Paris, França

9 de agosto de 1714

cap3

O calor abate-se sobre Paris como um telhado baixo.

O ar de agosto é pesado, tornando-se ainda mais pesado com extensão de edifícios de pedra, o cheiro a comida a apodrecer e a dejetos humanos, o número total de corpos a viverem lado a lado.

Dentro de cento e cinquenta anos, Haussman deixará a sua marca na cidade, erguerá uma fachada uniforme e pintará os edifícios com a mesma paleta clara, deixando um legado de arte, de equilíbrio e de beleza.

É o tipo de Paris com que Addie sonhou e que certamente viverá para ver.

Mas, neste momento, os pobres amontoam-se em pilhas esfarrapadas enquanto nobres vestidos de seda se passeiam pelos jardins. As ruas estão cheias de carroças puxadas por cavalos, as praças apinhadas de pessoas, e, aqui e ali, pináculos perfuram o tecido de lã que cobre a cidade. A opulência desfila pelas avenidas e ergue-se com as cúspides de cada palácio e edifício, ao mesmo tempo que os casebres se aglomeram em ruas estreitas, com as pedras manchadas de preto da fuligem e do fumo.

Addie está demasiado assombrada para reparar nisso.

Contorna a orla de uma praça, vendo os homens desmontar bancas de mercado e pontapear as crianças andrajosas que se baixam e ziguezagueiam entre eles, à procura de restos. Enquanto caminha, a mão desliza para dentro do bolso debruado da saia, para lá do passarinho de madeira, até às quatro moedas de cobre que encontrou no forro do casaco roubado. Quatro moedas, para arranjar uma vida.

Está a fazer-se tarde, e ameaça chover, e tem de descobrir um sítio para dormir. Deveria ser fácil — ao que parece, existe uma estalagem em cada rua —, mas, mal passa da entrada da primeira, quando é rechaçada.

— Isto não é nenhum bordel — censura o dono, lançando um olhar fulminante.

— E eu não sou nenhuma meretriz — responde, mas ele limita-se a escarnecer e estala os dedos, como se estivesse a eliminar algum resíduo indesejado.

A segunda casa está cheia, a terceira é demasiado cara, a quarta só recebe homens. Quando entra pela porta da quinta, o sol já se pôs, e o seu ânimo afundou-se com ele, e já está preparada para a censura, para uma desculpa quanto ao motivo de não ser digna de permanecer portas adentro.

Mas não é recusada.

Uma mulher mais velha recebe-a à entrada, magra e dura, com um nariz adunco e os olhos pequenos e acutilantes de um falcão. Lança uma olhadela a Addie e condu-la pelo átrio. Os quartos são pequenos e lúgubres, mas têm paredes e portas, uma janela e uma cama.

— Pagamento de uma semana — exige a mulher —, adiantado.

O coração de Addie afunda-se. Uma semana parece um período de tempo impossível, quando as memórias só parecem durar um instante, uma hora, um dia.

— Então? — irrompe a mulher.

A mão de Addie fecha-se sobre as moedas de cobre. Tem o cuidado de retirar apenas três, e a mulher surripia-as rapidamente como um corvo a roubar côdeas de pão. Desaparecem dentro da bolsa que traz à cintura.

— Pode passar-me um recibo? — pergunta Addie. — Uma prova, para mostrar que paguei?

A mulher escarnece, claramente insultada.

— O meu negócio é honesto.

— Com certeza que sim — gagueja Addie —, mas tem tantos quartos para cuidar. Seria fácil esquecer aqueles que...

— Tenho esta estalagem há trinta e quatro anos — interrompe — e nunca me esqueci de uma cara.

É uma piada cruel, pensa Addie, enquanto a mulher vira costas e se afasta apressadamente, deixando-a com o seu quarto arrendado.

Pagou por uma semana, mas sabe que terá sorte se gozar de apenas um dia. Sabe que de manhã será expulsa, ficando a dona três coroas mais rica, ao passo que ela irá para a rua.

