Nova Iorque

4 de setembro de 2013

cap1

Um rapaz nasce com o coração partido.

Os médicos intervêm e reparam-no, devolvem-lhe a saúde, e o bebé é mandado para casa, com a sorte de estar vivo. Dizem que agora está melhor, que pode viver uma vida normal, e, no entanto, à medida que cresce, está convencido de que continua a ter algo errado dentro de si.

O sangue bombeia, as válvulas abrem e fecham, e, nas ecografias e nos ecrãs, tudo funciona como deveria. Mas há algo que não está bem.

Deixaram-lhe o coração demasiado aberto.

Esqueceram-se de voltar a fechar a armadura do peito.

E agora ele sente... demasiado.

Outras pessoas chamar-lhe-iam sensível, mas é mais do que isso. O botão está avariado, o volume está no máximo. Momentos de alegria são registados como breves, mas extáticos. Momentos de dor prolongam-se por muito tempo e são insuportavelmente intensos.

Quando o seu primeiro cão morre, Henry chora durante uma semana. Quando os pais discutem e não consegue suportar a violência das suas palavras, foge de casa. Levam mais de um dia a conseguirem trazê-lo de volta. Quando David deita fora o urso da sua infância, quando a primeira namorada, Abigail, o deixa especado no baile, quando têm de dissecar um porco na sala de aula, quando perde o postal que o avô lhe deu antes de morrer, quando descobre Liz a traí-lo durante a viagem de finalistas, quando Robbie acaba com ele antes da universidade, de todas as vezes, seja algo insignificante ou importante, tem a sensação de que o coração está a quebrar-se de novo no peito. Henry tem 14 anos da primeira vez que rouba um gole de uma bebida alcoólica do pai, só para baixar o volume. Tem 16 quando surripia dois comprimidos do armário da mãe, só para adormecer a dor. Tem 20 quando fica tão pedrado que acha que consegue ver as fendas na pele, os pontos em que se está a desfazer.

O seu coração tem uma fuga.

Deixa entrar a luz.

Deixa entrar as tempestades.

Deixa entrar tudo.

O tempo passa terrivelmente depressa.

Um piscar de olhos, e vai a meio da escolaridade, paralisado pela ideia de que, o que quer que escolha fazer, significa não fazer centenas de outras coisas, por isso muda de área dezenas de vezes antes de, finalmente, acabar em Teologia, e, por algum tempo, parece o caminho certo, mas é apenas um reflexo do orgulho no rosto dos pais, porque presumem que têm um rabino em formação, mas a verdade é que não quer exercer, vê os textos sagrados como histórias, epopeias arrebatadoras, e, quanto mais estuda, menos acredita em alguma coisa daquilo.

Um piscar de olhos, e tem 24 anos e viaja pela Europa, pensando — e esperando — que a mudança desencadeie algo em si, que um vislumbre do mundo, vasto e imponente, ponha o seu próprio mundo em perspetiva. E, por algum tempo, isso acontece. Mas não há emprego, não há futuro, apenas um interlúdio, e, quando acaba, a conta bancária está esvaída e não se encontra mais perto de alguma coisa.

Um piscar de olhos, e tem 26 anos e é chamado ao gabinete do orientador porque este percebe que já não está para ali virado e aconselha-o a procurar outro caminho e assegura-lhe que irá encontrar a sua vocação, mas o problema é precisamente esse, nunca se sentiu atraído por uma coisa. Não há um impulso violento numa direção, mas um empurrão mais suave para centenas de caminhos diferentes, e agora todos eles parecem fora do alcance.

Um piscar de olhos, e tem 28 anos, e toda a gente já vai muito mais à frente, e ainda está a tentar encontrar o caminho, e é irónico pois, ao desejar viver, aprender, encontrar-se, se perdeu.

Um piscar de olhos, e conhece uma rapariga.

A primeira vez que Henry viu Tabitha Masters, ela estava a dançar.

Devia haver dez como ela em palco. Henry estava ali para ver Robbie atuar, mas os membros dela tinham poder de atração, a sua forma, uma espécie de gravidade. O seu olhar continuava a incidir sobre ela. Era o tipo de beleza de tirar o fôlego, aquele que não se consegue captar numa fotografia, porque a magia está no movimento. A forma como se mexia era uma história que se contava apenas com uma melodia e um vergar de coluna, com uma mão alongada, uma descida lenta até ao solo escurecido.

