Nova Iorque

23 de outubro de 2013

cap13

— Noite de cinema!

Robbie atira-se para o sofá de Henry e posiciona-se como uma estrela-do-mar, com os membros compridos a saírem pelas costas e pelas extremidades. Bea revira os olhos e empurra-o.

— Chega-te para lá.

Henry tira o saco do micro-ondas, passando-o de uma mão para a outra, para evitar o vapor. Despeja as pipocas na taça.

— Qual é o filme? — pergunta, contornando o balcão.

The Shining.

Henry lamenta-se. Nunca foi fã de filmes de terror, mas Robbie adora ter um motivo para gritar, trata tudo aquilo como outro tipo de interpretação, e é a semana em que é ele escolher.

— É Halloween! — alega Robbie.

— É dia 23 — diz Henry, mas Robbie trata as festividades do mesmo modo que os aniversários, alongando-os de dias em semanas e por vezes estações inteiras.

— Hora de rever os disfarces — diz Bea.

Mascarar-se, pensa, é como ver desenhos animados, algo de que se gostava quando se era criança, antes de se passar pela terra de ninguém da angústia adolescente, pela idade irónica do início da casa dos 20. E depois, de alguma forma, milagrosamente, regressa-se ao reino do genuíno, do nostálgico. A um lugar reservado à fantasia.

Robbie faz uma pose no sofá.

— Ziggy Stardust — diz, o que faz sentido. Passou os últimos anos a trabalhar várias encarnações de Bowie. No ano passado foi Thin White Duke.

Bea anuncia que vai de Dread Pirate Roberts, num jogo de palavras intencional, e Robbie estende o braço e tira uma máquina fotográfica da mesa de café de Henry, uma Nikon vintage que faz agora as funções de pesa-papel. Inclina a cabeça para trás e espreita Henry através do visor, de pernas para o ar.

— E tu?

Henry sempre gostou do Halloween — não da parte assustadora, apenas do pretexto para mudar, para ser outra pessoa. Robbie diz que devia simplesmente ter-se tornado ator, que podem brincar às mascaradas o ano inteiro, mas a ideia de viver a vida no palco deixa-o nauseado. Já foi Freddie Mercury e o Chapeleiro Louco, o Mascarado e o Joker.

Mas nesse momento já se sente outra pessoa.

— Já estou disfarçado — diz ele, gesticulando para as suas calças de ganga pretas habituais, para a camisa estreita. — Não conseguem adivinhar quem sou?

— Peter Parker? — arrisca Bea.

— Um vendedor de livros?

— O Harry Potter numa crise de meia-meia-idade?

Henry ri-se e abana a cabeça.

Bea semicerra os olhos.

— Ainda não escolheste nada, pois não?

— Não — reconhece ele —, mas vou escolher.

Robbie ainda está a brincar com a máquina. Vira-a, comprime os lábios e tira uma fotografia. A máquina emite um clique oco. Não tem rolo. Bea tira-lha das mãos.

— Porque não tiras mais fotografias? — pergunta. — És mesmo bom.

Henry encolhe os olhos, sem ter a certeza se ela acredita realmente nisso.

— Talvez noutra encarnação — diz ele, entregando uma cerveja a cada um deles.

— Ainda o podes fazer, sabes — diz ela. — Não é demasiado tarde.

Talvez, mas, se começasse agora, valeriam as fotografias por si mesmas, consideradas boas ou más por mérito próprio? Ou cada uma das fotografias transportaria o seu desejo? Será que cada pessoa veria a fotografia que desejaria ver, em vez daquela que tirara? Poderia porventura confiar nelas, se isso acontecesse?

O filme começa, e Robbie insiste em apagar todas as luzes, ficando os três enfiados no sofá. Obrigam Robbie a deixar a taça das pipocas em cima da mesa para não atirar com ela no primeiro momento assustador, para Henry não ter de andar a apanhar milho depois de se terem ido embora, e ele passa a próxima hora a desviar os olhos sempre que a banda sonora geme em sinal de aviso.

