cap3

— Como consegues ser tão boa a jogar pinball? — pergunta Henry enquanto faz a contagem dos pontos.

Addie não tem a certeza. A verdade é que nunca jogou antes e demorou algum tempo até apanhar o jeito à coisa, mas agora encontrou o seu ritmo.

— Aprendo depressa — diz ela, mesmo antes de a bola deslizar por entre as peças em movimento.

HIGH SCORE! — anuncia o jogo num tom mecânico.

— Boa! — grita Henry por cima do alarido. — É melhor reclamares a vitória.

O ecrã lampeja, à espera de que ela introduza o seu nome. Addie hesita.

— Assim — diz ele, mostrando-lhe como assinalar a caixa vermelha entre as letras. Afasta-se, mas, quando tenta, o cursor não se move. A luz limita-se a cintilar por cima da letra A, escarninha.

— Não faz mal — diz ela, recuando, mas Henry avança.

— As máquinas são novas, mas os problemas são sempre os mesmos. — Dá-lhe um solavanco com a anca, e o quadrado fixa-se em torno do A. — Ora bem.

Está prestes a ceder-lhe a vez, mas Addie agarra-lhe o braço.

— Introduz tu o meu nome enquanto eu passo à próxima ronda.

Agora que o sítio está cheio, é mais fácil. Surripia duas cervejas da extremidade do balcão e regressa por entre a multidão antes que o empregado se chegue a virar. E, quando regressa, de bebidas na mão, a primeira coisa que vê são as letras, a lampejar num vermelho-vivo no ecrã.

ADI.

— Não sabia soletrar o teu nome — diz ele.

E está mal, mas não importa; nada importa, a não ser aquelas três letras, a brilharem de volta para ela, quase como uma marca, uma assinatura.

— Troca — diz Henry, com as mãos pousadas nas ancas enquanto a conduz até à sua própria máquina. — Vamos ver se consigo dar cabo da tua pontuação.

Ela sustém a respiração e espera que nunca ninguém consiga.

Jogam até ficarem sem moedas e sem cerveja, até o sítio estar demasiado apinhado para ser agradável, até não se conseguirem realmente ouvir um ao outro por cima do tinido e do estrondo dos jogos e dos gritos das outras pessoas e saem para fora do salão de jogos. Voltam a passar pela lavandaria demasiado iluminada e depois saem para a rua, ainda a fervilhar de energia.

Agora está escuro, lá fora, o céu lá em cima como uma abóbada baixa de nuvens cinzentas e densas, a prometer chuva, e Henry enfia as mãos nos bolsos, olha para cima e depois para a rua.

— E agora?

— Queres que eu escolha?

— Estamos num encontro com igualdade de oportunidades — diz ele, balançando do calcanhar à ponta dos dedos. — Tratei do primeiro capítulo. Agora é a tua vez.

Addie faz um som de hesitação, olhando em volta, convocando uma imagem mental do bairro.

— Ainda bem que encontrei a carteira — diz ela, dando umas palmadinhas no bolso. Claro que não é verdade, mas retirou algumas notas de vinte da gaveta da cozinha do escritor antes de sair de casa, nessa manhã. A julgar pelo perfil recente que fizeram sobre ele no The Times e pela dimensão referida do seu mais recente contrato editorial, Gerard não iria sentir falta delas.

— Por aqui. — Addie arranca pela rua abaixo.

— Vamos muito longe? — pergunta ele quinze minutos mais tarde, quando continuam a andar.

— Pensei que eras um nova-iorquino — brinca ela.

Mas as passadas dele são suficientemente longas para acompanhar a velocidade dela, e, cinco minutos mais tarde, viram numa esquina e ali está. O Nitehawk ilumina a rua, que começa a escurecer, com lâmpadas brancas a desenharem formas na fachada de tijolo, com a palavra cinema destacada numa luz fluorescente vermelha na parte da frente.

Addie já esteve em todos os cinemas de Brooklyn, nos complexos maciços, com os seus lugares dignos de estádio e as pérolas de cinema independente e sofás gastos, viu todas as seleções de lançamentos recentes e de cinema nostalgia.

E o Nitehawk é um dos seus preferidos.

Passa em revista o painel dos filmes em projeção, compra dois bilhetes para uma sessão de Intriga Internacional, visto que Henry diz que nunca viu, e depois pega-lhe na mão e condu-lo pelo corredor fora, até entrarem na sala às escuras.

Há mesinhas entre cada lugar, com menus de plástico e folhas de papel para escrever o pedido. Nunca conseguiu pedir nada, claro — as marcas de lápis dissolvem-se, o empregado esquece-se dela mal fica longe de vista —, por isso inclina-se para ver Henry preencher o seu cartão, entusiasmada pelo potencial simples desse ato.

