Nova Iorque
15 de março de 2014
Addie conduz Henry rua abaixo, dobrando uma esquina para uma porta de aço não identificada, cheia de cartazes antigos. Um homem demora-se perto dela, a fumar cigarros atrás de cigarros e a ver fotografias no telemóvel.
— Júpiter — diz ela, de súbito, e o homem endireita-se e abre a porta, expondo uma plataforma estreita e um lanço de escadas que desce até um ponto longe da vista.
— Bem-vindos ao Fourth Rail.
Henry dirige-lhe um olhar perplexo, mas Addie pega-lhe na mão e puxa-o lá para dentro. Vira-se, olhando para trás quando a porta se fecha.
— Não há quatro carris no metro — diz ele, e Addie brinda-o com um sorriso.
— Precisamente.
É disso que gosta numa cidade como Nova Iorque. Está cheia de divisões escondidas, de portas infinitas conduzindo a salas infinitas. E, se se tiver tempo, é possível encontrar muitas delas. Descobriu algumas por acaso, outras durante uma ou outra aventura. Mantém-nas guardadas, como folhas de papel entre as páginas do seu livro.
Uma escadaria conduz a outra, a segunda mais larga, de pedra. Os arcos do teto, lá em cima, o estuque a dar lugar a pedra e depois a tijolo, o túnel iluminado apenas por uma série de lanternas elétricas, mas tão afastadas umas das outras que pouco fazem de facto para destruir a escuridão. Um rasto de migalhas, apenas o suficiente para se divisar alguma coisa, motivo pelo qual Addie tem o prazer de ver a expressão de Henry quando se apercebe de onde estão.
O Metro de Nova Iorque tem quase quinhentas estações ativas, mas o número de túneis abandonados permanece uma questão controversa. Alguns deles estão abertos ao público, simultaneamente monumentos ao passado e sinais de aquiescência face a um futuro indeterminado. Alguns são pouco mais do que caminhos encastoados entre linhas em funcionamento.
E, depois, alguns deles são secretos.
— Addie... — murmura Henry, mas ela levanta um dedo no ar, inclina a cabeça. À escuta.
A música começa como um eco, um matraquear distante, simultaneamente sensação e som. Ergue-se a cada degrau que descem, parece encher o ar à sua volta, primeiro como um zunido, depois como um retumbar e, finalmente, como um batimento.
Mais à frente, o túnel está vedado com tijolo, assinalado apenas pela faixa branca de uma seta para a esquerda. Dobrando a esquina, a música intensifica-se. Mais um beco sem saída, mais uma viragem e...
O som abate-se sobre eles.
Todo o túnel vibra com a força do baixo, a reverberação de acordes contra pedra. Projetores intermitentes a latejar num azul-esbranquiçado, um estroboscópio a reduzir a discoteca escondida a fotogramas; uma multidão a contorcer-se, corpos a saltar ao som da música; dois artistas a erguer guitarras elétricas iguais num palco de betão; uma fila de empregados de bar imobilizados no ato de verter bebidas em copos.
As paredes do túnel estão cobertas de azulejos cinzentos e brancos, faixas largas que envolvem as arcadas, lá em cima, que as vergam de novo, como costelas, como se estivessem dentro da barriga de um animal enorme, esquecido, com o ritmo a retumbar através do seu coração.
O Fourth Rail é primitivo, impetuoso. O tipo de sítio que Luc iria adorar.
Mas este? Este é dela. Addie encontrou o túnel sozinha. Mostrou-o ao músico-que-se-tornou-empresário, que andava à procura de um sítio. Mais tarde, nessa noite, chegou a sugerir o nome, com as cabeças inclinadas sobre um guardanapo de cocktail. A caneta dele escreve. A ideia dela. Tem a certeza de que acordou no dia seguinte com uma ressaca e com os primeiros rascunhos do Fourth Rail. Seis meses mais tarde, viu o tipo do lado de fora da porta de aço. Viu o logótipo que criaram, uma versão mais requintada, enfiado por detrás dos cartazes a descascar, e sentiu o entusiasmo agora familiar de sussurrar algo ao mundo e de o ver tornar-se real.
Addie empurra Henry para o bar improvisado.
É simples, a parede do túnel dividida em três atrás de uma base ampla de pedra clara que serve de balcão. As opções são vodca, bourbon ou tequila, e um empregado de bar espera, de pé, diante deles.
Addie pede pelos dois. Duas vodcas.
A transação decorre em silêncio — não vale a pena tentar gritar por cima da parede de som. Uma série de dedos ergue-se, dez pousam no balcão. O empregado de bar — um rapaz negro esguio com sombra cinzenta nos olhos — serve dois shots e abre as mãos como um croupier a dar as cartas.
