Nova Iorque

15 de março de 2014

cap2

Passados tantos anos, Addie pensou ter aceitado a questão do tempo.

Pensou ter-se pacificado com o mesmo — ou ambos terem encontrado uma forma de coexistir, não como amigos, de todo, mas pelo menos já não como inimigos.

E, no entanto, o tempo decorrido entre a noite de quinta-feira e a tarde de sábado é impiedoso, cada segundo racionado com o cuidado de uma velha a contar os cêntimos para pagar o pão. Nem uma vez parece apressar-se, nem uma vez perde noção do mesmo. Não parece conseguir gastá-lo, desperdiçá-lo ou mesmo empregá-lo mal. Os minutos incham à sua volta, um oceano de tempo imbebível entre o agora e o então, entre o aqui e a loja, entre ela e Henry.

Passou as duas últimas noites num sítio em Prospect Park, um T1 confortável com uma janela saliente que pertence a Gerard, um escritor de livros para crianças que conheceu num inverno. Uma cama gigante, um monte de cobertores, o zunido hipnótico e suave do radiador, e, mesmo assim, não conseguiu dormir. Não conseguiu fazer nada além de contar e esperar e desejar ter dito amanhã, para só ter de aguentar um dia, em vez de dois.

Conseguiu suportar o tempo por trezentos anos, mas agora, agora há um presente e um futuro, agora há alguma coisa à espera, adiante, agora nem pode esperar para ver o olhar no rosto de Henry, ouvir o seu nome nos lábios dele.

Addie toma um duche até a água ficar fria, enxuga o corpo e arranja o cabelo de três maneiras diferentes. Senta-se na ilha da cozinha a atirar flocos de cereais para o ar, tentando apanhá-los com a língua, enquanto o relógio na parede avança das 10h13 para as 10h14. Addie geme. Só está previsto encontrar-se com Henry às 17h00, e o tempo abranda um pouco mais a cada minuto, e pensa que poderá enlouquecer. Passou tanto tempo desde que sentiu este tipo de tédio, a incapacidade doida de se concentrar, e demora toda a manhã a perceber que não está entediada, de todo.

Está nervosa.

Nervosa, como amanhã, uma palavra para coisas que ainda não aconteceram. Uma palavra para futuros, quando durante tanto tempo tudo o que teve foram presentes.

Addie não está habituada a estar nervosa.

Não há motivos para o estar quando se está sempre só, quando qualquer momento embaraçoso pode ser apagado por um fechar de porta, a um instante de distância, e cada encontro é um recomeço. Um registo limpo.

O relógio chega às 11h00, e decide que não consegue continuar em casa.

Varre os pedaços de cereais caídos, deixa o apartamento como estava quando o encontrou e sai para a manhã tardia de Brooklyn. Vagueia por entre lojas, desesperada por distração, criando uma nova combinação de roupas porque a que tem não serve. Afinal, é a mesma que usou da vez anterior.

Anterior — mais uma palavra que perdeu a forma.

Addie pega numas calças de ganga claras e num par de sapatos de seda preta rasos, num top com um decote acentuado e atira o casaco de cabedal por cima, apesar de não condizer. Continua a ser uma peça que não suportaria perder.

Ao contrário do anel, não regressará.

Addie deixa que uma rapariga animada de uma loja de maquilhagem a sente num banco e passe uma hora a aplicar vários tons, lápis de contorno e sombras. Quando termina, o rosto no espelho é belo, mas parece errado, com o calor acastanhado dos olhos arrefecido pela sombra esfumada em torno dos mesmos, a pele demasiado suave, as sete sardas escondidas sob uma base mate.

A voz de Luc ergue-se como nevoeiro contra o reflexo.

Preferia ver nuvens a tapar as estrelas.

Addie pede à rapariga para ir buscar um batom cor de coral, e, no instante em que fica sozinha, faz desaparecer as nuvens.

De alguma forma, consegue esgotar as horas até às 16h00, mas agora está à porta da livraria, cheia de esperança e de medo. Por isso obriga-se a dar uma volta ao quarteirão, a contar as lajes do pavimento, a memorizar cada montra até serem 16h45 e já não conseguir aguentar mais. Quatro passos breves. Uma porta aberta.

