Nova Iorque
5 de setembro de 2013
Henry acorda com a barulheira do trânsito matinal.
Estremece ao som das buzinas dos automóveis, com a luz do sol a infiltrar-se pela janela. Vasculha as memórias da noite anterior e, por um segundo, não se lembra de nada, uma tábua rasa e negra, um silêncio de algodão. Mas quando semicerra os olhos, a escuridão fende-se, dá lugar a uma vaga de dor e de tristeza, uma confusão de garrafas partidas e chuva intensa, e um estranho num fato preto, uma conversa que deve ter sido um sonho.
Henry sabe que Tabitha recusou... essa parte foi real, com a memória demasiado pungente para poder ser outra coisa senão a verdade. Afinal, foi por isso que começou a beber. Foi a bebida que o conduziu a casa através da chuva, que o levou a parar junto ao poste antes de ir para dentro, e foi aí que o estranho..., mas, não, essa parte não aconteceu.
O estranho e a conversa travada são produtos de ficção, um óbvio comentário subconsciente, os seus demónios exibidos num desespero mental.
Uma dor de cabeça martela regularmente o crânio de Henry, e esfrega os olhos com as costas de uma das mãos. Um peso metálico aflora-lhe a face. Olha para cima furtivamente e vê uma bracelete de couro preto à volta do pulso. Um relógio analógico elegante, com números dourados cravados numa base de ónix. No mostrador, um único ponteiro dourado encontra-se imóvel, mal passando da meia-noite.
Henry nunca usou relógio.
Vê-lo no pulso, pesado e pouco familiar, fá-lo pensar numa algema. Senta-se, com as unhas a abrirem a fivela, consumido pelo medo súbito de a pulseira estar presa a ele, de não sair — mas, à mais pequena pressão, a fivela solta-se, e o relógio tomba em cima do edre- dão enrodilhado.
Cai virado para baixo, e ali, na parte de trás, Henry vê duas palavras gravadas numa caligrafia esguia.
Vive bem.
Sai da cama aos tropeções, afastando-se do relógio, olha para ele como que esperando que o ataque. Mas encontra-se apenas ali, silencioso. O coração retumba dentro do peito, tão alto que o consegue ouvir, e está de volta à escuridão, com a chuva a escorrer-lhe pelo cabelo enquanto o estranho sorri e lhe segura na mão.
Feito.
Mas aquilo não aconteceu.
Henry olha para a palma da mão e vê os cortes superficiais, cobertos por sangue seco. Repara nas gotas vermelho-acastanhadas que pintalgam os lençóis. A garrafa partida. Então isso também foi real. Mas a mão do diabo na dele foi um sonho febril. A dor pode fazer isso, imiscuir-se do estado de vigília para o sono. Uma vez, quando tinha 9 ou 10 anos, Henry teve uma amigdalite, com dores tão intensas que sempre que caía no sono sonhava que estava a engolir carvão em brasa, que ficava encurralado em edifícios em chamas, com o fumo a arranhar-lhe a garganta até ao fundo. A mente a tentar criar sentido para o sofrimento.
Mas o relógio...
Henry ouve um matraquear baixo e rítmico quando o encosta ao ouvido. Não faz outro som (uma noite, dali a pouco tempo, desmontará o objeto e descobrirá o interior despojado de engrenagens, vazio de tudo o que pudesse explicar o seu sinistro movimento de avanço).
E, no entanto, é sólido, pesado até, na sua mão. Parece real.
O tamborilar ouve-se mais alto, e apercebe-se então de que não vem de todo do relógio. É apenas o bater sólido de nós de dedos em madeira, de alguém à porta. Henry sustém a respiração, espera para ver se cessa, mas não acontece. Afasta-se do relógio, da cama, tira uma T-shirt lavada do espaldar de uma cadeira.
— Vou já — murmura, enfiando-a pela cabeça. O colarinho prende-se nos óculos, e o ombro choca com a ombreira da porta. Pragueja baixinho, desde a cama até à porta, à espera de que a pessoa que se encontra atrás dela desista, se vá embora. Não o faz, por isso Henry abre a porta, esperando ver Bea ou Robbie ou talvez Helen no patamar das escadas, mais uma vez à procura do gato.
Mas é a irmã, Muriel.
Muriel, que esteve em casa de Henry exatamente duas vezes nos últimos cinco anos. E uma das delas por ter bebido demasiado chá de ervas num almoço e não conseguir aguentar até Chelsea.