Uma pequena chave de bronze descansa na fechadura, e Addie roda-a, saboreia o som sólido, como uma pedra que se deixou cair num regato. Não tem pertences para arrumar, nenhuma muda de roupa; despe o casaco de viagem, retira o passarinho de madeira da algibeira da saia e pousa-o no parapeito da janela. Um talismã contra a escuridão.

Olha para fora, esperando ver os grandiosos telhados de Paris e os seus edifícios deslumbrantes, os pináculos elevados ou pelo menos o Sena. Mas afastou-se demasiado do rio, e a janelinha dá apenas para uma viela estreita e para a parede de pedra de outra casa que poderia estar em qualquer lugar.

O pai de Addie contou-lhe muitas histórias de Paris. Fez a cidade parecer um lugar glamoroso e opulento, cheio de magia e de sonhos à espera de serem revelados. Agora pergunta-se se a chegou a ver ou se a cidade não passava de um nome, um cenário fácil para príncipes e cavaleiros, aventureiros e rainhas.

Essas histórias esvaíram-se juntas, na sua mente, tornaram-se mais uma paleta do que um quadro, um tom. Talvez a cidade fosse menos esplendida. Talvez houvesse sombras misturadas com a luz.

Está uma noite cinzenta e húmida, os sons de mercadores e de carroças puxadas por cavalos abafados pela chuva suave que começa a cair, e Addie enrola-se na cama estreita e tenta dormir.

Pensou que teria pelo menos a noite, mas a chuva nem sequer parou, a escuridão mal se instalou, quando a mulher bate à porta e uma chave é inserida na fechadura e o quarto minúsculo fica mergulhado em barulho. Mãos ásperas arrastam Addie da cama. Um homem agarra-a pelo braço enquanto uma mulher rosna e diz:

— Quem te deixou entrar?

Addie debate-se para dissipar os restos de sono.

— A senhora — diz, desejando que a mulher tivesse engolido o seu orgulho e lhe tivesse dado um recibo, mas Addie só tem a chave e, antes de a poder mostrar, a mão ossuda da mulher atinge-a com força na face.

— Não mintas, rapariga — diz, aspirando o ar pelos dentes. — Isto não é um lar da beneficência.

— Eu paguei — disse Addie, levando a palma da mão em concha à face, mas não vale a pena. As três moedas na bolsa que a mulher traz à cintura não servirão de prova. — Falámos, as duas. Disse que tinha esta estalagem há trinta e quatro anos...

Por um instante, a incerteza lampeja pelo rosto da mulher. Mas é demasiado rápida, demasiado fugidia. Addie, um dia, aprenderá a pedir segredos, pormenores que apenas um amigo ou alguém íntimo saberia, mas nem assim isso lhe ganhará sempre o seu favor. Chamar-lhe-ão trapaceira, bruxa, espírita e louca. Será expulsa por várias razões diferentes, quando, na verdade, há apenas uma. Não se lembram.

— Fora — ordena a mulher, e Addie mal tem tempo de pegar no casaco antes de ser obrigada a sair do quarto. Enquanto percorre o corredor, lembra-se do passarinho ainda pousado no parapeito e tenta soltar-se, para o ir buscar, mas a mão do homem é firme.

É atirada para a rua, a tremer da violência súbita de toda a cena, tendo como único consolo o facto de, antes de a porta se ter fechado, o passarinho de madeira também ter sido arremessado para fora. Aterra no empedrado, junto a ela, com uma asa partida pela força.

No entanto, desta vez, a ave não recupera o estado original.

Fica ali, ao seu lado, com um pedaço de madeira lascado como uma pena caída, enquanto a mulher volta a desaparecer dentro de casa. E Addie sufoca o terrível impulso de rir, não do humor, mas da loucura, do absurdo, do desfecho inevitável da sua noite.

É muito tarde, ou muito cedo, com a cidade aquietada e o céu de um cinzento enevoado e escorregadio da chuva, mas sabe que a escuridão está à espreita quando retira a peça e a enfia no bolso com a última moeda de cobre. Levanta-se, puxando o casaco para lhe envolver bem os ombros, com a bainha das saias já húmida.

