cap8

— Retiro o que disse — diz ela. — Se só pudesse comer uma coisa para o resto da vida, seria estas batatas fritas.

Henry ri-se e rouba umas quantas do cone que ela tem na mão enquanto esperam na fila para pedir gyros. A carrinha de comida forma uma faixa colorida pela Flatbush, com magotes de pessoas a fazerem fila para pedir crepes de lagosta e queijo grelhado, banh mi e kebabs. Até há uma fila para sanduíches de gelado, apesar de o calor ter decaído no ar de março, prometendo uma noite revigorante e fria. Addie está contente por ter levado um chapéu e um cachecol, por ter trocado as sabrinas por botas de cano alto, apesar de se aninhar no calor dos braços de Henry, até haver uma aberta na fila para os falafel e ele se esgueirar para se meter nela.

Addie vê-o chegar ao guiché do balcão e pedir, vê a mulher de meia-idade que gere a carrinha inclinar-se para a frente, de cotovelos no parapeito, vê-os falar, com Henry a acenar solenemente.Afila cresce atrás dele, mas a mulher não parece reparar. Não está propriamente a sorrir; na melhor das hipóteses, parece estar prestes a chorar enquanto estende o braço, lhe agarra a mão e a aperta.

— A seguir!

Addie pestaneja, chega ao primeiro lugar da sua fila, gasta o resto do dinheiro roubado num gyro de borrego e num sumo de mirtilo, dá consigo a desejar, pela primeira vez em algum tempo, ter um cartão de crédito ou mais em seu nome do que a roupa que traz vestida e os trocos no bolso. Deseja que as coisas não pareçam escorrer-lhe por entre os dedos como areia, poder ter algo sem ter de o roubar.

— Estás a olhar para essa sandes como se ela te tivesse dado um desgosto de amor.

Addie olha para Henry e esboça um sorriso.

— Está com tão bom aspeto — diz ela. — Estou só a pensar como será triste quando tiver desaparecido.

Ele suspira num lamento fingido.

— A pior parte de todas as refeições é quando chegam ao fim.

Pegam na comida e instalam-se numa faixa de relva no parque, um charco de luz a desaparecer rapidamente. Henry adiciona os falafel e uma encomenda de dumplings ao gyro e às batatas fritas dela, e partilham-nos, trocando dentadas como cartas num jogo de gin rummy.

Henry estende a mão para os falafel, e Addie lembra-se da mulher no guiché.

— O que foi aquilo? — pergunta. — Na carrinha, aquela mulher parecia prestes a desatar a chorar. Conhece-la?

Henry abana a cabeça.

— Disse que lhe fazia lembrar o filho.

Addie olha para ele. Não é mentira, não lhe parece, mas também não é totalmente verdade. Há algo que não está a dizer, mas não sabe como lho perguntar. Espeta o garfo num dumpling e enfia-o na boca.

A comida é uma das melhores coisas de se estar vivo.

Não apenas a comida. A comida boa. Há um abismo entre a sobrevivência e a satisfação, e, enquanto ela passou a melhor parte dos trezentos anos a comer para enganar a fome, demorou-se nos últimos cinquenta a deliciar-se com a descoberta do sabor. Uma grande parte da vida torna-se rotina, mas a comida é como música, como arte, cheia de promessas de algo novo.

Limpa a gordura dos dedos e deita-se na relva ao lado de Henry, sentindo-se maravilhosamente cheia. Sabe que não irá durar. Que a saciedade é como tudo na sua vida. Esgota-se demasiado depressa. Mas ali, naquele momento, sente-se... perfeita.

Fecha os olhos e sorri e pensa que poderia ficar ali toda a noite, apesar de começar a ficar frio, deixar que o crepúsculo desse lugar à escuridão, aninhar-se em Henry e ansiar pelo aparecimento das estrelas.

Ouve-se um som claro vindo do bolso do casaco dele.

Henry atende.

— Olá, Bea — começa e depois senta-se abruptamente. Addie só consegue ouvir metade da chamada, mas é capaz de adivinhar o resto.

— Não, claro que não me esqueci. Eu sei, estou atrasado, desculpa. Estou a caminho. Sim, eu lembro-me.

Henry desliga, põe a cabeça entre as mãos.

— A Bea organizou um jantar. E fiquei de levar a sobremesa.

Olha para trás, para as carrinhas da comida, como se uma delas tivesse a resposta, olha para o céu, que passou do crepúsculo à escuridão. Mas agora não há tempo para lamúrias, agora é tarde.

— Anda — diz Addie, puxando para o levantar. — Sei de um sítio.

A melhor pastelaria francesa de Brooklyn não tem letreiro.

Assinalada apenas por um toldo amarelo-manteiga, por uma montra de vidro estreita entre duas fachadas largas de tijolo, pertence a um homem chamado Michel. Todas as manhãs, de madrugada, este chega e dá início ao lento cortejo da sua arte. Tartes de maçã, com a fruta cortada tão fina como folhas de papel, operas, com a parte de cima polvilhada com cacau, e petit fours cobertos com maçapão e pequenas rosas guarnecidas.