— O que estás aqui a fazer? — pergunta, mas ela já o ultrapassou, desenrolando um cachecol mais decorativo do que funcional.
— E quando é que a família precisa de motivos? — Uma pergunta claramente retórica.
Vira-se, com os olhos a percorrê-lo, como imagina que faz nas exposições, e Henry espera pela sua avaliação habitual, uma variação qualquer de estás com péssimo aspeto.
Ao invés, a irmã diz:
— Estás com bom ar — o que é estranho, porque Muriel nunca foi uma pessoa dada a mentiras («não gosta de estimular o engano num mundo cheio de discursos vazios»), e um olhar de raspão pelo espelho da entrada é suficiente para confirmar que Henry, de facto, tem um aspeto quase tão mau como o estado em que se sente. — A Beatrice mandou-me uma mensagem ontem à noite quando não atendeste o telemóvel — continua. — Contou-me da Tabitha e da história da recusa. Lamento, Hen.
Muriel abraça-o, e Henry não sabe onde pôr as mãos. Estas acabam por ficar a pairar no ar, em volta dos ombros dela, até que a irmã o solta.
— O que se passou? Andava a enganar-te? — E Henry deseja que a resposta fosse sim, porque a verdade é pior, a verdade é que simplesmente não estava suficientemente interessada. — Não importa — continua Muriel. — Que se lixe, mereces melhor.
Quase se ri, porque não consegue contar as vezes que a Muriel referiu que Tabitha era demasiada areia para a camioneta dele.
Ela olha em volta, para o apartamento.
— Andaste a redecorar? Está muito confortável.
Henry analisa a sala, pontuada por velas e arte e outros vestígios de Tabitha. A tralha é dele. O estilo era dela.
— Não.
A irmã continua de pé. Muriel nunca se senta, nunca cede, nunca verga.
— Bem, estou a ver que estás ótimo — diz —, mas da próxima vez atende o telemóvel. Ah — acrescenta, voltando a pegar no cachecol, já a meio caminho da porta. — Feliz Ano Novo.
Demora um instante a lembrar-se.
Rosh Hashaná.
Muriel vê a confusão no seu rosto e sorri.
— Tinhas dado um péssimo rabino.
Não discorda. Henry normalmente iria a casa — ambos iriam —, mas David não se conseguiu esquivar ao turno no hospital, nesse ano, por isso os pais fizeram outros planos.
— Vais ao templo? — pergunta-lhe ele agora.
— Não — diz Muriel. — Mas hoje à noite há um espetáculo na zona alta da cidade, um híbrido burlesco picante, e tenho a certeza de que irão fazer qualquer coisa com fogo. Acendo uma vela por alguém.
— A mãe e o pai iriam ficar muito orgulhosos — diz ele seca- mente, mas, na verdade, desconfia de que sim. Muriel Strauss nunca faz nada malfeito.
Ela encolhe os ombros.
— Cada um celebra à sua maneira. — Volta a enrolar o cachecol no pescoço com um floreado. — Vemo-nos pelo Yom Kippur.
Muriel estende a mão para a porta e depois volta-se de novo para ele e estica-se para despentear o cabelo de Henry.
— Minha pequena nuvem turbulenta — diz. — Não deixes que as coisas fiquem demasiado negras.
E depois desaparece, e Henry deixa-se cair contra a porta, atordoado, cansado e absolutamente confuso.
Henry ouviu dizer que a dor tem fases.
Pergunta-se se o mesmo será verdade para o amor.
Se é normal sentir-se perdido e zangado e triste, oco e, de alguma forma, terrivelmente aliviado. Talvez seja o latejar da ressaca a baralhar todas as coisas que deveria estar a sentir, misturando-as com aquilo que efetivamente faz.
Para no Roast, o café apinhado de gente a um quarteirão de distância da livraria. Tem bons queques, bebidas quase decentes e um serviço terrível, o que é mais ou menos habitual nesta zona de Brooklyn, e avista Vanessa na caixa.
Nova Iorque está cheia de gente bonita, atores e modelos a fazerem biscates como empregados de bar e de café, a prepararem bebidas para pagar a renda até à sua primeira grande oportunidade. Sempre presumiu que Vanessa fizesse parte desse grupo, uma loira platinada com um pequeno símbolo de infinito tatuado na parte interior do pulso. Também presume que o seu nome é Vanessa — é o nome que consta na identificação que traz presa ao avental —, mas, na verdade, ela nunca lho disse. Nunca lhe disse nada, para todos os efeitos, além de: «O que deseja?»