Quando o rapaz anda de triciclo pelo corredor, Bea murmura «Não, não, não», e Robbie senta-se na ponta do sofá, à beira do pânico, e Henry enterra a cara no seu ombro. As raparigas gémeas aparecem, de mãos dadas, e Robbie agarra a perna de Henry.

E, quando o momento passa, uma pausa no terror, a mão de Robbie continua pousada na sua coxa. E é como se uma chávena partida voltasse a ficar inteira, as formas quebradas a encaixarem na perfeição — o que, naturalmente, está mal.

Henry levanta-se, levando a taça de pipocas vazia e dirigindo-se à cozinha.

Robbie levanta a perna, saltando por cima das costas do sofá.

— Eu ajudo.

— São só pipocas — diz Henry por cima do ombro enquanto dobra a esquina. Rasga a embalagem de plástico, agita o saco. — Tenho a certeza de que basta pôr o saco dentro do micro-ondas e carregar no botão.

— Deixas sempre ficar demasiado tempo — diz Robbie, mesmo atrás dele.

Henry enfia o saco no micro-ondas e fecha a porta.

Prime o botão de iniciar e vira-se para a porta.

— Então agora é especialista em pip...

Não tem oportunidade de terminar, pois a boca de Robbie cola-se à sua. Henry inspira profundamente, surpreendido pelo beijo súbito, mas Robbie não desiste. Empurra-o contra o balcão, ancas contra ancas, dedos a deslizarem-lhe pelo maxilar quando o beijo se torna mais intenso.

E isto, isto é melhor do que todas as outras noites.

Isto é melhor do que a atenção de centenas de estranhos.

Isto é a diferença entre uma cama de hotel e sentir-se em casa.

Robbie está ereto contra ele, e o peito de Henry dói de desejo, e seria tão fácil voltar a cair naquilo, regressar ao calor familiar do seu beijo, do seu corpo, ao conforto simples de algo real.

Mas o problema é precisamente esse.

Foi real. Eles foram reais. Mas, como tudo na vida de Henry, acabou.

Falhou.

Interrompe o beijo quando as primeiras pipocas começam a saltar.

— Há semanas que ando à espera de fazer isto — sussurra Robbie, a face corada, os olhos brilhantes de febre. Mas não estão límpidos. Uma névoa varre-os, turvando o azul intenso.

Henry estremece enquanto expira, esfrega os olhos por detrás dos óculos. As pipocas matraqueiam e saltam, e Henry puxa Robbie para o corredor, para longe de Bea e do filme de terror, e Robbie começa de novo a aproximar-se dele, pensando que se trata de um convite, mas Henry estende a mão, mantendo-o à distância.

— Isto é um erro.

— Não, não é — diz Robbie. — Amo-te. Sempre te amei.

E parece tão sincero, tão real, que Henry tem de semicerrar os olhos para se concentrar.

— Então porque acabaste comigo?

— O quê? Não sei. Eras diferente, não encaixávamos.

— Como? — insiste Henry.

— Não sabias o que querias.

— Queria-te a ti. Queria que fosses feliz.

Robbie abana a cabeça.

— Não pode ser só a outra pessoa a importar. Também tens de ser alguém. Tens de saber quem és. Na altura, não sabias. — Sorri. — Mas agora sabes.

Mas a questão é precisamente essa.

Não sabe.

Henry não faz ideia de quem é, e, agora, mais ninguém faz também.

Sente-se apenas perdido. Mas este é o único caminho que não irá seguir.

Ele e Robbie foram amigos antes de serem mais e voltaram a ser amigos durante anos depois de Robbie ter acabado com tudo, quando Henry ainda estava apaixonado por ele, e agora é ao contrário, e Robbie vai ter de arranjar maneira de andar em frente ou, pelo menos, de transformar suavemente a palavra amor para amor como Henry fizera quando fora o seu caso.

— Demora muito tempo fazer pipocas? — grita Bea.

Um cheiro a chamuscado liberta-se do micro-ondas, e Henry empurra Robbie para o lado ao entrar na cozinha, pressiona o botão de stop e retira o saco para fora.

Mas é demasiado tarde.

As pipocas estão irremediavelmente queimadas.