A loja agora está fechada, mas consegue ver a sombra do seu proprietário enquanto se desloca pela cozinha, nas traseiras, e Addie bate com os nós dos dedos na porta de vidro e espera.

— Tens a certeza disto? — pergunta Henry enquanto a forma se precipita para a frente da loja e abre a porta.

— Estamos fechados — diz ele, numa pronúncia marcada, e Addie passa de inglês para francês enquanto explica que é amiga de Delphine, e o homem suaviza perante a referência ao nome da filha, suavizando cada vez mais ao som da sua língua nativa, e ela compreende. Sabe falar alemão, italiano, espanhol, checo, mas o francês é diferente, o francês é o pão a assar no forno da mãe, o francês são as mãos do pai a esculpir a madeira, o francês é Estele a murmurar para o seu jardim.

O francês é regressar a casa.

— Pela Delphine — responde ele, abrindo a porta —, tudo.

Dentro da lojinha, Nova Iorque desaparece, e é pura Paris, o sabor do açúcar e da manteiga ainda no ar. As montras encontram-se agora praticamente vazias, apenas uma mão-cheia das belas criações permanece nas prateleiras, brilhantes e esparsas como flores silvestres num campo vazio.

Ela conhece Delphine, embora, obviamente, a jovem não a conheça a ela. Também conhece Michel, visita aquela loja como qualquer outra pessoa poderia visitar uma fotografia, demoradamente, como uma memória.

Henry mantém-se alguns passos atrás enquanto Addie e Michel fazem conversa banal, cada um deles satisfeito com o intervalo breve permitido pela língua do outro, e o pasteleiro coloca cada um dos bolos restantes numa caixa cor-de-rosa e entrega-lhos. E, quando ela se oferece para pagar, perguntando-se se terá dinheiro suficiente para isso, Michel abana a cabeça e agradece-lhe pelo sabor a casa, e ela deseja-lhe boa noite, e, de volta à rua, Henry olha para ela como se tivesse realizado um truque de magia, uma proeza estranha e deslumbrante.

Puxa-a para o círculo dos seus braços.

— És espantosa — diz, e ela cora, nunca tendo tido público antes.

— Toma — diz ela, empurrando a caixa de bolos para as mãos dele. — Diverte-te.

O sorriso de Henry esbate-se. A testa enruga-se como um tapete.

— Porque não vens comigo?

E ela não sabe como dizer Não posso quando não há explicação, quando ia passar a noite inteira com ele. Por isso diz:

— Não devo.

E ele diz:

— Por favor — e ela sabe que é uma péssima ideia, que não poderá manter o segredo da sua maldição a pairar sobre tantas cabeças, sabe que não o pode guardar só para si, que tudo não passa de um jogo com tempo emprestado.

Mas é assim que se caminha até ao fim do mundo.

É assim que se vive para sempre.

Há um dia, e depois o seguinte, e o outro, e aproveita-se aquilo que é possível, saboreia-se cada segundo roubado, agarra-se cada momento, até ter desaparecido.

Por isso aceita.

Caminham, de braço dado, enquanto o princípio da noite passa de fresco a frio.

— Há alguma coisa que deva saber? — diz ela. — Sobre os teus amigos?

Henry franze o sobrolho, enquanto pensa.

— Bem, o Robbie é ator. É muito bom, mas pode ser um pouco... difícil? — solta uma expiração profunda. — Andámos, na faculdade. Foi o único tipo por quem me apaixonei.

— Mas não resultou?

Henry ri-se, mas a respiração é superficial.

— Não. Acabou comigo. Mas foi há séculos. Agora somos amigos, mais nada. — Abana a cabeça, como que para a limpar. — Depois há a Bea, que já conheceste. É o máximo. Está a tirar o doutoramento e vive com um tipo chamado Josh.

— Namoram?

Henry emite um risinho.

— Não. A Bea é gay. E ele também... acho. Na verdade, não sei, é um assunto que tem sido alvo de especulação. Mas a Bea provavelmente irá convidar a Mel ou a Elise, seja qual for das duas com quem ande agora... é uma espécie de namoro em pêndulo. Oh, e não faças perguntas sobre a Professora. — Addie olha para ele, com ar interrogativo, e ele explica. — A Bea teve um caso, há alguns anos, com uma professora da Columbia. A Bea estava apaixonada, mas ela era casada, e tudo se desmoronou.

Addie repete os nomes para si mesma, e Henry sorri.

— Não é um teste — diz. — Não vais chumbar.

Addie deseja que ele tivesse razão.

Henry respira com um pouco mais de intensidade ao seu lado. Hesita, expira.

— Há outra coisa que devias saber — diz finalmente — sobre mim.

O coração de Addie martela-lhe no peito enquanto se prepara para uma confissão, para uma verdade relutante, uma explicação para isto, para eles. Mas Henry limita-se a olhar para cima, para a noite sem estrelas, e diz:

— Houve uma rapariga.

Uma rapariga. Não responde a nada.

— O nome dela era Tabitha — diz, e ela sente a dor em cada sílaba. Pensa no anel na gaveta dele, no lenço manchado de sangue enrolado à sua volta.