A primeira vez que se conheceram foi numa festa depois de um espetáculo.

No palco, os seus traços eram uma máscara, uma tela para a arte das outras pessoas. Mas ali, na sala apinhada de gente, Henry só conseguia ver o seu sorriso. Ocupava todo o seu rosto, do queixo pontiagudo à linha do cabelo, um tipo de alegria devoradora que não conseguia parar de observar. Estava a rir-se de qualquer coisa — nunca descobriu de quê —, e era como se alguém tivesse acendido todas as luzes da sala.

E, ali, nesse momento, o seu coração começou a doer.

Henry demorou trinta minutos e três bebidas para arranjar coragem para dizer olá, mas, a partir desse momento, foi fácil. O ritmo e o fluxo de frequências em sincronia. E, pelo fim da noite, apaixonava-se.

Já se apaixonara antes.

Sophia no liceu.

Robbie na faculdade.

Sarah, Ethan, Jenna — mas era sempre difícil, complicado. Cheio de começos e paragens, de viragens no sítio errado e de becos sem saída. Mas, com Tabitha, era fácil.

Dois anos.

Foi o tempo que estiveram juntos.

Dois anos de jantares e pequenos-almoços e gelados no parque e ensaios de dança e ramos de rosas, de dormirem em casa um do outro, de brunches aos fins de semana e de ver séries televisivas de enfiada e de viagens ao Norte para ela conhecer os pais dele.

Dois anos a beber menos por causa dela e a manter-se sóbrio por causa dela, a arranjar-se por causa dela e a comprar coisas para as quais não tinha dinheiro porque queria fazê-la sorrir, queria fazê-la feliz.

Dois anos, e nem uma única discussão, e agora pensa que afinal talvez não fosse assim tão bom.

Dois anos — e, algures entre uma pergunta e uma resposta, tudo desabou.

Com um joelho no chão e um anel no meio do parque, Henry é um verdadeiro idiota, porque ela disse não.

Ela disse não, e essa nem foi a pior palavra.

— És espetacular — disse ela. — És mesmo. Mas não és...

E não termina, e não tem de o fazer, porque ele sabe o que vem a seguir.

Não és a pessoa certa.

Não és suficiente.

— Pensei que te querias casar.

— E quero. Um dia.

As palavras, claras como a água, apesar de nunca terem sido ditas.

Mas não contigo.

E depois desapareceu, e agora Henry está ali, no bar, e está embriagado, mas não suficientemente embriagado.

Sabe, porque o mundo ainda ali está, porque toda a noite ainda parece demasiado real, porque tudo ainda magoa. Está reclinado para a frente, com o queixo apoiado nos braços dobrados, especado a olhar por entre a coleção de garrafas vazias em cima da mesa. A sua imagem devolve-lhe o olhar de meia-dúzia de reflexos distorcidos.

O Merchant está cheio de gente, um muro de ruído branco, por isso Robbie tem de gritar por cima da barulheira.

— Ela que se lixe.

E, por algum motivo, vindo do seu ex-namorado, aquilo não faz Henry sentir-se muito melhor.

— Estou bem — diz, da forma automática com que as pessoas respondem sempre que se lhes pergunta como estão, apesar de o seu coração estar escancarado, pendurado pelas dobradiças.

— É melhor assim — acrescenta Bea, e se fosse outra pessoa qualquer a dizê-lo, a rapariga tê-lo-ia expulsado para o canto do bar por ser uma banalidade. Dez minutos de intervalo para lugares-comuns. Mas é tudo o que têm para ele nessa noite.

Henry termina a bebida que tem à sua frente e pega noutra.

— Calma, miúdo — diz Bea, esfregando-lhe a nuca.

— Estou bem — volta a dizer.

E ambos o conhecem o suficiente para saber que é mentira. Conhecem o seu coração despedaçado. E ambos o apoiaram durante as suas tempestades. São as melhores pessoas da sua vida, aquelas que o mantêm de pé ou, pelo menos, que o impedem de se desmoronar. Mas, naquele momento, existem demasiadas fendas. Naquele momento, existe um fosso entre as palavras deles e os ouvidos dele, as mãos deles e a pele dele.

Estão mesmo ali, mas parecem estar muito longe.

Olha para cima, estudando as suas expressões, repletas de comiseração, sem surpresa, e uma consciência cai sobre ele como um arrepio.