Henry levanta o copo, e Addie ergue o seu, e as bocas de ambos movem-se ao mesmo tempo (ela pensa que ele está a dizer à nossa enquanto responde saúde), mas os sons são engolidos, com o tilintar dos copos a não passar de uma pequena vibração por entre os seus dedos.
A vodca inflama-lhe o estômago como um fósforo, com o calor a florescer por detrás das costelas. Voltam a colocar os copos vazios em cima do balcão, e Addie já está a puxar Henry em direção à amálgama de corpos perto do palco, quando o tipo atrás do balcão estende o braço e agarra no pulso de Henry.
O empregado sorri, apresenta um terceiro copo de shot e volta a servir. Leva as mãos ao peito, no gesto universal de esta é por minha conta.
Bebem, e ali está de novo o calor, a espalhar-se do peito para os membros, e depois a mão de Henry na dela, movendo-se na multidão. Addie olha para trás, vendo o empregado de bar a olhar para eles fixa- mente, e tem uma sensação estranha, a erguer-se como os últimos sedimentos de um sonho, e quer dizer algo, mas a música é uma parede, e a vodca suaviza-lhe as arestas dos pensamentos até se dissipar, e depois ambos começam a introduzir-se no meio da multidão.
Lá em cima pode ser início da primavera, mas, ali em baixo, é fim de verão, húmido e pesado. A música é líquida, o ar espesso como xarope enquanto mergulham por entre os membros emaranhados. O túnel está revestido a tijolos, atrás do palco, criando uma reverberação extraordinária, um espaço onde o som se verga, duplica, com cada nota a ser transportada, a diminuir, sem desaparecer completamente. Os guitarristas tocam um trecho em uníssono perfeito, reforçando o efeito de eco na câmara, agitando as águas da multidão.
E então a rapariga avança sob as luzes.
Uma fada adolescente — uma coisa feérica, diria Luc —, num vestido preto curto e botas da tropa. O seu cabelo louro-branco está apanhado no alto da cabeça, arranjado em dois carrapitos iguais, com as pontas espetadas como uma coroa. A única cor reside na fenda dos seus lábios vermelhos e no arco-íris desenhado como uma máscara, nos seus olhos. Os guitarristas apressam-se, com os dedos a voarem sobre as cordas. O ar estremece, a batida martela através de pele, músculo e osso.
E a rapariga começa a cantar.
A sua voz é um lamento, um grito de fada, se uma fada gritasse afi- nada. As sílabas sangram juntas, as consoantes esbatem-se, e Addie dá consigo a aproximar-se mais, ansiosa por ouvir as palavras. Mas estas recuam, deslizam sob o som dos instrumentos, vergam-se sob a energia selvagem do Fourth Rail.
As guitarras tocam o seu coro hipnótico.
A cantora parece quase um fantoche, puxada pelos fios.
E Addie pensa que Luc a teria adorado, pergunta-se, por um instante, se ali terá estado alguma vez, desde que ela descobriu aquele lugar. Inspira como se fosse capaz de cheirar a escuridão, como fumo, no ar. Mas Addie obriga-se a parar, esvazia a cabeça dele, cria, em vez disso, espaço para o rapaz que se encontra ao seu lado, a saltar ao som da batida.
Henry, com a cabeça inclinada para trás, os óculos a embaciarem-se, cinzentos, e o suor a escorrer-lhe do rosto como lágrimas. Por um instante, parece impossivelmente, incomensuravelmente triste, e ela lembra-se da dor na sua voz quando falou de perder tempo.
Mas depois olha para ela e sorri, e tudo desaparece, um truque das luzes, e pergunta-se quem e como e de onde veio ele, sabe que é tudo demasiado bom para ser verdade, mas, nesse momento, está simplesmente contente por ele ali estar.
Fecha os olhos, deixa-se entrar no ritmo da música, e está em Berlim, na Cidade do México, em Madrid, e está ali, naquele momento, com ele.
Dançam até os membros doerem.
Até o suor lhes pintar a pele e o ar se tornar demasiado denso para se respirar. Até haver uma pausa na música e outra conversa silenciosa ter passado entre os dois como uma centelha.
Até ele a arrastar de volta para o bar e para o túnel, pelo mesmo caminho por onde vieram, mas o fluxo do movimento faz-se por uma rua de sentido único, as escadas e a porta de aço conduzem apenas ao interior.
Até que ela vira a cabeça para o outro lado, para um arco negro instalado na parede do túnel, perto do palco, encaminha-os para as escadas estreitas, com a música a esmorecer um pouco mais a cada passo que sobem, os ouvidos a zunir do ruído branco deixado para trás.
Até saírem para a noite fresca de março, enchendo os pulmões de ar fresco.
E o primeiro som que Addie ouve é o riso dele.