Henry colocar-se-á em frente ao balcão e ela perguntar-lhe-á o que vai tomar e o seu nome (apesar de ali ter aparecido seis dias por semana ao longo dos últimos três anos e de ela ali ter estado em dois deles) e, desde o momento em que lhe serve o seu café expresso com cobertura espumosa de leite até ao instante em que escreve o seu nome no copo e chama pelo próximo cliente, nunca olhará para ele. O seu olhar saltará da camisa de Henry para o computador e depois para o seu queixo, e Henry sentir-se-á como se nem sequer ali estivesse.
É assim que acontece sempre.
Só que hoje é diferente.
Hoje, quando aceita o seu pedido, olha para cima.
É uma mudança muito ligeira, uma diferença de cinco centímetros, talvez sete, mas agora consegue ver-lhe os olhos, que são de um azul assombroso, e a empregada olha para ele, não para o seu queixo. Sustém o olhar e sorri.
— Viva — diz ela —, o que deseja?
Pede um café com leite e diz o seu nome, e é por aí que a coisa costuma terminar.
Mas não termina.
— Está a planear um dia divertido? — pergunta, fazendo conversa de circunstância enquanto escreve o nome dele no copo.
Vanessa nunca antes fez conversa de circunstância com ele.
— Só trabalho — diz ele, e a atenção da empregada volta a virar-se para o seu rosto. Desta vez, capta uma ligeira cintilação — algo errado — nos seus olhos. É um truque de luz, deve ser, mas, por um segundo, parece gelo ou nevoeiro.
— Em que ramo trabalha? — pergunta, parecendo genuinamente interessada, e ele fala-lhe de The Last Word, e os olhos dela iluminam-se um pouco. Sempre leu e não consegue pensar num sítio melhor do que uma livraria. Quando Henry paga, os dedos de ambos afloram, e Vanessa lança-lhe outro olhar.
— Até amanhã, Henry.
A empregada diz o seu nome como se o tivesse roubado, com um ar malandro no sorriso.
E só consegue perceber que está a namoriscar com ele quando vê a setinha preta que ela desenhou, a apontar para o fundo do copo. E, quando o vira para ver, o seu coração tem um pequeno baque como uma máquina que para de funcionar.
Escreveu o seu nome e número de telemóvel na base.
Em The Last Word, Henry destranca a grade e abre a porta enquanto termina o café. Vira o letreiro e passa pela rotina de alimentar Book e de abrir a loja e arrumar livros novos na prateleira até que a campainha tilinta, anunciando o seu primeiro cliente.
Henry percorre as prateleiras cheias de livros para deparar com uma senhora idosa, a caminhar penosamente por entre os corredores, entre história e mistério e depois romance e de volta ao início. Dá-lhe alguns minutos, mas, quando ela descreve a mesma volta pela terceira vez, aproxima-se.
— Posso ajudá-la?
— Não sei, não sei — murmura, um pouco para si mesma, mas depois vira-se para olhar para ele, e algo muda no seu rosto. — Quero dizer, sim, por favor, espero que sim. — Há um ligeiro brilho nos seus olhos, uma cintilação remelosa, e explica que anda à procura de um livro que já leu.
— Ultimamente, não me consigo lembrar do que li e do que não li — explica, abanando a cabeça. — Soa tudo tão familiar. Todas as capas parecem iguais. Porque farão as coisas assim? Porque farão tudo parecer semelhante?
Henry presume que terá a ver com marketing e com tendências, mas sabe que provavelmente não ajudará dizê-lo. Em vez disso, pergunta-lhe se se lembra de alguma coisa sobre o livro.
— Oh, deixe ver. Era um livro grande. Era sobre a vida e a morte, e sobre história.
Aquilo não reduz propriamente as possibilidades, mas Henry está habituado à falta de pormenores. Ao número de pessoas que ali entram, à procura de algo que viram, sem conseguirem dizer mais do que «A capa era vermelha» ou «Acho que tinha a palavra rapariga no título».
— Era triste e maravilhoso — explica a idosa. — Tenho a certeza de que se passava em Inglaterra. Oh, meu Deus. A minha cabeça. Acho que tinha uma rosa na capa.
