Paris, França

29 de julho de 1751

cap9

Uma mulher sozinha é uma visão escandalosa.

E, no entanto, Addie veio para se deliciar com as murmurações. Está sentada nas Tuileries, com as saias espalhadas à sua volta em cima do banco, folheia as páginas do seu livro e sabe que está a ser observada. Ou, antes, fitada. Mas de que vale preocupar-se com isso? Uma mulher sentada sozinha ao sol não é um crime, e não é como se os rumores se fossem espalhar para lá do parque. Talvez os transeuntes fiquem desconcertados e reparem na estranheza da cena, mas todos se esquecerão antes de terem a oportunidade de mexericar.

Vira a página, deixa os olhos percorrerem as palavras impressas. Por essa altura, Addie rouba livros com a mesma avidez que comida, uma parte vital da sua alimentação diária. E, embora prefira romances a filósofos — aventuras e fugas —, este em especial é uma base, uma chave, concebida para lhe dar acesso a uma porta específica.

Escolheu o momento oportuno para a sua presença no parque, sentou-se na orla do jardim, junto ao percurso que sabe que Madame Geoffrin tende a preferir. E, quando a mulher aparece a caminhar vagarosamente pelo caminho, sabe exatamente o que fazer.

Vira a página, fingindo estar absorta.

Pelo canto do olho, Addie consegue ver a mulher aproximar-se, com a criada um passo atrás, os braços cheios de flores, e levanta-se, com os olhos ainda cravados no livro, vira-se e dá dois passos antes da colisão inevitável, tendo o cuidado de não fazer cair a senhora, mas de apenas a assustar, enquanto o livro tomba por terra, entre elas.

— Que tolice — irrompe Madame Geoffrin.

— Lamento imenso — diz Addie ao mesmo tempo. — Ficou magoada?

— Não — diz a mulher, deixando o olhar passar da atacante para o livro. — Mas o que a distraiu dessa maneira?

A criada apanha o livro caído e entrega-o à sua senhora.

Geoffrin estuda o título.

Pensées Philosophiques.

— Diderot — observa. — E quem a ensinou a ler coisas tão elevadas como estas?

— Foi o meu pai.

— Ele próprio? Que rapariga afortunada.

— Foi o princípio — responde Addie —, mas uma mulher tem de assumir a responsabilidade pela sua própria educação, pois nenhum homem o fará realmente.

— Grande verdade — diz Geoffrin.

Estão a representar um enredo, embora a mulher mais velha não o saiba. A maior parte das pessoas só tem uma oportunidade de causar uma primeira impressão positiva, mas, felizmente, por esta altura, Addie já teve várias.

A mulher mais velha franze o sobrolho.

— Mas aqui no parque, sem qualquer serviçal a acompanhá-la? Sem acompanhante? Não se preocupa com o falatório alheio?

Um sorriso desafiante lampeja nos lábios de Addie.

— Suponho que prefiro a liberdade à reputação.

Madame Geoffrin ri-se, um som breve, mais surpresa do que divertimento.

— Minha cara, existem formas de contornar o sistema e maneiras de o vergar. Como se chama?

— Marie Christine — responde Addie — La Trémoille — acrescenta, saboreando a forma como os olhos da mulher se abrem, em resposta. Passou um mês a aprender os nomes de famílias nobres e a sua proximidade de Paris, eliminando aqueles que poderiam suscitar demasiadas perguntas, descobrindo uma árvore com ramos suficientemente largos para que um primo pudesse passar despercebido. E, felizmente, embora a salonnière se orgulhe de conhecer toda a gente, não os pode conhecer a todos do mesmo modo.

— La Trémoille. Mais non! — diz Madame Geoffrin, mas não há descrença nas suas palavras, apenas surpresa. — Terei de castigar Charles por a ter mantido escondida.

— Certamente — diz Addie com um ar acanhado, sabendo que nunca chegará a tanto. — Bem,

Madame — continua, estendendo o braço à espera da devolução do livro. — Tenho de ir. Não gostaria de lesar igualmente a sua reputação.

— Que tolice — diz Geoffrin, com os olhos a brilharem de prazer. — Sou bastante imune ao escândalo. — Entrega o livro a Addie, mas o gesto não é de despedida. — Tem de vir ao meu salão. O seu Diderot estará lá.