Exausta, Addie avança pela rua estreita e abriga-se por baixo da estrutura de madeira de um toldo, afundando-se na saliência de pedra entre edifícios para esperar pela madrugada.

Entra num sono quase febril e sente a mão da mãe contra a testa, a subida e descida suave da sua voz enquanto canta baixinho, ajeitando um cobertor sobre os ombros de Addie. E sabe que deve estar doente; foi a única vez que viu a mãe ser carinhosa. Addie fica ali, a agarrar-se com pressa à memória, mesmo enquanto esta se esbate, com o entrechocar duro de cascos e o estirão das carroças de madeira a apossarem-se da canção murmurada pela mãe, enterrando-a, nota a nota, até sair daquela névoa.

Tem as saias rígidas da sujidade, manchadas e engelhadas do sono breve, mas irrequieto. A chuva parou, mas a cidade parece apenas tão suja como quando ali chegou.

Na sua aldeia, um bom aguaceiro lavaria o mundo, deixá-lo-ia límpido e renovado.

Mas parece que nada pode limpar a sujidade das ruas de Paris.

No máximo, esta chuvada não fez mais do que piorar as coisas, deixando o mundo molhado e apagado, os charcos castanhos de lama e imundície.

E então, por entre a porcaria, sente o cheiro de algo doce.

Segue o aroma até encontrar um mercado em pleno funcionamento, com os vendedores a gritarem preços de mesas e bancas, as galinhas ainda a cacarejarem enquanto são arrastadas da parte de trás das carroças.

Addie está esfomeada, nem sequer se consegue lembrar da última vez que comeu. O vestido não lhe serve, mas nunca serviu — roubou-o de um estendal dois dias antes de chegar a Paris, farta daquele que usara no dia do seu casamento. Ainda assim, agora também não lhe está mais largo, apesar dos dias sem comer e beber. Calcula que não precise de comer, que não morrerá de fome — mas não vale a pena dizê-lo ao estômago em contorção, às pernas a tremer.

Varre a praça azafamada com os olhos, toca na última moeda que tem no bolso, relutante em gastá-la. Talvez não precise de o fazer. Com tantas pessoas no mercado, seria fácil roubar aquilo de que precisa. Ou pelo menos é o que pensa, mas os vendedores de Paris são tão astutos como os seus ladrões e têm o dobro do cuidado com cada produto. Addie aprende-o da forma mais difícil; passar-se-ão semanas até conseguir surripiar uma maçã, mais ainda a dominar essa arte sem se denunciar minimamente.

Hoje, faz um esforço desastrado, tenta levar um pão com sementes da carroça de um padeiro e é recompensada com uma mão carnuda presa à volta do pulso.

— Ladra!

Tem um vislumbre de homens armados a atravessarem a multidão e é acometida pelo medo de ir parar a uma cela ou para o cepo. Por enquanto, é de carne e osso, ainda não aprendeu a abrir fechaduras ou a seduzir homens para escapar a acusações, a soltar-se de grilhetas com a mesma facilidade com que o seu rosto desaparece das suas mentes.

Por isso apressa-se a implorar, entregando a sua última moeda.

Ele tira-lha, faz sinal aos homens para se irem embora, enquanto a moeda desaparece dentro da sua bolsa. Demasiado por um pão, mas não lhe dá mais nada em troca. É a paga, diz, por tentar roubar.

— Tens sorte de não te ficar com os dedos — rosna, empurrando-a.

E assim está Addie em Paris, com um pedaço de pão e um passarinho partido, nada mais.

Apressa-se a sair do mercado, abrandando quando chega à margem do Sena. E então, ofegante, atira-se ao pão, tenta fazê-lo durar, mas, em instantes, despareceu, como uma gota de água num poço vazio, com a fome mal saciada.

Pensa em Estele.

No ano anterior, a idosa começou a sentir um zunido nos ouvidos.

Está sempre presente, dizia, dia e noite, e, quando Addie lhe perguntou como conseguia suportar o ruído constante, a velha encolheu os ombros.

— Com o tempo — disse —, é possível habituares-te a qualquer coisa.

Mas Addie acha que nunca se conseguirá habituar àquilo.