Olha em volta, para as prateleiras, contorcendo as mãos. E obviamente não vai decidir, por isso é ele quem o faz. Desesperadamente pouco à vontade, tira um romance histórico denso da prateleira de ficção mais próxima.
— Seria este? — pergunta, apresentando-lhe Wolf Hall. Mas, mal o tem na mão, sabe que não é aquele. Tem uma papoila na capa, não uma rosa, e não há nada de especialmente triste ou maravilhoso na vida de Thomas Cromwell, ainda que a escrita seja bela e comovente. — Esqueça este — diz, já estendendo o braço para o devolver à prateleira, quando o rosto da idosa de ilumina de prazer.
— É esse! — agarra-lhe no braço com dedos ossudos. — Era exatamente aquele de que andava à procura. — Henry tem dificuldade em acreditar, mas a alegria da senhora é tão evidente que começa a duvidar de si mesmo.
Está prestes a registar o livro quando se lembra. Atkinson. Life After Life. Um livro sobre a vida e a morte e sobre história, triste e maravilhoso, passado em Inglaterra, com duas rosas na capa.
— Espere — diz ele, contornando a esquina e avançando até à secção de ficção recente para ir buscar o livro.
— Será este?
O rosto da senhora ilumina-se, exatamente como antes.
— Sim! Mas que inteligente! É esse mesmo — diz, com a mesma convicção.
— Ainda bem que pude ajudar — diz Henry, sem ter a certeza de o ter feito.
A senhora decide levar os dois livros, diz que tem a certeza de que vai gostar deles.
O resto da manhã é igualmente estranho.
Um homem de meia-idade aparece à procura de um thriller e sai com cinco títulos que Henry recomenda. Uma estudante universitária vem em busca de um livro sobre mitologia japonesa e, quando Henry lamenta não o ter na livraria, ela praticamente tropeça nas palavras para dizer que a culpa não é dele e insiste em deixá-lo encomendá-lo para ela, apesar de não ter a certeza de vir realmente a fazer a cadeira. Um tipo com constituição de modelo e um maxilar mais pronunciado do que um canivete surge para analisar a secção de fantasia e escreve o seu endereço de e-mail no recibo, por baixo da assinatura, quando paga.
Henry sente-se desajustado, como quando Muriel lhe disse que estava com bom aspeto. É como um déjà vu, e nada como um déjà vu, porque a sensação é completamente nova. É como o dia 1 de abril, quando as regras mudam e tudo é uma brincadeira e toda a gente participa, e Henry ainda está encantado com o último encontro, com o rosto um pouco corado, quando Robbie irrompe porta adentro, com a campainha a tinir à sua passagem.
— Oh, meu Deus — diz, abraçando Henry, e por um instante este pensa que algo terrível deve ter acontecido, antes de se aperceber de que já aconteceu, à sua própria pessoa.
— Está tudo bem — diz Henry, e claro que não está, mas o dia foi tão estranho que tudo o que se passou antes dele parece um sonho. Ou será que o sonho é agora? Se for, não tem assim tanta vontade de acordar. — Está tudo bem — volta a dizer.
— Não tem de estar tudo bem — diz Robbie. — Só quero que saibas que estou aqui, também estaria presente ontem à noite... quis passar por tua casa quando vi que não respondias ao telemóvel, mas a Bea disse que te devíamos dar espaço, e, não sei porquê, dei-lhe ouvidos. Desculpa.
Tudo isto sai numa correnteza única de palavras.
Robbie aperta-o com mais força enquanto fala, e Henry saboreia o abraço. Encaixam um no outro com o conforto familiar de um casaco muito usado. O abraço demora-se um pouco demais. Henry pigarreia e recua, e Robbie lança uma gargalhada desajeitada e vira-se, com o rosto a captar a luz. Henry repara então numa estreita linha roxa ao longo da têmpora de Robbie, no ponto exato em que esta encontra a raiz do seu cabelo cor de areia.
— Estás a brilhar.
Robbie esfrega a maquilhagem sem grande empenho.
— Oh, ensaio.
Há um brilho estranho nos olhos de Robbie, um aspeto vítreo que Henry conhece demasiado bem, e pergunta-se se Robbie terá tomado alguma coisa ou se simplesmente passou algum tempo sem dormir. Na faculdade, Robbie ficava tão pedrado em drogas ou sonhos ou grandes ideias que esgotava toda a energia do corpo e depois adormecia.
Ouve a campainha da porta.
