Nova Iorque

13 de março de 2014

cap6

Addie acorda com alguém a tocar-lhe na face.

O gesto é tão suave que primeiro pensa que deve estar a sonhar, mas depois abre os olhos e vê as luzes feéricas no telhado, vê Sam acocorada ao lado da espreguiçadeira, com uma ruga de preocupação ao longo da testa. O cabelo foi solto, uma juba de caracóis louros e selvagens em volta do rosto.

— Ei, Bela Adormecida — diz, enfiando um cigarro de volta ao maço, por acender.

Addie estremece e senta-se, puxando o casaco para mais perto do corpo. Está uma manhã fria e enevoada, com o céu como uma extensão de branco sem sol. Não queria dormir tanto tempo, até tão tarde. Não que tenha de estar em algum lado, mas pareceu-lhe certamente melhor ideia na noite anterior, quando ainda conseguia sentir os dedos.

A Odisseia caiu-lhe do colo. Está tombada no chão, virada ao contrário, com a capa escorregadia do orvalho da manhã. Estende o braço para apanhar o livro, faz os possíveis para limpar a capa, por alisar as páginas que ficaram dobradas ou sujas.

— Está um gelo cá fora — diz Sam, puxando Addie para ela se levantar. — Anda.

Sam fala sempre assim, afirmações em vez de perguntas, imperativos que parecem convites. Empurra Addie em direção à porta do terraço, e Addie tem demasiado frio para protestar, limita-se a seguir Sam escadas abaixo, até ao seu apartamento, fingindo não saber o caminho.

A porta abre-se de par em par para a loucura.

A entrada, o quarto, a cozinha estão todos cheios de arte e de artefactos. Apenas a sala — na parte de trás do apartamento — se apresenta espaçosa e despojada. Ali não há sofá ou mesas, apenas duas janelas grandes, um cavalete e um banco.

— É aqui que trabalho — disse ela, quando levou Addie pela primeira vez lá a casa.

E Addie respondeu:

— Vê-se.

Enfiou tudo o que possui em três quartos do espaço, só para preservar a paz e a tranquilidade do quarto. A amiga ofereceu-lhe um espaço num estúdio por um preço incrível, mas parecia-lhe frio, disse, e precisa de calor para pintar.

— Desculpa — diz Sam, contornando uma tela, em cima de uma caixa. — Agora está um bocado atafulhado.

Addie nunca viu o espaço de outra forma. Adorava ver aquilo em que Sam está a trabalhar, o que lhe deixou a tinta branca por baixo das unhas e levou à mancha rosa mesmo abaixo do maxilar. Mas, em vez disso, Addie obriga-se a seguir a rapariga, contornando, passando por cima e atravessando a trapalhada da cozinha. Sam irrita-se com a máquina de café, e os olhos de Addie varrem o espaço, assinalando as diferenças. Uma jarra roxa nova. Uma pilha de livros meio lidos, um postal de Itália. A coleção de canecas, algumas delas florescendo em pincéis limpos, e sempre a aumentar.

— Pintas — diz, fazendo um sinal com a cabeça para a pilha de telas encostadas ao fogão.

— Sim — diz Sam, com um sorriso a nascer-lhe no rosto. — Principalmente quadros abstratos. Arte sem sentido, como o meu amigo Jack lhe chama. Mas não é propriamente sem sentido, é apenas... outras pessoas pintam o que veem. Eu pinto o que sinto. Talvez seja confuso, trocar um sentido por outro, mas existe beleza nessa transmutação.

Sam serve o café em duas canecas, uma delas verde, rasa e larga como uma taça, a outra alta e azul.

— Cães ou gatos? — pergunta, em vez de «verde ou azul», apesar de não haver cães nem gatos em nenhuma delas, e Addie diz «gatos». Sam entrega-lhe a caneca azul alta sem qualquer explicação.

Os dedos de ambas afloram e estão mais perto do que se tinha apercebido, suficientemente perto para Addie ver as manchas prateadas no azul dos olhos de Sam, suficientemente perto para Sam contar as sardas no seu rosto.

— Tens estrelas — diz.

Déjà vu, pensa de novo Addie. Obriga-se a afastar-se, a ir-se embora, a poupar-se à insanidade de repetição e do reflexo. Em vez disso, Addie fecha as mãos sobre a caneca e dá um gole prolongado. A sua primeira nota é forte e amarga, mas a segunda é intensa e doce.