Addie hesita, por uma mera fração de segundo. Cometeu um erro, da última vez que os seus caminhos se cruzaram, quando se decidiu por um ar de falsa humildade. Mas, desde que percebeu que a salonnière prefere mulheres que se afirmam, desta vez sorri de satisfação.

— Teria imenso prazer.

— Formidável — diz Madame Geoffrin. —Apareça daqui a uma hora.

E ali a sua teia tem de se tornar precisa. Um ponto falhado, e tudo se desmoronará.

Addie olha para si própria.

— Oh — diz, deixando que a deceção lhe varra o rosto. — Receio não ter tempo de ir a casa mudar de roupa, e certamente esta não será adequada.

Sustém a respiração, à espera de que a outra mulher responda, e, quando o faz, é para lhe estender o braço.

— Não se preocupe — diz ela. — Tenho a certeza de que as minhas criadas lhe arranjarão algo que lhe sirva.

Caminham juntas pelo parque, com a serviçal a segui-las.

— Porque nunca nos teremos cruzado antes? Conhecemos toda a gente digna de nota.

— Eu não sou digna de nota — objeta Addie. — E estarei por cá apenas durante o verão.

— A sua pronúncia é absolutamente parisiense.

— Tempo e prática — responde, e, evidentemente, é verdade.

— E, no entanto, não é casada?

Mais uma volta, mais um teste. Há algum tempo, Addie fora viúva, casara, mas hoje, decide, não é casadoira.

— Não — afirma. — Confesso que não desejo um amo e ainda espero encontrar alguém que me iguale.

A resposta merece um sorriso da sua interlocutora.

O interrogatório continua mesmo depois de terem passado pelo parque e percorrido a rue Saint Honoré, quando a mulher finalmente se despede para se preparar para o salão.

Addie observa a salonnière afastar-se com alguma pena. A partir desse momento, estará por sua conta.

A criada condu-la ao piso superior e deixa um vestido do guarda-fato mais próximo, em cima da cama. É de seda brocada, um vestido com motivos, com uma camada de renda em torno do pescoço. Nada que ela própria escolhesse, mas muito elegante. Addie viu em tempos uma peça de carne envolvida em ervas e atada, pronta para o forno, e isso fê-la lembrar-se da moda francesa da época.

Addie senta-se diante de um espelho e arranja o cabelo, ouvindo as portas abrir e fechar lá em baixo, a casa a agitar-se com os movimentos dos convidados, a chegar. Tem de esperar que o salão esteja florescente, as salas suficientemente apinhadas para se conseguir imiscuir entre eles.

Addie dá um toque final ao cabelo e alisa as saias e, quando o som lá em baixo se transforma em algo suficientemente firme, as vozes a emaranharem-se com o tilintar dos copos, desce as escadas até à sala principal.

Da primeira vez que Addie esteve no salão, foi por sorte, não por o ter planeado. Ficou espantada ao descobrir um lugar onde uma mulher podia falar ou pelo menos ouvir, onde se podia deslocar sozinha sem juízos de valor ou condescendência. Apreciou a comida, a bebida, a conversa e a companhia. Podia fingir estar entre amigos em vez de estranhos.

Até dobrar uma esquina e ver Remy Laurent.

Ali estava ele, empoleirado num escabelo entre Voltaire e Rousseau, a agitar as mãos enquanto falava, com os dedos ainda manchados de cinzento, da tinta.

Vê-lo foi como saltar um degrau, como tecido a prender-se num prego. Um momento de desequilíbrio.

O seu amante endurecera com a idade, com a diferença entre os 23 e os 51 assinalada nas rugas do rosto. Um vinco na testa de horas passadas a ler, um par de óculos agora equilibrados no nariz. Mas, depois, qualquer tema lhe acendia uma faúlha nos olhos, e via o rapaz que fora, o jovem apaixonado que viera para Paris em busca daquilo, grandes mentes com grandes ideias.

Não há sinal dele hoje.