— Filho da mãe — anuncia Bea, atirando com a mochila para cima do balcão. — Sacana! Cabeça de avestruz!
— Olha os clientes — avisa Henry, apesar de o único que se encontra então por perto ser um idoso surdo, um frequentador habitual chamado Michael, que frequenta a secção de terror.
— A que devemos esta birra? — pergunta Robbie alegremente. O drama deixa-o sempre de bom humor.
— O estúpido do meu orientador — diz ela, passando por eles de rompante, em direção à secção de história de arte. Olham um para o outro e depois vão atrás dela.
— Não gostou da proposta? — perguntou Henry.
Bea passou a maior parte do ano a tentar obter a aprovação de um tema para uma dissertação.
— Recusou-a! — precipita-se por um dos corredores, quase fazendo tombar uma pilha de revistas. Henry segue-a, fazendo os possíveis para compor a destruição espalhada à sua passagem.
— Disse que era demasiado esotérica. Como se soubesse o significado da palavra... nem que ela lhe desse uma dentada no traseiro.
— Usa-a numa frase — pede Robbie, mas ela ignora-o, levantando o braço para retirar um livro de cima.
— Aquele cadáver...
E outro.
— ... tacanho...
E outro.
— ... de cérebro bafiento.
— Isto não é uma biblioteca — diz Henry enquanto ela transporta a pilha de livros até à cadeira de couro baixa ao canto e se refastela nela, espantando a bolinha de pelo laranja de entre duas almofadas gastas.
— Desculpa, Book — murmura, levantando o gato cuidadosamente e pousando-o nas costas da cadeira velha, onde ele faz a sua melhor imitação de um pão de forma contrariado. Bea continua a emitir uma fiada de impropérios em voz baixa, enquanto passa as páginas dos livros.
— Sei exatamente do que precisamos — diz Robbie, voltando-se para a sala de dispensário. — A Meredith não tem uma reserva de uísque guardada nas traseiras?
E, apesar de serem apenas três da tarde, Henry não protesta. Deixa-se cair até ao chão, senta-se com as costas viradas para a prateleira mais próxima, de pernas estendidas, sentindo-se de súbito insuportavelmente cansado.
Bea olha para ele e suspira.
— Desculpa — começa, mas Henry agita a mão como sinal para que continue a falar.
— Por favor, podes continuar a amaldiçoar o teu orientador e a dar cabo da minha secção de história de arte. Alguém tem de se comportar normalmente.
Mas ela fecha o livro, pousa-o em cima da pilha e junta-se a Henry, no chão.
— Posso dizer-te uma coisa? — A voz dela sobe ligeiramente no fim da frase, mas Henry sabe que não é uma pergunta. — Estou contente por teres acabado com a Tabitha.
Uma pontada de dor, como o corte na palma da mão.
— Foi ela que acabou comigo.
Bea agita a mão como se esse pormenor não importasse.
— Mereces alguém que te ame por quem és. Pelo bom, pelo mau e pelo que é exasperante.
Queres ser amado. Queres ser suficiente.
Henry engole em seco.
— Pois, bem, ser eu mesmo não tem corrido lá muito bem.
Bea inclina-se para ele.
— Mas a questão é essa, Henry, não tens sido tu próprio. Desperdiças imenso tempo com pessoas que não te merecem. Com pessoas que não te conhecem, porque não deixas que te conheçam. — Bea põe-lhe as mãos em volta do rosto, com aquele brilho estranho nos olhos. — Henry, tu és inteligente e delicado e irritante. Detestas azeitonas e pessoas que falam durante os filmes. Gostas de batidos e de pessoas que consigam rir até chorar. Achas que é um crime passar partes de um livro sem as ler. Quando te zangas, ficas calado, quando estás triste, barafustas, e, quando cantarolas, estás feliz.
— E?
— E não te oiço cantarolar há anos. — As mãos dela afastam-se do seu rosto. — Mas já te vi comer uma tonelada de azeitonas.
Robbie regressa com uma garrafa e três canecas na mão. O único cliente de The Last Word sai lentamente, e então Robbie fecha a porta atrás dele, virando o letreiro para fechado. Vem sentar-se no chão entre Henry e Bea e arranca a tampa da garrafa com os dentes.
— Estamos a beber para celebrar o quê? — pergunta Henry.
— Os recomeços — diz Robbie, com os olhos ainda a brilhar enquanto enche os copos.