Os trailers de antestreia prosseguem enquanto os lugares se enchem à sua volta, e Henry pega-lhe na mão, com os dedos a entrelaçarem-se como elos de uma corrente. Ela lança-lhe uma olhadela, sob a luz baixa do cinema. Caracóis negros. Maçãs do rosto altas. O arco de cupido na boca. O bruxulear de uma semelhança.

Não é a primeira vez que viu Luc repetido num rosto humano.

— Estás a olhar para mim fixamente — sussurra Henry sob o som das antestreias.

Addie pestaneja.

— Desculpa. — Abana a cabeça. — Fazes-me lembrar alguém que conheci.

— Alguém de quem gostavas, espero.

— Nem por isso. — Ele fuzila-a com um olhar de afronta fingida, e Addie quase ri. — Era mais complicado do que isso.

— Amor, portanto?

Abana a cabeça.

— Não... — mas o seu discurso torna-se mais lento, menos empático. — Mas era muito agradável de observar.

Henry ri-se enquanto as luzes se apagam, e o filme começa.

Aparece um empregado diferente, agachando-se enquanto distribui o pedido, e ela vai debicando batatas fritas do prato, uma a uma, afundando-se no conforto do filme. Lança uma olhadela a Henry para ver se se está a divertir, mas ele nem sequer está a olhar para o ecrã. O seu rosto, todo energia e luz uma hora antes, é um ricto de tensão. Um dos joelhos saltita, irrequieto.

Aproxima-se dele e sussurra.

— Não gostas?

Henry exibe um sorriso superficial.

— É excelente — diz ele, mudando de posição no assento. — Apenas um pouco lento.

É Hitchcock, quer Addie dizer, mas, em vez disso, murmura:

— Vale a pena, garanto.

Henry contorce-se na direção dela, franzindo uma das sobrancelhas.

— Já viste?

Claro que Addie já o viu.

Primeiro em 1959, num cinema de Los Angeles, e depois nos anos setenta, numa apresentação de conjunto com o seu último filme, Intriga em Família, e depois mais uma vez, há alguns anos, precisamente em Greenwich Village, durante uma retrospetiva. Hitchcock arranja sempre maneira de ressuscitar, devolvido ao sistema cinematográfico em intervalos regulares.

— Sim — sussurra-lhe ela de volta. — Mas não me importo.

Henry não diz nada, mas claramente importa-se. O joelho volta a saltar, e, alguns minutos mais tarde, levantou-se do seu lugar e saiu para o átrio.

— Henry — chama ela, confusa. — O que foi? O que se passa?

Apanha-o no momento em que abre a porta do cinema e sai para o passeio.

— Desculpa — diz entre dentes. — Precisava de ar.

Mas é evidente que não se trata disso. Está a andar de um lado para o outro.

— Fala comigo.

Os passos abrandam.

— Gostava apenas que me tivesses dito.

— Dito o quê?

— Que já tinhas visto.

— Mas tu não tinhas — diz ela. — E eu não me importo de ver outra vez. Gosto de ver coisas outra vez.

— Eu não — explode ele, e depois reduz a intensidade do tom. — Desculpa. — Abana a cabeça. — Desculpa. Isto não é um problema teu. — Passa as mãos pelo cabelo escuro. — Eu só... — abana a cabeça e vira-se para enfrentar o olhar de Addie, com os olhos verdes a cintilarem no escuro. — Nunca sentes que estás a ficar sem tempo?

Addie pestaneja e recuou trezentos anos e está de novo de joelhos, no solo da floresta, com as mãos a enterrarem-se na terra musgosa enquanto os sinos da igreja repicam, atrás dela.

— Não estou a referir-me à forma habitual de o tempo voa — diz Henry. — Refiro-me a sentir-me como se ele estivesse a passar tão depressa que tentamos estender o braço e agarrá-lo, mas ele continua a correr a toda brida. E cada segundo há um pouco menos de tempo e um pouco menos de ar e por vezes, quando estou parado, começo a pensar nisso e, quando penso nisso, não consigo respirar. Tenho de me levantar. Tenho de me mexer.

Tem os braços enrolados em volta do corpo, os dedos enterrados nas costelas.

Passou-se muito tempo desde que Addie sentiu esse tipo de urgência, mas lembra-se bem dela, lembra-se do medo, tão pesado que pensava poder esmagá-la.

Um piscar de olhos, e metade da tua vida desapareceu.

Não quero morrer como vivi.

Nascer e ser enterrada no mesmo talhão de dez metros.

Addie estende a mão e agarra-lhe no braço.

— Anda — diz ela, puxando-o para começarem a descer a rua. — Vamos.

— Onde? — pergunta ele, e a mão dela desliza sobre a dele e aperta-a com firmeza.

— Descobrir algo novo para ti.