Nova Iorque

18 de março de 2014

cap4

Addie é muitas coisas, pensa Henry. Mas não é esquecível.

Como pode alguém esquecer esta rapariga, quando ocupa tanto espaço? Enche uma sala com histórias, com riso, com calor e luz.

Pô-la a trabalhar, ou melhor, ela pôs-se a trabalhar, organizando os stocks e as prateleiras, enquanto ele ajuda os clientes.

Chamou fantasma a si própria, e pode sê-lo para as outras pessoas, mas Henry só consegue olhar para ela.

Move-se por entre os livros como se fossem amigos. E talvez, de certa forma, sejam. São uma parte da sua história, imagina, outra coisa em que tocou. Está ali, diz ela, um escritor que conheceu, aqui uma ideia que teve, acolá um livro que leu quando foi publicado pela primeira vez. De vez em quando, Henry vislumbra tristeza, vislumbra saudade, mas são apenas lampejos, e depois Addie intensifica-se, ilumina-se, lançando-se noutra história.

— Conheceste o Hemingway? — pergunta ele.

— Cruzámo-nos uma ou duas vezes — diz ela, com um sorriso —, mas a Colette era a mais inteligente.

Book segue Addie como uma sombra. Nunca viu o gato tão interessado noutro ser humano, e, quando pergunta porquê, ela tira uma mão-cheia de guloseimas do bolso com um sorriso embaraçado.

Os seus olhos cruzam-se agora pela loja, e ele sabe que ela disse que não é imune, que os seus pactos simplesmente funcionam juntos, mas a verdade é que não há névoa naqueles olhos castanhos. O seu olhar é límpido. Um farol através do nevoeiro.

Quando sorri, o mundo de Henry torna-se mais luminoso. Quando se afasta, fica novamente sombrio.

Uma mulher aproxima-se do balcão de pagamento, e Henry arrasta-se de novo para lá.

— Encontrou alguma coisa? — Os olhos dela já brilham, leitosos.

— Sim, sim — diz a mulher com um sorriso caloroso, e ele pergunta-se o que verá em vez de Henry. Será um filho ou um amante, um irmão, um amigo?

Addie pousa os cotovelos em cima do balcão.

Tamborila em cima do livro que tem andado a mostrar aos clientes. Uma coleção de instantâneos em Nova Iorque.

— Reparei nas máquinas fotográficas em tua casa — diz ela. — E nas fotografias. São tuas, não são?

Henry assente, resiste ao impulso de dizer É apenas um hobby, ou melhor, Foi um hobby, em tempos.

— És muito bom — diz ela, o que é simpático, especialmente vindo da sua parte. E é razoável, Henry sabe; talvez até um pouco melhor do que razoável, às vezes.

Tirou fotografias de rosto de Robbie na faculdade, mas era porque Robbie não tinha dinheiro para pagar um fotógrafo a sério. Muriel achou as fotografias queridas. Subversivas na sua forma convencional.

Mas Henry não estava a tentar subverter nada. Queria apenas captar algo.

Olha para baixo, para o livro.

— Há uma fotografia de família — diz —, não a que está na parede, outra, de quando eu tinha 6 ou 7 anos. Esse dia foi horrível. A Muriel pôs pastilha elástica no livro do David, e eu estava constipado, e os meus pais estiveram a discutir mesmo até ao instante em que o flash disparou. E, na fotografia, estamos todos com um ar tão... feliz. Lembro-me de ver essa fotografia e de perceber que as fotografias não são reais. Não há contexto, apenas a ilusão de que se está a mostrar o instantâneo de uma vida, mas a vida não são instantâneos, a vida é fluida. Por isso as fotografias são como ficções. Gosto disso nelas. Toda a gente pensa que uma fotografia é a verdade, mas é apenas uma mentira muito convincente.

— Porque paraste?

Porque o tempo não funciona como as fotografias.

Clique, e permanece imóvel.

Um piscar de olhos, e dá um salto em frente.

Sempre pensou no facto de tirar fotografias como um hobby, um crédito em troca de aulas de arte, e, quando se apercebeu de que seria algo que podia fazer, era demasiado tarde. Ou, pelo menos, foi o que pareceu.

Estava demasiado atrasado.

Por isso desistiu. Pôs as máquinas na prateleira com o resto dos passatempos abandonados. Mas algo em Addie o faz desejar retomá-lo.

Claro que não tem uma máquina fotográfica consigo, apenas o telemóvel, mas, hoje em dia, é mais do que suficiente. Pega-lhe, enquadrando Addie no contexto, com as prateleiras de livros a erguerem-se atrás dela.

— Não vai resultar — diz ela, no instante exato em que Henry dispara. Ou tenta. Bate no ecrã, mas não há clique, não há captura. Tenta de novo, e desta vez o telemóvel tira a fotografia, mas surge uma imagem indistinta.

— Eu avisei — disse ela baixinho.

— Não percebo — diz ele. — Foi há tanto tempo. Como poderia ter antecipado a fotografia ou os telemóveis?

Addie consegue esboçar um sorriso triste.

— Não foi com a tecnologia que ele interferiu. Foi comigo.

Henry imagina o estranho, a sorrir no escuro.

Pousa o telemóvel.