Henry volta-se para ela, de olhos brilhantes, faces coradas, intoxicado de uma forma que tem menos a ver com a vodca do que com o poder do Fourth Rail.
Ainda está a rir quando a tempestade começa.
O estrondo de um trovão, e, segundos depois, a chuva começa a cair. Não uma morrinha — nem sequer as gotas esparsas de aviso que rapidamente dão lugar a um aguaceiro regular —, mas a súbita precipitação de aço de uma carga de água. O tipo de chuva que nos atinge como tijolos, que nos encharca completamente em segundos. Addie arqueja ao sentir o choque súbito do frio.
Estão a três metros do toldo mais próximo, mas nenhum deles corre a abrigar-se.
Ela sorri olhando para cima, para a chuva, deixa que a água lhe beije a pele.
Henry olha para ela, e Addie devolve-lhe o olhar, e então ele abre os braços como que a acolher a tempestade, com o peito a palpitar. A água demora-se nas suas pestanas negras, desliza-lhe pelo rosto, lavando a discoteca da roupa, e Addie apercebe-se subitamente de que, apesar dos instantes de semelhança, Luc nunca teve aquele aspeto.
Jovem.
Humano.
Vivo.
Puxa Henry para si, saboreia a compressão do seu corpo, quente contra o frio. Passa-lhe a mão pelo cabelo e, pela primeira vez, este permanece puxado para trás, expondo as linhas definidas do seu rosto, as concavidades ávidas do maxilar, os olhos, de um tom de verde mais claro do que vira neles, até esse momento.
— Addie — sussurra ele, e o som envia faúlhas que lhe percorrem a pele, e, quando a beija, sabe a sal e a verão. Mas parece-se demasiado com um sinal de pontuação, e ela não está pronta para que a noite chegue ao fim, por isso devolve-lhe o beijo, de forma mais profunda, transforma o ponto final numa pergunta, numa resposta.
E então correm, não à procura de abrigo, mas atrás do metro.
Entram aos tropeções no apartamento dele, com as roupas molhadas coladas à pele.
São um emaranhado de membros no átrio, sem se conseguirem aproximar o suficiente. Ela tira-lhe os óculos do nariz, atira-os para cima de uma cadeira próxima, despe o casaco, com a pele a colar-se-lhe à pele. E estão de novo a beijar-se. Desesperados, famintos, selvagens, enquanto os dedos dela lhe percorrem as costelas, se engancham na parte da frente das calças de ganga dele.
— Tens a certeza? — pergunta ele, e, como resposta, ela puxa-lhe a boca para a sua, guia as mãos dele para os botões da sua saia enquanto as dela procuram o cinto dele. Henry encosta-a contra a parede e diz o nome dela, e há relâmpagos na pele de Addie, fogo no seu âmago, desejo entre as suas pernas.
E depois estão na cama, e, por um instante, apenas por um instante, ela é outra pessoa, outro tempo, com a escuridão a envolvê-la. Um nome sussurrado contra pele nua.
Mas, para ele, era Adeline, apenas Adeline. A sua Adeline. A minha Adeline.
Ali, agora, é finalmente Addie.
— Diz outra vez — implora.
— Digo o quê? — murmura ele.
— O meu nome.
Henry sorri.
— Addie — sussurra ele contra a sua garganta.
— Addie. — Beija-lhe a linha do pescoço.
— Addie. — O estômago.
— Addie. — As ancas.
A boca dele encontra o calor entre as suas pernas, e os dedos de Addie enredam-se naqueles caracóis negros, com as costas arqueadas de prazer. O tempo estremece, desfoca-se. Ele faz o caminho de volta, beija-a de novo, e então ela põe-se em cima dele, comprimindo-o contra a cama.
Não encaixam perfeitamente. Ele não foi feito para ela, como Luc — mas isto é melhor, porque é real e amoroso e humano, e ele lembra-se.
Quando chegam ao fim, ela cai, sem fôlego, nos lençóis ao seu lado, com o suor e a chuva a arrefecerem-lhe na pele. Henry aninha-se à sua volta, puxa-a de novo para o círculo do seu calor, e Addie consegue sentir o coração dele abrandar atrás das costelas, um metrónomo a regressar ao seu ritmo.
O quarto fica em silêncio, apenas marcado pela chuva regular atrás das vidraças, o rescaldo sonolento da paixão, e depressa o sente cair no sono.
Addie olha para o teto.
— Não te esqueças — diz baixinho, com as palavras a assemelharem-se um pouco a uma prece, um pouco a uma súplica.
Os braços de Henry contraem-se, com o corpo a vir à tona do sono.
— Esqueço o quê? — murmura, já a afundar-se de novo.
E Addie espera que a respiração dele estabilize antes de sussurrar as palavras no escuro.
— De mim.