— O que aconteceu?

— Pedi-a em casamento, e ela recusou.

É verdade, pensa, uma versão disto. Mas Addie começa a perceber quão bom Henry é a contornar mentiras, deixando ao mesmo tempo verdades por contar.

— Todos temos as cicatrizes de guerra — diz ela. — Pessoas no nosso passado.

— Tu também? — pergunta ele, e, por um instante, está em Nova Orleães, o quarto em desordem, com aqueles olhos verdes-negros de raiva, enquanto o edifício começa a arder.

— Sim — diz ela baixinho. E depois, sondando delicadamente: — E também temos os nossos segredos.

Ele olha para ela, e Addie vê aquilo deslizar-lhe pelos olhos, aquilo que não dirá, mas ele não é Luc, e o verde não desvenda nada.

Diz-me, pensa ela. Seja o que for.

Mas não o faz.

Chegam ao edifício de Bea em silêncio, e ela abre-lhes a porta com um zumbido do trinco, e, enquanto sobem a escada, ela desvia os pensamentos para a festa e pensa que talvez corra bem.

Talvez se lembrem dela, no fim dessa noite.

Talvez, se ele estiver com ela...

Talvez...

Mas depois a porta abre-se, e Bea está ali, com as luvas de forno apoiadas nas ancas, as vozes a derramarem-se pelo apartamento atrás dela enquanto diz:

— Henry Strauss, estás tão atrasado que é bom que isso seja a sobremesa. — E Henry estende-lhe a caixa de bolos como se fosse um escudo, mas, enquanto Bea lhe retira a caixa das mãos, olha por cima dele. — E quem é esta?

— É a Addie — diz ele. — Conheceste-a na loja.

Bea revira os olhos.

— Henry, não tens assim tantos amigos que nos possas confundir. Além disso — diz, lançando a Addie um sorriso retorcido —, nunca esqueceria um rosto como o teu. Tem algo... de intemporal.

A testa de Henry enruga-se.

Vocês conheceram-se, e foi exatamente isso que disseste. — Olha para Addie. — Lembras-te disto, não lembras?

Addie hesita, encurralada entre a verdade impossível e a mentira mais fácil, começando a abanar a cabeça.

— Desculpa, eu...

Mas Addie é salva pela chegada de uma rapariga envergando um vestido de verão amarelo, um desafio ousado ao frio do lado de fora das vidraças, e Henry sussurra-lhe ao ouvido que é Elise. A rapariga beija Bea e retira-lhe a caixa das mãos, dizendo que não consegue encontrar o saca-rolhas, e Josh aparece para lhes levar os casacos e dizer que entrem.

O apartamento consiste numas águas-furtadas transformadas, um espaço aberto em que a entrada comunica com a sala, e a sala comunica com a cozinha, e está tudo agradavelmente livre de paredes e de portas.

A campainha volta a tinir, e, momentos mais tarde, um rapaz entra disparado como um cometa, preenchendo completamente o ambiente, com uma garrafa de vinho numa mão e um cachecol na outra. E, apesar de Addie só o ter visto em fotografias na parede em casa de Henry, sabe imediatamente que é Robbie.

Entra de rompante pela entrada, beijando Bea na face, acena para Josh e abraça Elise, voltando-se para Henry, para depois reparar nela.

— Quem és tu? — diz.

— Não sejas indelicado — responde Henry. — Esta é a Addie.

— A acompanhante do Henry — acrescenta Bea, e Addie deseja que não o tivesse dito, porque as palavras caem como água fria no bom humor de Robbie. Henry também deve ter percebido, porque lhe pega na mão e diz: — A Addie é uma caça-talentos.

— Oh? — pergunta Robbie, reacendendo-se um pouco. — De que tipo?

— Arte. Música. Qualquer coisa.

Ele franze o sobrolho.

— Os caça-talentos não costumam especializar-se em alguma coisa?

Bea dá-lhe uma cotovelada.

— Comporta-te — diz, indo buscar o vinho.

— Não sabia que era para trazer acompanhantes — diz ele, seguindo-a até à cozinha.

Bea dá-lhe umas palmadinhas no ombro.

— Podes usar o Josh para isso.

A mesa de jantar encontra-se entre o sofá e a bancada da cozinha, e Bea põe mais um lugar enquanto Henry abre as duas primeiras garrafas de vinho e Robbie serve e Josh leva uma salada para a mesa e Elise vai ver a lasanha no forno e Addie se mantém fora do caminho.

Está habituada a receber toda a atenção ou nenhuma. A ser o centro breve, mas iluminado, de um mundo de estranhos ou uma sombra nas suas margens. Isto é diferente. É novo.

— Espero que estejam todos com fome — diz Bea, pousando a lasanha e o pão de alho no centro da mesma.

Henry faz uma leve careta ao ver a travessa, e Addie quase ri, lembrando-se do seu festim com a comida das carrinhas. Ela está sempre esfomeada, com a última refeição a não passar agora de uma memória, e aceita um prato de bom grado.