Olha para os barcos no rio, para a catedral a erguer-se da cortina de nevoeiro. Vislumbres de beleza que brilham como pedras preciosas contra a disposição sombria dos blocos, demasiado distante e regular para ser real.

Fica ali até se aperceber de que está à espera. À espera de que alguém a ajude. De que alguém apareça e resolva a trapalhada em que se encontra. Mas ninguém virá. Ninguém se lembra, e, se se limitar a esperar, irá esperar para sempre.

Por isso caminha.

E, enquanto caminha, estuda Paris. Toma nota desta casa, daquela rua, de pontes e de cavalos a puxarem carruagens e dos portões de um jardim. Avista rosas por trás do muro, beleza nas fendas.

E demorará anos a aprender os truques desta cidade. A memorizar o mecanismo de arrondissements, passo a passo, a mapear a rota de cada vendedor, loja e rua. A estudar os matizes dos bairros e a descobrir os baluartes e as fissuras, a aprender a sobreviver e a prosperar, nos espaços entre as vidas de outras pessoas, a criar um lugar para si entre elas.

Addie acabará por dominar Paris.

Tornar-se-á uma ladra perfeita, impossível de apanhar e rápida.

Esgueirar-se-á por casas requintadas como um fantasma de fili- grana, deslocar-se-á por entre salões, roubará pelos telhados, de noite, e beberá vinho surripiado sob o céu aberto.

Sorrirá e rirá perante cada vitória roubada.

Fá-lo-á — mas hoje não.

Hoje está simplesmente a tentar distrair-se da sua fome devoradora e do seu medo paralisante.

Hoje está sozinha numa cidade estranha, sem dinheiro e sem passado e sem futuro.

Alguém despeja um balde da janela de um segundo andar, sem avisar, e uma água castanha e espessa salpica o empedrado, aos seus pés. Addie dá um salto para trás, tentando evitar o pior dos salpicos, para ir contra duas mulheres bem-vestidas, que olham para ela como se fosse uma nódoa.

Addie recua, descendo um degrau próximo, mas, mais momentos depois, uma mulher sai e agita uma vassoura, acusa-a de lhe tentar roubar os clientes.

— Vai para as docas, se queres vender os teus produtos — resmoneia.

E, de início, Addie não sabe ao que a mulher se refere. Tem os bolsos vazios. Não tem nada para vender. Mas, quando o diz, a mulher lança-lhe um olhar e diz:

— Tens um corpo, não tens?

Cora quando compreende.

— Não sou uma meretriz — diz, e a mulher exibe um sorriso escarninho e frio.

— Ora que belo orgulho — diz, enquanto Addie se levanta e vira costas para se ir embora. — Pois bem — grita a mulher atrás dela, como um corvo —, esse orgulho não te vai encher a barriga.

Addie puxa o casaco para mais perto dos ombros e obriga as pernas a avançarem pela rua fora, sentindo-se como se estivessem prestes a vergar, quando vê a porta de uma igreja aberta. Não as torres grandiosas e imponentes de Notre Dame, mas um edifício pequeno de pedra, comprimido entre edifícios, numa rua estreita.

Nunca foi religiosa, pelo menos não como os pais. Sempre se sentiu presa entre os deuses antigos e os novos — mas algo diabólico no bosque a deixou a pensar. Por cada sombra, deve haver luz. Talvez a escuridão tenha um oposto, e Addie possa equilibrar o seu desejo. Estele iria rir-se dela, mas um deus limitou-se a aplicar-lhe uma maldição, por isso a velha não a poderia censurar por procurar proteção junto de outro.

A porta pesada abre-se ruidosamente, e entra devagar, pestanejando sob a escuridão inesperada até os olhos se habituarem, e vê os painéis de vitral.

Addie inspira, acometida pela beleza tranquila do espaço, pelo teto abobadado, pela luz vermelha e azul e verde a pintar formas nas paredes. É uma espécie de arte, pensa, começando a avançar, quando um homem vai ao seu encontro.

Abre os braços, mas não há sinal de boas-vindas no gesto.

