Paris, França
29 de julho de 1724
Addie irrompe noite dentro, a limpar as lágrimas das faces.
Puxa o casaco para junto do corpo, apesar do calor de verão, e percorre sozinha a cidade adormecida. Não se dirige ao casebre a que chamou casa esta estação. Avança simplesmente, porque não consegue suportar a ideia de ficar parada.
Por isso Addie caminha.
E, a dado momento, apercebe-se de que já não está sozinha. Há uma mudança no ar, uma brisa subtil, transportando o aroma a folhas de bosques interiores, e então ele aparece ao seu lado, a acompanhar o seu ritmo, passo a passo. Uma sombra elegante, vestida ao último grito da moda de Paris, com o colarinho e os punhos orlados de seda.
Apenas os seus caracóis negros ondulam em torno do rosto, selvagens e livres.
— Adeline, Adeline — diz, com a voz eivada de prazer, e ela está de volta à cama, com a voz de Remy a dizer Anna, Anna contra o seu cabelo.
Quatro anos se passaram sem uma visita.
Quatro anos a suster a respiração, e, embora nunca o admita, vê-lo é como vir à tona respirar. Um alívio terrível, um desafogo. Por mais que deteste aquela sombra, aquele deus, aquele monstro na sua carne roubada, continua a ser o único que se lembra dela.
Mas isso não a faz odiá-lo menos.
No máximo, odeia-o mais.
— Por onde andaste? — explode.
Um prazer presunçoso cintila nos seus olhos como luar.
— Porquê? Tiveste saudades minhas? — Addie não se atreve a falar. — Ora, vá lá — insiste Luc —, não pensaste mesmo que eu iria facilitar as coisas?
— Passaram-se quatro anos — diz ela, assustando-se perante a raiva na sua voz, demasiado próxima da necessidade.
— Quatro anos não são nada. Uma respiração. Um piscar de olhos.
— E, no entanto, apareceste hoje.
— Conheço o teu coração, minha querida. Sei quando vacila.
Os dedos de Remy fechados sobre os dela, sobre as moedas, o peso súbito da tristeza, e a escuridão, atraída pela dor como um lobo pelo sangue.
Luc olha para baixo, para as calças dela, presas abaixo do joelho, para a camisa de homem, aberta na garganta.
— Devo dizer — declara — que te preferia de vermelho.
O seu coração afunda-se perante a referência àquela noite, quatro anos antes, a primeira vez que não apareceu. Ele saboreia a visão da sua surpresa.
— Tu viste — disse ela.
— Sou a própria noite. Vejo tudo. — Aproxima-se mais, carregando o aroma de tempestades de verão, o beijo das folhas da floresta. — Mas era lindo o vestido que usaste por minha causa.
A vergonha perpassa como uma descarga sob a sua pele, seguida do ardor da raiva, ao saber que ele a estava a observar. Que observara a sua esperança esvair-se como as velas no parapeito, que observara enquanto ela se dilacerava, sozinha, no escuro.
Odeia-o, usa esse ódio como uma capa, envolve-se bem nele ao mesmo tempo que sorri.
— Pensaste que eu definharias em a tua atenção. Mas não definhei.
A escuridão emite um som entre dentes.
— Passaram-se apenas quatro anos — diz, pensativo. — Talvez da próxima vez espere mais tempo. Ou talvez... — a mão aflora-lhe o queixo, inclinando-lhe o rosto de modo a aproximar-se do seu. — Deixar-me-ei destas visitas e deixar-te-ei vaguear pela Terra até ao fim dos tempos.
É um pensamento arrepiante, apesar de ela não o deixar transparecer.
— Se fizesses isso — diz ela sem emoção —, nunca terias a minha alma.
Ele encolhe os ombros.
— Tenho milhares de outras à espera de serem colhidas, és apenas uma delas. — Agora está mais perto, demasiado perto, com o polegar a percorrer-lhe o maxilar, os dedos a deslizarem-lhe pela nuca. — Seria muito fácil esquecer-te. Todos os outros já o fizeram. — Ela tenta recuar, mas a mão é de pedra, agarrando-a rapidamente. — Será suave. Será rápido. Aceita, agora — insiste —, antes que mude de ideias.
Por um instante terrível, não confia na sua resposta. O peso das moedas na palma da mão ainda é demasiado recente, a dor da noite a dilacerá-la, e a vitória a dançar como luz nos olhos de Luc. É suficiente para a obrigar a cair em si.
— Não — diz ela, a palavra como um rosnido.
E ali está, como um presente, um lampejo de ira naquele rosto perfeito.
A mão dele solta-se, com o seu peso a desaparecer como fumo, e Addie fica mais uma vez sozinha no escuro.
Há um ponto em que a noite cede.
Quando a escuridão finalmente começa a enfraquecer e perder o seu domínio sobre o céu. É lento, tão lento que nem sequer repara, até que a luz se começa a infiltrar, até que a lua e as estrelas desapareceram, e o peso da atenção de Luc lhe sai dos ombros.
Addie sobe os degraus do Sacré Coeur, senta-se lá em cima, com a igreja atrás de si e Paris a espraiar-se aos seus pés, e vê o dia 29 de julho transformar-se no dia 30, vê o sol nascer sobre a cidade.
Quase esqueceu o livro que tirou do chão, no quarto de Remy.
Agarrou-o com tal força que os dedos lhe doem. Agora, sob a luz aquosa da manhã, interroga-se sobre o título, sondando a palavra. La Henriade. É um poema épico, esse termo novo, que ainda não conhece. Addie abre a capa e tenta ler a primeira página, consegue apenas decifrar uma linha antes de as palavras se desfazerem em letras e de as letras se esbaterem, e tem de resistir ao impulso de atirar o maldito livro para longe, de o arremessar escadas abaixo.
Em vez disso, fecha os olhos, inspira profundamente e pensa em Remy, não nas suas palavras, mas no prazer suave da sua voz quando fala de ler, no deleite dos seus olhos, na alegria, na esperança.
Será uma jornada terrível, cheia de começos e de paragens e de uma miríade de frustrações.
Decifrar aquele primeiro poema épico demorar-lhe-á quase um ano — um ano passado a trabalhar cada linha, a tentar compreender uma frase, depois uma página, de seguida um capítulo. E passar-se-á mais uma década ainda, até o ato surgir naturalmente, até a tarefa em si se dissolver, e descobrir o prazer oculto da história.
Levará tempo, mas tempo é a única coisa que Addie tem de sobra.
Por isso abre os olhos e recomeça.