cap2

E agora sabe que bebeu demasiado.

Estava a tentar alcançar o ponto em que deixaria de sentir, mas pensa que o poderá ter ultrapassado, que poderá dispersado para um sítio pior. A cabeça rodopia, uma sensação que há muito deixou de ser agradável. Descobre uns quantos comprimidos no bolso de trás, ali enfiados pela irmã, Muriel, na sua última visita. Chapelinhos de chuva cor-de-rosa, foi o que disse. Engole-os a seco enquanto o chuvisco se transforma numa carga de água.

A água pinga-lhe do cabelo, escorrendo-lhe em fios pelos óculos e encharcando-lhe a camisa.

Não quer saber.

Talvez a chuva o limpe.

Talvez o arraste consigo.

Henry chega ao seu prédio, mas não se consegue obrigar a subir os seis degraus até à porta, os vinte e quatro que se seguem até ao seu apartamento, que pertence a um passado onde tinha um futuro, por isso afunda-se contra o pilar, recosta-se e olha para cima, para o ponto em que o terraço se encontra com o céu, e pergunta-se quantos mais degraus serão precisos para chegar ao parapeito. Obriga-se a parar, comprime as palmas das mãos contra os olhos e diz para si mesmo que é apenas uma tempestade.

Reforça as escotilhas e espera que passe.

É apenas uma tempestade.

É apenas uma tempestade.

É apenas...

Não tem bem a certeza de quando o homem se senta ao seu lado no degrau.

Num segundo Henry está sozinho, no segundo seguinte não está.

Ouve o estalido de um isqueiro, uma pequena chama a dançar-lhe no canto do olho. Depois uma voz. Por um segundo apenas, parece vir de toda a parte e depois mesmo do seu lado.

— Noite má. — Pergunta sem ponto de interrogação.

Henry olha e vê um homem, vestido com um fato cor de carvão lustroso sob uma gabardine preta aberta e, por um instante terrível, pensa que é o irmão, David. Que está ali para recordar a Henry todos os sentidos em que este é uma desilusão.

Têm o mesmo cabelo preto, o mesmo maxilar saliente, mas David não fuma, não o apanhavam nem morto naquela parte de Brooklyn e não é tão bem-parecido. Quanto mais Henry olha para o estranho, mais as semelhanças se esbatem — substituídas pela perceção de que o homem não está a ficar molhado.

Apesar de a chuva continuar a cair com força, continuar a ensopar o casaco de malha de Henry, a sua camisa de algodão, a agarrar-lhe a pele com mãos frias. O estranho do fato elegante não tenta proteger a pequena chama do isqueiro ou o próprio cigarro. Dá uma baforada longa reclina os cotovelos para trás, contra os degraus encharcados, e vira o queixo para cima, como se desse as boas-vindas à chuva.

Esta não o chega a atingir.

Cai à sua volta, mas ele mantém-se seco.

Henry pensa então que o homem é um fantasma. Ou um mago. Ou, muito provavelmente, uma alucinação.

— O que desejas? — pergunta o estranho, ainda a estudar o céu, e Henry encolhe-se, instintivamente, mas não há raiva na voz do homem. No máximo, está curioso, a inquirir. A cabeça volta a inclinar-se para baixo e olha para Henry com os olhos mais verdes que este já viu. Tão brilhantes que cintilam no escuro.

— Neste momento, neste instante — diz o estranho. — O que desejas?

— Ser feliz — responde Henry.

— Ah — diz o estranho, com o fumo a deslizar-lhe por entre os lábios —, ninguém te pode dar isso.

A ti não.

Henry não faz ideia de quem possa ser este homem ou se é real, até, e sabe, apesar da névoa da bebida e dos comprimidos, que deveria levantar-se e ir para dentro. Mas não consegue obrigar as pernas a moverem-se, o mundo é demasiado pesado, e as palavras agora continuam a irromper, derramando-se dele.