Suspira de prazer, e Sam exibe o seu sorriso cintilante.

— É bom, não é? — diz. — O segredo é...

Pepitas de cacau, pensa Addie.

— Pepitas de cacau — diz Sam, sorvendo longamente da sua caneca, que Addie agora está convencida de que, na verdade, é uma taça. Inclina-se sobre o balcão, com a cabeça inclinada sobre o café como se fosse uma oferenda.

— Pareces uma flor murcha — brinca Addie.

Sam pestaneja e levanta a caneca.

— Rega-me e vê-me florescer.

Addie nunca vira Sam assim, de manhã. Claro que acordou ao seu lado, mas esses dias estavam marcados pelos pedidos de desculpa, pelo mal-estar. O dia depois da ausência da memória. Nunca é divertido permanecer nesses momentos. Mas agora. Isto é novo. Uma memória criada pela primeira vez.

Sam abana a cabeça.

— Desculpa. Não te perguntei como te chamavas.

É uma das coisas de que gosta em Sam, uma das primeiras coisas em que reparou. Sam vive e ama de coração aberto, partilha o tipo de afeto que a maior parte das pessoas reserva apenas para as pessoas mais próximas das suas vidas. Os motivos vêm depois das necessidades. Acolheu-a, aqueceu-a, antes de pensar em perguntar-lhe o nome.

— Madalena — diz Addie, porque é o mais próximo que consegue chegar do seu nome.

— Humm — diz Sam —, o meu bolo preferido. Eu sou a Sam. — Olá, Sam — diz ela, como se saboreasse o nome pela primeira vez.

— Então — diz a outra rapariga, como se a pergunta lhe tivesse acabado de ocorrer. — O que estavas a fazer no terraço?

— Oh — diz Addie com um risinho autodepreciativo. — Não queria ter adormecido ali. Nem sequer me lembro de me ter sentado na espreguiçadeira. Devia estar mais cansada do que pensava. Acabei de me mudar, para o 2F, e não me parece que esteja habituada a toda aquela barulheira. Não conseguia dormir, acabei por desistir e subi para apanhar ar fresco e ver o sol nascer sobre a cidade.

A mentira desenrola-se muito facilmente, como acontece com a prática.

— Somos vizinhas! — diz Sam. — Sabes — acrescenta, pousando a caneca vazia —, gostava de te pintar um dia destes.

E Addie controla o impulso de dizer Já o fizeste.

— Quero dizer, não se iria parecer contigo — continua Sam, dirigindo-se para a entrada. Addie segue-a, vê-a parar e passa os dedos por uma pilha de telas, passando-as por entre as mãos como se fossem álbuns numa loja de discos em vinil.

— Tenho uma série em que estou a trabalhar — diz —, de pessoas como céus.

Uma dor aguda ressoa pelo peito de Addie, e agora situa-se seis meses antes, e estão deitadas na cama. Os dedos de Sam percorrem as sardas no seu rosto, um toque leve e firme como um pincel.

— Sabes — dissera —, dizem que as pessoas são como flocos de neve, cada uma delas única, mas acho que são mais como céus. Alguns são enevoados, outros tempestuosos, outros ainda são límpidos, mas não há dois realmente iguais.

— E que tipo de céu sou eu? — perguntara então Addie, e Sam olhara para ela, sem pestanejar, e depois iluminara-se. Fora o tipo de iluminação que vira em centenas de artistas, centenas de vezes, o brilho da inspiração, como se alguém tivesse ligado uma luz sob a sua pele. E Sam animou-se subitamente, presa à vida, saltou da cama, levando Addie consigo para a sala.

Uma hora a posar no soalho duro, envolvida apenas por um cobertor, a ouvir o rumor e o raspar enquanto Sam misturava a tinta, o silvo do pincel sobre a tela, e depois ficou pronto. E, quando Addie deu a volta ao cavalete para olhar para o quadro, o que viu foi o céu noturno. Não o céu noturno como qualquer outra pessoa o teria pintado. Manchas bem marcadas de carvão e negro e toques finos de um cinzento médio, com a tinta tão densa que se erguia da tela. E, espalhada pela superfície, uma mão-cheia de pontos prateados. Pareciam quase acidentais, como salpicos de um pincel, mas eram exatamente sete, pequenos e distantes e bem afastados, como estrelas. A voz de Sam chama-a de volta à cozinha.