O padre está ali para lhe impedir a passagem. Abana a cabeça à sua chegada.

— Desculpe — diz, convencendo-a a voltar a percorrer o corredor, como uma ave perdida. — Não temos lugar. Estamos lotados.

Então volta a sair até aos degraus da igreja, com o roçar pesado da tranqueta a ser de novo puxada, e algures na mente de Addie, Estele começa a rir.

— Estás a ver — diz ela, no seu jeito áspero —, só os deuses novos têm fechaduras.

Addie não chega a decidir ir até às docas.

Os pés escolhem por ela, levam-na ao longo do Sena quando o sol se afunda sobre o rio, fazem-na descer os degraus, com as botas roubadas a baterem contra as tábuas de madeira.

É mais escuro ali, à sombra das embarcações, uma paisagem de caixas e barricas, cordas e barcos a baloiçar. Há olhos a seguirem-na. Os homens espreitam por cima do seu trabalho, e as mulheres olham em frente, instalando-se como gatos na sombra. Têm um ar doente, a cor demasiado acentuada, as bocas pintadas num golpe violento de vermelho. Os vestidos esfarrapados e sujos, ainda assim melhores do que o de Addie.

Não decidiu o que vai fazer, nem mesmo quando faz deslizar o casaco dos ombros. Nem quando um homem a interpela, com uma mão já a apalpar, como se estivesse a avaliar fruta.

— Quanto? — pergunta numa voz abrupta.

E ela não faz ideia de quanto vale um corpo ou se está disposta a vendê-lo.

Não dando resposta, as mãos dele tornam-se mais brutas, o toque mais firme.

— Dez moedas — diz ela, e o homem solta um riso áspero.

— És o quê? Uma princesa.

— Não — responde ela —, sou virgem.

Algumas noites, na aldeia, quando Addie sonhava com prazer, em que invocava o estranho ao seu lado, na escuridão, sentia os seus lábios contra os seios, imaginava que a mão dela era dele enquanto a fazia deslizar por entre as pernas.

— Meu amor — dizia o estranho, levando-a para a cama, com os caracóis negros a caírem sobre uns olhos verdes como pedras preciosas.

— Meu amor — sussurrava ela enquanto ele a penetrava, com o corpo a abrir-se em torno da sua força sólida. Ele investia mais profundamente, e ela arquejava, mordendo a mão para evitar suspirar demasiado alto. A mãe diria que o prazer de uma mulher é um pecado mortal, mas nesses momentos Addie não queria saber. Nesses momentos, havia apenas o desejo e a vontade e o estranho, a murmurar contra a sua pele à medida que a tensão aprofundava, com o calor a crescer como uma tempestade no recetáculo das suas ancas. E depois, na sua imaginação, Adeline puxava o corpo dele contra o seu, arrastando-o para mais fundo, para mais fundo, até que a tempestade se abatia, e um trovão ribombava através dela.

Mas não era nada como aquilo.

Não há poesia nos grunhidos daquele homem desconhecido, não há melodia ou harmonia, exceto o som regular da investida enquanto se arremessa contra ela. Nenhum prazer ondulante, apenas pressão e dor, a compressão forçada de algo dentro de outra coisa, e Addie olha para cima, para o céu noturno, para não ter de ver o seu corpo mover-se, e sente a escuridão devolver-lhe o olhar.

Então, os bosques estão ali de novo, e a sua boca na dela, o sangue a gorgolejar nos seus lábios enquanto sussurra.

— Feito.

O homem termina com uma investida final e deixa-se cair sobre ela, de chumbo, e não pode ser isto, não pode ser esta a vida pela qual Addie trocou tudo, não pode ser este o futuro que apagou o seu passado. O pânico apodera-se do seu peito, mas este estranho não parece importar-se ou sequer reparar. Limita-se a endireitar-se e a lançar uma mão-cheia de moedas para o empedrado, aos pés dela. Afasta-se, e Addie põe-se de gatas para apanhar a recompensa e, de seguida, esvazia o estômago no Sena.

Quando lhe perguntam sobre as suas primeiras memórias de Paris, esses terríveis meses, dirá que foi uma fase de mágoa envolta em névoa. Dirá que não se consegue lembrar.