Addie retira um copo de vinho de uma mesa baixa e avança de sala em sala como uma sombra lançada sobre uma parede, sem se fazer notar, mas à vontade. Ouve e trava conversas agradáveis e sente-se entre as pregas da história. Conhece um naturalista com preferência pela vida marinha e, quando confessa que nunca viu o mar, este demora-se a meia-hora seguinte a banqueteá-la com histórias sobre a vida dos crustáceos, e é uma forma muito agradável de passar a tarde, e até a noite — essa noite mais do que a maior parte delas —, em que precisa de distração.

Passaram-se seis anos — mas não quer pensar nisso, nele.

À medida que o sol se põe, e que o vinho é trocado por vinho do Porto, está a viver um serão maravilhoso, a apreciar a companhia de cientistas, de homens de letras.

Já devia saber que ele iria dar cabo disso.

Luc entra na sala como uma lufada de vento frio, vestido em tons de cinza e preto, desde as botas ao lenço no pescoço. Os seus olhos verdes são a única gota de cor nele.

Seis anos, e alívio é a palavra errada para aquilo que Addie sente ao vê-lo, e, no entanto, é a que mais se aproxima. A sensação de um peso a ser pousado, uma respiração expelida, um corpo a suspirar de consolo. Não há prazer nisso, além de libertação simples e física — o alívio de trocar o desconhecido pela segurança.

Estava à espera, e agora não está.

Não, agora está preparada para os problemas, para a dor.

Monsieur Lebois — diz Madame Geoffrin, cumprimentando o convidado, e Addie pergunta-se, por um instante, se o facto de os seus caminhos se terem cruzado é apenas coincidência, se a sua sombra aprecia o salão, as mentes que ali se acolhem — mas os homens que se amontoam nesse espaço veneram o progresso e não os deuses. E a atenção de Luc já se fixou firmemente nela, com o rosto banhado por uma luz simultaneamente acanhada e ameaçadora.

Madame — diz numa voz suficientemente alta para ser ouvida —, receio que tenhais aberto demasiado as vossas portas.

O estômago de Addie tem um baque, e Madame Geoffrin recua um pouco, como se a conversa na sala parecesse falhar, cessar.

— O que quer dizer?

Tenta recuar, mas o salão está apinhado, o caminho numa desordem de pernas e cadeiras.

— Aquela mulher. — As cabeças começam a virar-se na direção de Addie. — Conhece-a? — Claro que Madame Geoffrin não a conhece, já não a conhece, mas é demasiado bem-educada para admitir esse erro.

— O meu salão está aberto a muitos, monsieur.

— Desta vez foi demasiado generosa — diz Luc. — Aquela mulher é uma vigarista e uma ladra. Uma criatura verdadeiramente desprezível. Veja — gesticula —, até traz um dos seus próprios vestidos. Melhor será revistar-lhe os bolsos e certificar-se de que não roubou mais do que pano do seu guarda-fato.

E, de um momento para o outro, transformou o jogo dela em seu favor.

Addie começa a avançar para a porta, mas há homens a rodeá-la, atrás de si.

— Detenham-na — exclama Geoffrin, e não tem outro remédio senão abandonar tudo aquilo e precipitar-se para a porta, empurrar os convidados e sair do salão, rumo à noite.

Ninguém vai no seu encalço, claro.

Exceto Luc.

A escuridão segue-a de perto, a rir baixinho.

Ela vira-se para ele.

— Pensei que tinhas mais que fazer do que atormentar-me.

— E, no entanto, acho-o tão divertido.

Addie abana a cabeça.

— Isto não é nada. Estragaste um momento, arruinaste uma noite, mas, por causa do meu dom, tenho milhões de outros; possibilidades infinitas de me reinventar. Podia voltar a entrar agora mesmo, e as tuas descortesias seriam tão esquecidas quanto o meu rosto.

O divertimento brilha naqueles olhos verdes.

— Acho que irás descobrir que as minhas palavras não se esbatem tão depressa como as tuas. — Encolhe os ombros. — Claro que não se irão lembrar de ti. Mas as ideias são muito mais bravias do que as memórias, enraízam-se muito mais depressa.

Passar-se-ão cinquenta anos até Addie se aperceber de que ele tem razão.

As ideias são mais bravias do que as memórias.

E também as pode plantar.