Nova Iorque
17 de março de 2014
Addie já acordou de centenas de formas.
Com o gelo a formar-se sobre a pele e sob um sol tão quente que a deveria ter queimado. Em espaços vazios e noutros que o deveriam ter estado. Com guerras a deflagrar por cima da sua cabeça e com o oceano a balançar contra o casco. Com sirenes e barulhos citadinos e silêncio e, uma vez, com uma cobra enroscada junto à sua cabeça.
Mas Henry Strauss acorda-a com beijos.
Planta-os um a um, como bolbos de flores, deixa-os florescer na sua pele. Addie sorri e rebola na sua direção, puxa os braços dele à volta do seu corpo, como uma capa.
A escuridão sussurra na sua cabeça: Sem mim, estarás sempre só.
Mas, em vez disso, ouve o som do coração de Henry, o murmúrio suave da sua voz no seu cabelo quando lhe pergunta se tem fome.
É tarde, e ele devia estar a trabalhar, mas diz-lhe que The Last Word fecha às segundas-feiras. Não pode saber que ela se lembra do pequeno letreiro de madeira, das horas que se seguem a cada dia. A livraria fecha apenas às terças-feiras.
Não o corrige.
Vestem-se e dirigem-se vagarosamente à loja da esquina, onde Henry compra sanduíches de ovo e queijo ao balcão e Addie deambula pela loja à procura de sumo.
E é então que ouve a campainha.
É então que vê uma cabeça arruivada e um rosto familiar, quando Robbie irrompe pela loja. É então que o seu coração se afunda, quando acontece quando saltamos um degrau, o desamparo súbito de um corpo em desequilíbrio.
Addie tornou-se boa a perder...
Mas não está pronta.
E quer parar o tempo, esconder-se, desaparecer.
Mas, dessa vez, não consegue. Robbie vê Henry, e Henry vê-a, e estão num triângulo de ruas de sentido único. Uma comédia de memória e ausência e terrível acaso, quando Henry lhe põe o braço à volta da cintura e Robbie olha para Addie com gelo nos olhos e diz:
— Quem é esta?
— Não tem piada — diz Henry. — Ainda estás com os copos?
Robbie recua, indignado.
— Estou... o quê? Não. Nunca vi esta rapariga. Nunca me disseste que andavas com alguém.
É um acidente de automóvel em câmara lenta, e Addie sabia que estava destinado a acontecer, a colisão inevitável de pessoas e lugares, tempo e circunstância.
Henry é uma coisa impossível, o seu estranho e belo oásis. Mas também é humano, e os seres humanos têm amigos, têm famílias, têm milhões de laços que os prendem a outras pessoas. Ao contrário dela, nunca foi libertado, nunca existiu num vazio.
Por isso, era inevitável.
Mas, ainda assim, não está pronta.
— Caramba, Rob, acabaste de a conhecer.
— Tenho a certeza de que me haveria de lembrar. — Os olhos de Robbie escurecem. — Mas, por outro lado, ultimamente, é difícil manter-me a par.
O espaço entre ambos desaba quando Henry avança. Addie antecipa-se, agarra-lhe na mão quando esta se ergue e puxa-o para trás.
— Henry, para.
O frasco era tão bonito que os guardara lá dentro. Mas agora o vidro está fendido. A água começa a escorrer.
Robbie olha para Henry, espantado, traído. E ela compreende. Não é justo. Nunca é justo.
— Anda — diz ela, apertando-lhe a mão.
A atenção de Henry volta-se finalmente para ela.
— Por favor — diz ela. — Vem comigo.
Saem para a rua, com a paz da manhã esquecida, deixada para trás, com o sumo de laranja e as sandes.
Henry treme de raiva.
— Desculpa — diz. — O Robbie pode ser um idiota, mas aquilo foi...
Addie fecha os olhos e escorrega pela parede abaixo.
— A culpa não é dele. — Pode recuperar aqui, suster o frasco prestes a partir-se, comprimir os dedos sobre as rachas. Mas por quanto tempo? Por quanto tempo poderá guardar Henry só para si? Por quanto tempo poderá evitar que repare na maldição?
— Não me parece que ele se lembrasse de mim.
Henry franze os olhos, claramente confuso.
— Como poderia não se lembrar?
Addie hesita.
É fácil ser sincero quando não existem palavras erradas, porque as palavras não perduram. Quando o que quer que digamos nos pertence apenas a nós.
Mas Henry é diferente, ouve-a, lembra-se, e subitamente cada palavra está cheia de peso, e a sinceridade torna-se algo pesado.
Só tem uma oportunidade.
Pode mentir-lhe, como faria com qualquer outra pessoa, mas, se começar, não conseguirá parar, e, além disso, não lhe quer mentir. Esperou demasiado para ser ouvida, vista.
E Addie lança-se em direção à verdade.
— Sabes que algumas pessoas não são boas a memorizar rostos? Olham para amigos, família, pessoas que conheceram toda a vida e não as reconhecem.
Henry franze o sobrolho.
— Teoricamente, sim...
— Bem, comigo acontece o contrário.
— Lembras-te de toda a gente?
— Não — diz Addie. — Quero dizer, sim, lembro, mas não é disso que estou a falar. A verdade é que... as pessoas me esquecem. Mesmo que nos tenhamos cruzado centenas de vezes. Esquecem-me.
— Isso não faz sentido nenhum.
Não faz. Claro que não faz.
— Eu sei — diz ela —, mas é verdade. Se voltasse agora mesmo àquela loja, o Robbie não se ia lembrar. Podias apresentar-me, mas, no momento em que eu virasse costas, no momento em que ficasse longe da vista, esquecia-se outra vez.
Henry abana a cabeça.
— Como? Porquê?
As mais pequenas perguntas. A maior resposta.
Porque fui uma tola.
Porque tinha medo.
Porque não tive cuidado.
— Porque — diz ela, encostando-se à parede de betão — fui amaldiçoada.
Henry fica a olhar para ela, com a testa franzida atrás dos óculos.
— Não compreendo.
Addie inspira profundamente, tentando acalmar os nervos. E depois, porque decidiu dizer a verdade, é o que faz.
— O meu nome é Addie LaRue. Nasci em Villon, no ano de 1691, os meus pais eram Jean e Marthe, e vivíamos numa casa de pedra, junto a um velho teixo...