— Vocês sabiam que ela ia recusar.

O silêncio prolonga-se um pouco de mais. Bea e Robbie trocam um olhar, como se estivessem a tentar decidir quem tomará a iniciativa, e então Robbie estende o braço para lhe agarrar a mão.

— Henry...

Ele recua.

— Vocês sabiam.

Agora está de pé, quase a embater na mesa atrás dele.

O rosto de Bea franze-se.

— Vá lá. Senta-te.

— Não. Não. Não.

— Ei — diz Robbie, apoiando-o. — Vou levar-te a casa.

Mas Henry detesta a forma como Robbie está a olhar para ele, por isso abana a cabeça, apesar de o gesto fazer a sala toldar-se.

— Não — diz ele. — Só quero estar sozinho.

A maior mentira que alguma vez disse.

Mas a mão de Robbie solta-se, e Bea abana a cabeça na direção dele, e ambos deixam Henry ir-se embora.

Henry ainda não está suficientemente bêbedo.

Entra numa loja de bebidas e compra uma garrafa de vodca a um tipo que olha para ele como se já tivesse bebido demasiado, mas também como se claramente precisasse daquilo. Arranca a tampa com os dentes enquanto começa a chover.

O telemóvel vibra no bolso.

É provavelmente Bea. Ou Robbie. Mais ninguém lhe ligaria.

Deixa-o tocar, sustém a respiração até parar. Diz para si mesmo que, se voltar a tocar, atenderá. Se voltarem a ligar, dir-lhes-á que não está bem. Mas o telemóvel não toca uma segunda vez.

Não os culpa por isso, agora não, depois também não. Sabe que não é um amigo fácil, sabe que devia ter antecipado aquilo, que devia ter...

A garrafa escorrega-lhe por entre os dedos, estatela-se no passeio, e devia deixá-la ali, mas não o faz. Baixa-se para a apanhar, mas perde o equilíbrio. A mão cai sobre o vidro partido, e Henry volta a levantar-se. Dói, claro que dói, mas a dor é um pouco amortecida pela vodca, pelo poço de mágoa, pelo seu coração destroçado, por tudo o resto.

Henry procura à pressa o lenço no bolso, a seda branca bordada com um T prateado. Não queria uma caixa — o estojo clássico e impessoal que denunciava sempre a pergunta —, mas agora, enquanto puxa o lenço para fora, o anel solta-se e saltita pelo passeio húmido.

As palavras ecoam-lhe na cabeça.

És espetacular, Henry. És mesmo. Mas não és...

Comprime o lenço contra a mão ferida. Em segundos, a seda fica manchada de vermelho. Arruinada.

Não és suficiente.

As mãos são como as cabeças; sangram sempre demasiado.

Foi o irmão, David, quem lho disse. David, o médico, que sabia o que queria ser desde os 10 anos de idade.

É fácil mantermo-nos no caminho certo quando a estrada segue a direito e os passos estão numerados.

Henry vê o lenço ficar vermelho, olha para baixo, para o diamante, no passeio, e pensa em deixá-lo ali, mas não se pode dar ao luxo de o fazer, por isso obriga-se a dobrar-se e a apanhá-lo.

Bebe um copo sempre que ouvires que não és suficiente.

Que não és a pessoa certa.

Que não tens o aspeto certo.

Que não tens a concentração certa.

Que não tens o impulso certo.

Que não tens o tempo certo.

Que não tens o emprego certo.

Que não tens o caminho certo.

Que não tens o futuro certo.

Que não tens o presente certo.

Que não tens o eu certo.

Tu não.

(Eu não?)

Falta simplesmente qualquer coisa.

(Falta...)

A nós.

O que poderia ter feito?

Nada. É apenas...

(A pessoa que és.)

Não pensei que fosse uma relação séria.

(És demasiado...

... doce.

... delicado.

... sensível.)

Simplesmente não nos vejo ficar juntos.

Conheci outra pessoa.

Desculpa.

Não és tu.

Aguenta.

Não estamos no mesmo comprimento de onda.

Não estamos em sintonia.

Não és tu.

Não podemos escolher por quem nos apaixonamos.

(E por quem não nos apaixonamos.)

És um amigo extraordinário.

Vais trazer felicidade à rapariga certa.

Mereces melhor.

Vamos ficar amigos.

Não te quero perder.

Não és tu.

Desculpa.