Um único medo, de chumbo.

E se?

E se tiverem passado demasiado tempo afastados?

E se as fendas se tiverem voltado a fechar, com a maldição de novo selada sobre ela?

E se tiver sido apenas um golpe de sorte? Uma partida cruel? E se e se e se...

Addie sustém a respiração, abre a porta e entra.

Mas Henry não está ali — em vez dele, está outra pessoa ao balcão.

É a rapariga. A do outro dia, que estava sentada, curvada, na cadeira de couro, aquela que o chamou pelo nome quando Henry correu até lá fora para apanhar Addie na curva. Agora está encostada à caixa registadora, a folhear um livro grande, cheio de fotografias reluzentes.

A rapariga é uma obra de arte, incontestavelmente bela, com a pele negra envolvida em fios de prata, uma camisola a escorregar de um dos ombros. Olha para cima, ao ouvir o som da campainha.

— Posso ajudá-la?

Addie hesita, desequilibrada por uma vertigem de desejo e de medo.

— Espero que sim — diz. — Venho à procura do Henry.

A rapariga olha para ela, analisando-a...

Surge então uma voz familiar, vinda das traseiras.

— Bea, achas que isto parece... — Henry contorna a esquina, alisando a camisa, e cala-se quando vê Addie. Por um instante, uma fração de uma fração de um segundo, pensa que está tudo acabado. Que ele se esqueceu e que está de novo sozinha, com o suave feitiço, qual tecido, cortado como um fio solto.

Mas nesse momento Henry sorri e diz:

— Vieste mais cedo. — E Addie está tonta de ar, de esperança, de luz.

— Desculpa — diz ela, um pouco sem fôlego.

— Não peças desculpa. Estou a ver que já conheces a Beatrice. Bea, esta é a Addie. — Gosta da forma como Henry diz o seu nome.

Luc costumava esgrimi-lo como uma arma, uma faca a aflorar-lhe a pele, mas, na língua de Henry, é um sino, algo leve e alegre e adorável.

Repica entre eles.

Addie. Addie. Addie.

Déjà vu — diz Bea, abanando a cabeça. — Já alguma vez conheceste uma pessoa pela primeira vez, mas tiveste a certeza de que já a viste antes?

Addie quase ri.

— Sim.

— Já dei de comer ao Book — diz Henry, dirigindo-se a Bea enquanto veste o casaco. — Não espalhes mais erva-gateira na secção de terror. — Ela põe as mãos no ar, com as pulseiras a tinir. Henry vira-se para Addie com um sorriso tímido. — Estás pronta?

Vão a meio caminho da porta quando Bea estala os dedos.

— Barroco — diz ela. — Ou talvez neoclássico.

Addie olha para trás, confusa.

— Os períodos artísticos?

A outra rapariga acena com a cabeça.

— Tenho a teoria de que cada rosto pertence a um deles. A um período. A uma escola.

— A Bea fez uma pós-graduação — intervém Henry. — História de arte, caso não tenhas percebido.

— Aqui o Henry é claramente romantismo puro. O nosso amigo Robbie é pós-modernista, a vanguarda, claro, não o minimalismo. Mas tu... — toca com um dedo nos lábios. — Há algo de intemporal em ti.

— Para de namoriscar com o meu par para este encontro.

Encontro. A palavra palpita fazendo-a estremecer. Um encontro é algo criado, algo planeado; não um acaso fugaz, mas tempo reservado em dada altura para outro instante, um momento no futuro.

— Divirtam-se! — grita Bea, animadamente. — Não venham muito tarde.

Henry revira os olhos.

— Adeus, Bea — diz, segurando a porta.

— Ficas a dever-me uma — acrescenta ela.

— Estou a dar-te acesso gratuito aos livros.

— Quase como se fosse uma biblioteca!