— Gostava de te mostrar a minha peça preferida — diz agora. — Foi a primeira da série. Uma Noite Esquecida. Vendi-a a um colecionador de Lower East Side. Foi a minha primeira grande venda, pagou-me a renda por três meses, deu-me acesso a uma galeria. Ainda assim, é difícil libertarmo-nos da arte. Sei que tenho de o fazer (a história do artista esfaimado é um pouco exagerada), mas sinto falta dela todos os dias.

A sua voz assume uma profundidade mais suave.

— O mais estranho é que cada uma das peças dessa série tem alguém como modelo. Amigos, pessoas deste edifício, estranhos com que me cruzo na rua. Lembro-me de todos eles. Mas não consigo de todo lembrar-me dela.

Addie engole em seco.

— Achas que era uma mulher?

— Sim. Acho. Tinha uma energia...

— Talvez tenhas sonhado com ela.

— Talvez — diz Sam. — Nunca fui boa a lembrar-me de sonhos. Mas, sabes... — interrompe-se, olhando para Addie como naquela noite, na cama, em que começara a resplandecer. — Fazes-me lembrar essa peça. — Põe-lhe uma mão no rosto. — Credo, isto parece a pior frase de engate do mundo. Desculpa. Vou tomar um duche.

— Tenho de ir andando — diz Addie. — Obrigada pelo café.

Sam morde o lábio.

— Tens mesmo de ir?

Não, não tem. Addie sabe que poderia seguir Sam até ao duche, enrolar-se numa toalha e sentar-se no chão da sala e ver que tipo de quadro Sam pintaria nesse dia, inspirando-se nela. Podia. Podia. Podia cair naquele momento para sempre, mas sabe que não há futuro no mesmo. Apenas um número infinito de presentes, e já viveu com Sam todos os que consegue aguentar.

— Desculpa — diz, com o peito a doer, mas Sam limita-se a encolher os ombros.

— Vemo-nos outra vez — diz ela com grande confiança. — Afinal, agora somos vizinhas.

Addie consegue esboçar a sombra pálida de um sorriso.

— É verdade.

Sam acompanha-a à porta e, a cada passo, Addie resiste ao impulso de olhar para trás.

— Não desapareças — diz Sam.

— Combinado — promete Addie, enquanto a porta se fecha. Suspira, apoiando nela as costas, ouve os passos de Sam afastarem-se do átrio atulhada, antes de se obrigar a endireitar-se, a dar um passo em frente e a afastar-se dali.

Lá fora, o céu de mármore branco abriu-se, deixando passar faixas finas de azul.

O frio dissipou-se, e Addie encontra um café com esplanada, sufi- cientemente azafamado para que o empregado de mesa só tenha tempo para passar pelas mesas exteriores de dez em dez minutos, aproximadamente. Conta os batimentos como um prisioneiro a marcar o passo de guardas, pede um café — não é tão bom como o de Sam, amargo, sem adoçante, mas é suficientemente quente para a proteger do frio. Puxa a gola do casaco de cabedal, volta a abrir A Odisseia e tenta ler.

Neste ponto, Ulisses pensa que está a regressar a casa, para se reunir de novo com Penélope depois dos horrores da guerra, mas leu a história vezes suficientes para saber quão longe a viagem está de terminar.

Folheia, traduzindo do grego para inglês moderno.

Receio simultaneamente o que o frio intenso e o orvalho húmido me poderão fazer — estou cansado até aos ossos, prestes a respirar pela última vez, e um vento frio sopra de um rio sobre uma manhã suave.

O empregado sai de novo para a esplanada, e ela espreita por cima do livro, vê-o franzir um pouco o sobrolho ao ver o café já pedido e entregue, a lacuna na memória, no lugar onde deveria estar um cliente. Mas Addie olha como se pertencesse, e isso é meio caminho andado, e, um momento mais tarde, o empregado dirige a atenção para um casal à entrada, à espera de lugar para se sentar.

Regressa ao livro, mas não vale a pena. Não está com disposição para velhos perdidos no mar, para parábolas de vidas solitárias. Quer evadir-se, quer esquecer. Uma fantasia ou talvez um romance.

Seja como for, o café agora está frio, e Addie levanta-se, de livro na mão, e dirige-se para The Last Word para descobrir algo novo.