Mas claro que Addie se lembra.

Lembra-se do fedor a carne podre e a lixo, das águas salobras do Sena, das pessoas nas docas. Lembra-se de momentos de bondade apagados por uma porta ou por uma madrugada, lembra-se de ter saudades de casa, com o seu pão fresco e a lareira quente, da melodia silenciosa da família e do ritmo forte de Estele. Da vida que tinha, daquela de que abdicou pela vida que pensou desejar, roubada e substituída por esta.

E, no entanto, também se lembra de se maravilhar com a cidade, com a forma como a luz varria as manhãs e os fins de tarde, com a grandiosidade esculpida entre os blocos em bruto; como, apesar da sujidade e da mágoa e da deceção, Paris estava cheia de surpresas. Beleza vislumbrada por entre as fendas.

Addie lembra-se da breve pausa desse primeiro outono, do movimento brilhante das folhas pelos passeios, de passarem de verde a dourado como a montra de uma joalharia, antes do mergulho rápido e abrupto no inverno.

Lembra-se do frio a morder-lhe os dedos das mãos e dos pés antes de os engolir inteiros. Do frio e da fome. Claro que havia meses improdutivos em Villon, quando as vagas de frio roubavam o resto de uma colheita ou uma geada tardia arruinava uma produção nova — mas este tipo de fome era diferente. Percorria-a interiormente, arranhava-lhe as costelas com as unhas. Exauria-a, e, embora Addie saiba que não a pode matar, esse conhecimento não contribui para anestesiar a dor premente, o medo. Não perdeu um grama de carne, mas o estômago contorce-se, devorando-se a si mesmo, e, tal como os pés se recusam a criar calo, os seus nervos também se recusam a aprender. Não há adormecimento, nenhuma da facilidade que decorre do hábito. Esta dor é sempre nova, frágil e intensa, uma sensação tão aguda como a sua memória.

E também se lembra do pior.

Lembra-se do frio súbito, do gelo brutal que se abateu sobre a cidade e da vaga de enfermidades que soprou atrás dele como uma brisa de outono tardio, a espalhar pilhas de mortos e de folhas moribundas. O som e a visão das carroças a chocalharem ao passar, transportando uma carga sinistra. Addie a virar o rosto, a tentar não olhar para as formas ossudas amontoadas descuidadamente na parte de trás. Puxa o casaco roubado para mais perto do corpo ao percorrer a rua aos tropeções e sonha com o calor do verão, enquanto o frio lhe trepa pelos ossos.

Acha que nunca mais vai sentir calor. Foi mais duas vezes até às docas, mas o frio obrigou os clientes a abrigarem-se no calor dos bordéis, e, à sua volta, a vaga de frio tornou Paris cruel. Os ricos refugiam-se dentro de suas casas, agarram-se ao lume das suas lareiras, enquanto lá fora, nas ruas, os pobres são dilacerados pelo inverno. Não há lugar onde se possam esconder dele — ou, então, os únicos lugares que existem já foram ocupados.

Nesse primeiro ano, Addie está demasiado cansada para lutar por espaço.

Demasiado cansada para procurar abrigo.

É açoitada por mais uma rajada de vento, e Addie dobra-se sobre si mesma, para se proteger dela, de olhos enevoados. Arrasta-se para o lado, para uma rua estreita, só para fugir à violência do vento, e a tranquilidade súbita, a paz sem brisa da viela é como uma duna, suave e quente. Os joelhos vergam. Aninha-se num canto contra uma série de degraus e espanta-se silenciosamente, sonolentamente, com a sua própria transformação. A sua respiração enche o ar de névoa, à sua frente, com cada expiração a turvar o mundo exterior até que a cidade cinzenta se esbate em branco, branco, branco. Estranho como agora parece demorar-se, um pouco mais a cada respiração, como se estivesse a toldar uma superfície de vidro. Pergunta-se quantas mais expirações serão necessárias para esconder o mundo. Para o apagar, como ela.

Talvez seja a sua visão a turvar-se.