— Não sei o que querem de mim — diz. — Não sei quem querem que seja. Dizem-nos para sermos nós próprios, mas não falam a sério, e estou simplesmente cansado... — a voz quebra. — Estou cansado de ficar aquém das expectativas. Cansado de estar... não é o facto de estar sozinho. Não me importo de estar sozinho. Mas isto... — os dedos entrelaçam-se sobre o peito da camisa. — Magoa.

Uma mão ergue-se sob o seu queixo.

— Olha para mim, Henry — diz o estranho, que não lhe chegou a perguntar o nome.

Henry olha para cima, cruzando-se com aquelas íris luminosas. Vê algo contorcer-se dentro deles, como fumo. O estranho é belo, de uma forma que se assemelha a um lobo. Esfomeado e acutilante. O seu olhar de esmeralda desliza sobre ele.

— És perfeito — murmura o homem, passando um polegar pela face de Henry.

A sua voz é de seda, e Henry apoia-se nela, no toque, quase perde o equilíbrio quando a mão do homem se afasta.

— A dor pode ser bela — diz, expirando uma nuvem de fumo. — Pode transformar. Pode criar.

— Mas eu não quero sofrer — diz Henry numa voz rouca. — Quero...

— Queres ser amado.

Um som pequeno e vazio, meio tosse, meio soluço.

— Sim.

— Então sê amado.

— Fá-lo parecer tão simples.

— E é — diz o estranho. — Se estiveres disposto a pagar. Henry engasga-se numa gargalhada.

— Não ando à procura desse tipo de amor.

O tremeluzir negro de um sorriso brinca no rosto do estranho.

— Não estou a falar de dinheiro.

— Que mais há, então?

O estranho estende o braço e pousa a mão contra o esterno de Henry.

— A única coisa que qualquer ser humano tem para dar.

Por um instante, Henry pensa que o estranho quer o seu coração, por mais despedaçado que esteja — e depois compreende. Trabalha numa livraria, leu epopeias suficientes, devorou as alegorias e os mitos. Caramba, Henry passou os primeiros dois terços da sua vida a estudar as Escrituras e cresceu a alimentar-se regularmente de Blake, Milton e Fausto. Mas há muito que qualquer um deles lhe pareceu mais do que uma história.

— Quem és tu? — pergunta.

— Sou aquele que descobre os gravetos e os acende até serem chama. O que alimenta todo o potencial humano.

Olha para o estranho, ainda seco, apesar do temporal, uma beleza demoníaca num rosto familiar, e aqueles olhos, subitamente mais serpenteantes, e Henry percebe o que aquilo é: um devaneio. Já os teve uma ou duas vezes, em resultado de uma automedicação agressiva.

— Não acredito em demónios — diz, levantando-se.

— E não acredito em almas.

O estranho inclina a cabeça.

— Então não tens nada a perder.

A tristeza profunda, desviada nos últimos minutos pela companhia fácil do estranho, regressa agora a toda a brida. Pressão contra vidro a fender. Vacila um pouco, mas o estranho apoia-o.

Henry não se lembra de ver outro homem levantar-se, mas agora estão olhos nos olhos. E, quando o diabo volta a falar, há uma profundidade nova na sua voz, um calor firme, como um cobertor a envolver-lhe os ombros. Henry sente-o inclinar-se sobre ele.

— Queres ser amado — diz o estranho —, por todos eles. Queres ser suficiente para todos eles. E posso conceder-to, em troca de algo de que nem sentirás falta. — O estranho estende a mão. — Então, Henry? O que dizes?

E Henry não pensa que nada daquilo seja real.

Por isso não importa.

Ou talvez o homem à chuva tenha razão.

Simplesmente não tem mais nada a perder.

Afinal, é fácil.

Tão fácil como subir para o parapeito do terraço.

E cair.

Henry pega-lhe na mão, e o estranho aperta-a, com força suficiente para lhe reabrir os cortes na palma. Mas pelo menos não sente. Não sente nada, enquanto a escuridão sorri e diz uma única palavra.

— Feito.