— Isto não é uma biblioteca! — grita ele de volta, e Addie sorri enquanto o segue escadas acima, até à rua. É obviamente uma piada privada, algo que partilham, uma coisa familiar, e ela anseia por isso ardentemente, pergunta-se como seria conhecer alguém assim tão bem, como seria esse conhecimento ter dois sentidos. Pergunta-se se poderiam ter uma piada como aquela, ela e Henry. Se se poderão conhecer um ao outro pelo tempo suficiente.

Está um fim de tarde frio, e andam lado a lado, sem darem os braços, mas com os cotovelos a aflorar, cada um deles a encostar-se um pouco ao calor do outro. Addie está maravilhada com aquilo, com aquele rapaz ao seu lado, o nariz enterrado no cachecol em volta do pescoço. Está maravilhada com as diferenças mínimas nos seus modos, com as pequenas mudanças no comportamento. Dias antes, era uma estranha para ele, e agora não é, e Henry está a aprender como ela é tal como ela está a aprender quem ele é, e ainda estão no princípio, ainda é tudo muito novo, mas avançaram um passo pelo caminho que leva do desconhecido ao familiar. Um passo que nunca teve autorização para dar com ninguém, à exceção de Luc.

E, no entanto.

Está ali, com aquele rapaz.

Quem és tu? pensa enquanto os óculos de Henry se embaciam com o vapor. Ele apanha-a a olhar e pisca-lhe o olho.

— Onde vamos? — pergunta ela quando chegam ao metro, e Henry olha para ela e sorri, um sorriso tímido, desigual.

— É surpresa — responde enquanto descem as escadas.

Apanham o comboio G para Greenpoint, retrocedem meio quarteirão até uma montra indefinida, com um letreiro a dizer lavar e dobrar no vidro. Henry segura a porta, e Addie entra. Olha em volta para as máquinas de lavar, o zunido de ruído branco do ciclo de enxaguamento, o estremecimento da rotação.

— É uma lavandaria automática — diz ela.

Mas os olhos de Henry iluminam-se de traquinice.

— É um bar clandestino.

Uma recordação esgueira-se através dela ao ouvir a palavra, e encontra-se em Chicago, há quase um século de distância, com o jazz a rodeá-la como fumo no bar clandestino, o ar pesado do aroma a gim e charutos, o entrechocar dos copos, o segredo aberto de tudo. Sentam -se atrás de uma janela de vidro pintada com a imagem de um anjo a erguer a taça, e o champanhe escorre-lhe pela língua, e a escuridão sorri contra a sua pele e arrasta-a para uma pista de dança, e é o princípio e o fim de tudo.

Addie estremece, retraindo-se. Henry segura a porta aberta ao fundo da lavandaria, e ela prepara-se para a sala sombria, um recuo no passado, mas, em vez disso, é confrontada com as luzes fluorescentes e com o carrilhão de sons de um salão de jogos. Pinball, para ser exato. As máquinas estão alinhadas contra as paredes, encostadas umas às outras para criar espaço para as mesas e para os bancos, para o bar de madeira.

Addie olha em volta, desconcertada. Não é um bar clandestino, de todo, pelo menos no sentido literal. É apenas uma coisa escondida atrás de outra. Um palimpsesto ao contrário.

— Então? — pergunta ele com um sorriso acanhado. — O que achas?

Addie sente-se sorrir de volta, tonta de alívio.

— Adoro.

— Ótimo — diz ele, retirando um saco com moedas de um dos bolsos. — Pronta para perder?

É cedo, mas o sítio está longe de estar vazio.

Henry condu-la até ao canto, onde se apossa de duas máquinas vintage e empilha uma torre de moedas em cima de cada uma delas. Ela sustém a respiração quando insere a primeira moeda, prepara-se para o tinido inevitável da mesma a rolar de novo para fora da ranhura, em baixo. Mas a moeda entra, e o jogo ganha vida, emitindo uma cacofonia alegre de cor e som.

Addie expira, uma mistura de prazer e alívio.

Talvez ela seja anónima, sendo o ato tão incógnito como um roubo. Talvez, mas, naquele momento, não quer saber.

Puxa a alavanca e joga.