Não quer saber.

Está cansada.

Está muito cansada.

Addie não consegue permanecer acordada, e porque haveria de tentar?

O sono é uma grande bênção.

Talvez acorde quando for de novo primavera, como a princesa numa das histórias do pai, e dê consigo deitada na margem relvada junto ao Sarthe, com Estele a dar-lhe toquezinhos com um sapato usado e a fazer troça dela por estar de novo a sonhar.

É a morte.

Pelo menos, por um instante, Addie pensa que deve ser a morte.

O mundo é negro, o frio incapaz de reter o fedor da putrefação, e não se consegue mexer. Mas, depois, lembra-se de que não pode morrer. Há o pulsar teimoso do seu coração, a debater-se para continuar a bombear, e os seus pulmões obstinados, a debaterem-se para se continuar a encher, e Addie apercebe-se de que os seus membros não estão de todo sem vida, mas tornaram-se pesados, de todos os lados. Sacas pesadas, por cima, em baixo, e o pânico acomete-a, mas a mente continua vagarosa de sono. Contorce-se, e as sacas deslocam-se um pouco, em cima dela. A escuridão abre-se, e uma fenda de luz cinzenta abre passagem.

Addie contorce-se e meneia-se até libertar um braço e depois o outro, aproximando-os do corpo. Começa a empurrar por entre as sacas e só então sente ossos por baixo do tecido, só então a sua mão toca numa pele de cera, só então os dedos se enredam nos fios do cabelo de outra pessoa, e agora está acordada, bem acordada, a trepar, a furar, desesperada por se libertar.

Sobe usando as unhas como garras, para fora, com as mãos espalhadas pelo monte de ossos das costas de um homem morto. Mesmo ao lado, olhos leitosos fitam-na. Um maxilar permanece aberto, e Addie salta atabalhoadamente da carroça e cai no chão, aos arrancos, a soluçar, viva.

Um som horrível solta-se do seu peito, uma tosse aguda, algo preso entre um soluço e um riso.

Depois, um grito, e precisa de um momento para se aperceber de que não sai dos seus próprios lábios gretados. Uma mulher andrajosa está de pé, do outro lado da rua, com as mãos na boca, de horror, e Addie não a pode culpar por isso.

Que choque deve ser ver um cadáver arrastar-se para fora da carroça.

A mulher persigna-se, e Addie grita numa voz rouca e quebrada:

— Não estou morta. — Mas a mulher limita-se a fugir dali, e Addie dirige a sua fúria contra a carroça. — Não estou morta! — volta a dizer, dando um pontapé na roda de madeira.

— Ei! — grita um homem, segurando nas pernas de um corpo frágil e retorcido.

— Para trás — grita um segundo, agarrando-o pelos ombros.

Claro que não se lembram de a ter metido lá dentro. Addie recua enquanto balançam o cadáver mais recente, atirando-o para dentro da carroça. Aterra com um estrondo repugnante em cima dos outros, e o estômago dela contorce-se ao pensar que esteve entre eles, ainda que por pouco tempo.

Um chicote estala, os cavalos precipitam-se para diante, as rodas giram no empedrado, e só quando a carroça desapareceu de vista, só quando Addie leva as mãos trementes aos bolsos do casaco perdido, se apercebe de que estão vazios.

O passarinho de madeira desapareceu.

O que lhe restou da sua vida passada foi arrastado com os mortos.

Durante meses, continuará à procura da peça, levando a mão ao bolso como poderia ter feito, um gesto teimoso, um movimento nascido de um hábito enraizado. Não parece conseguir fazer com que os dedos se lembrem de que já lá não está, não parece conseguir lembrá-lo ao coração, que estremece um pouco sempre que descobre o bolso vazio. Mas, ali, florescendo no meio da mágoa, encontra-se um alívio terrível. Todos os momentos, desde que abandonou Villon, receou a perda da sua última recordação.

Agora que desapareceu, há uma alegria culpada contida entre a mágoa.

O último e frágil fio da sua antiga vida quebrou-se, e Addie ficou livre, de uma forma absoluta e verdadeira e violenta.