e está ali, enchendo o seu campo de visão, fechando uma mão sobre o anel e pousando a outra no rosto de Adeline. O seu polegar aflora a sarda que tem sob o olho, a orla superior da constelação.
— Minha querida — diz a escuridão, pegando no anel. — Não negoceio com bugigangas.
O anel de madeira desfaz-se na sua mão e cai, transformado em fumo. Um som abafado solta-se dos lábios de Adeline — já era suficientemente doloroso perder o anel, mas ainda mais vê-lo eliminado do mundo como uma mancha na pele. Mas, se o anel não é suficiente, então o que é preciso?
— Por favor — diz ela —, dou qualquer coisa.
A outra mão da sombra ainda está pousada no seu rosto.
— Presumes que eu quero qualquer coisa — diz, levantando o queixo. — Mas só aceito uma moeda. — Aproxima-se ainda mais dela, com os olhos verdes impossivelmente brilhantes, a voz suave como seda. — Só faço pactos em troca de almas.
Adeline sentiu o coração apertar-se-lhe no peito.
Mentalmente, vê a mãe de joelhos na igreja, a falar com Deus e com o Céu, ouve o pai a conversar, a contar histórias de bruxas e de enigmas. Pensa em Estele, que não acredita em nada, apenas numa árvore sobre os seus ossos. Que diria que uma alma não passa de uma semente devolvida à terra — embora tenha sido ela quem a avisou das trevas.
— Adeline — diz a escuridão, com o nome a deslizar como musgo por entre os dentes. — Estou aqui. Agora diz-me porquê.
Esperou tanto tempo para que fossem ao seu encontro — para que lhe respondessem, para que lhe perguntassem — que, de início, todas as palavras lhe faltam.
— Não me quero casar.
Sente-se tão pequena quando o diz... Toda a sua vida lhe parece pequena, e vê essa imagem refletida no olhar do deus, como que a dizer: É tudo?
E não, é mais do que isso. Claro que é mais.
— Não quero pertencer a alguém — diz com uma veemência súbita. As palavras são uma porta que se abre de par em par, e agora o resto derrama-se para fora dela. — Não quero pertencer a ninguém a não ser a mim mesma. Quero ser livre. Livre para viver e para descobrir o meu próprio caminho, para amar ou para ficar sozinha, mas, pelo menos, essa ser uma decisão minha, e estou tão cansada de não poder decidir, tenho tanto medo dos anos a passarem sob os meus pés. Não quero morrer como vivi, que não é vida nenhuma. Quero...
A sombra interrompe-a, impaciente.
— E de que me serve dizeres-me o que não queres? — a mão desliza pelo cabelo dela, vem pousar-se contra a sua nuca, aproximando-a dele. — Diz-me antes o que mais desejas.
Ela olha para cima.
— Quero uma oportunidade de viver. Quero ser livre. — Pensa nos anos a escaparem-se.
Um piscar de olhos, e metade da tua vida desapareceu.
— Quero mais tempo.
Ele estuda-a, com os olhos verdes a mudarem de tom, agora relva de primavera, agora folha de verão.
— Quanto tempo?
A cabeça anda-lhe à roda. Cinquenta anos. Cem. Todos os números parecem demasiado pequenos.
— Ah — diz a escuridão, interpretando o seu silêncio. — Não sabes. — Mais uma vez, os olhos verdes mudam, escurecem. — Pedes tempo, sem limites. Queres liberdade, sem regras. Queres ser indomada. Queres viver exatamente como te apetecer.
— Sim — diz Adeline, esbaforida de desejo, mas a expressão da sombra azeda. A mão desliza-lhe da pele, e, então, deixa de estar ali, mas encostado a uma árvore, a vários passos de distância.
— Recuso — diz ele.
Adeline recua como se tivesse sofrido um golpe.
— O quê? — conseguiu ali chegar, deu tudo o que tem, tomou uma decisão. Agora não pode voltar para aquele mundo, para aquela vida, para aquele presente e passado sem um futuro. — Não podes recusar.
Uma sobrancelha negra ergue-se, mas não há divertimento naquele rosto.
— Não sou um génio qualquer, às ordens dos teus caprichos. — Desencosta-se da árvore. — E também não sou um espírito da floresta insignificante, satisfeito por conceder favores em troca de bugi- gangas mortais. Sou mais forte do que o teu deus e mais velho do que o teu diabo. Sou a escuridão por entre as estrelas e as raízes por baixo da terra. Sou promessa e potencial, e, quando se trata de jogos, defino as regras, disponho as peças e decido quando jogar. E, hoje, digo não.
Adeline? Adeline? Adeline?
Para lá da orla do bosque, as luzes da aldeia estão agora mais próximas. Há archotes no campo. Vêm atrás dela.
A sombra olha por cima do ombro.
— Vai para casa, Adeline. Regressa à tua vidinha.
— Porquê? — suplica, agarrando-o pelo braço. — Porque me recusas?
Passa a mão pelo rosto dela, um gesto suave e caloroso como fumo de lareira.
— Não faço caridade. Pedes demasiado. Quantos anos até estares saciada? Quantos até receber o que me é devido? Não, faço acordos com desfechos, e o teu não tem fim.
Adeline regressará a este momento mil vezes.
Frustrada, arrependida, pesarosa, em autocomiseração e numa raiva desenfreada.
Acabará por enfrentar o facto de se ter amaldiçoado antes de ele próprio o fazer.
Mas, naquele instante, só consegue ver a luz bruxuleante dos archotes de Villon e os olhos verdes do estranho que outrora sonhou amar e a oportunidade de fugir a escapar-lhe com o seu toque.
— Queres um desfecho — diz ela. — Podes ficar com a minha vida quando eu estiver farta dela. Podes ficar com a minha alma quando eu já não a quiser.
A sombra inclina a cabeça, subitamente intrigada.
Um sorriso — exatamente como o sorriso dos seus desenhos, de soslaio e cheio de segredos — percorre-lhe a boca. E então puxa-a para si. O abraço de um amante. É fumo e pele, ar e osso, e, quando a sua boca se encosta à dela, a primeira coisa que saboreia é a transformação das estações, o momento em que o crepúsculo dá lugar à noite. E então o seu beijo torna-se mais profundo. Os dentes roçam-lhe pelo lábio inferior, e há dor nesse prazer, seguido do sabor a cobre de sangue na língua.
— Feito — sussurra o deus contra os seus lábios.
E então o mundo ensombrece, e ela está a cair.