Nova Iorque

9 de dezembro de 2013

cap16

Bea diz sempre que regressar ao campus é como chegar a casa.

Mas Henry não o sente da mesma maneira. No entanto, por outro lado, em casa nunca se sentiu em casa, sentiu apenas uma impressão de medo, o andar sobre cascas de ovos de alguém sempre prestes a desiludir. E é mais ou menos isso que sente agora, por isso talvez ela afinal tenha razão.

— Sr. Strauss — diz o professor, estendendo a mão por cima da secretária. — Fico muito satisfeito por ter vindo.

Dão um aperto de mãos, e Henry senta-se na cadeira de escritório. A mesma cadeira onde se sentou três anos antes, quando o professor Melrose ameaçou chumbá-lo se não tivesse o bom senso de se ir embora. E agora...

Queres ser suficiente.

— Desculpe ter demorado tanto — diz, mas o professor gesticula, não dando importância ao pedido de desculpas.

— Tenho a certeza de que é um homem ocupado.

— Exato — diz Henry, mexendo-se na cadeira. O fato fricciona; demasiados meses passado entre bolas de naftalina no fundo do guarda-roupa. Não sabe o que fazer com as mãos.

— Então — diz ele desajeitadamente —, referiu que havia uma vaga na Faculdade de Teologia, mas não disse se era para estagiário ou assistente.

— É para passar aos quadros.

Henry olha para o homem grisalho do outro lado da mesa e tem de resistir ao impulso de se rir na sua cara. Uma carreira universitária não é apenas algo que se cobice, é algo que suscita uma concorrência feroz. As pessoas passam anos a rivalizar por esses cargos.

— E pensou em mim.

— No momento em que o vi naquele café — diz o professor com um sorriso de angariação de fundos.

Queres ser o que quer que os outros desejem.

O professor senta-se na ponta da cadeira.

— A questão, Sr. Strauss, é simples. O que deseja para si?

As palavras ecoam-lhe pela cabeça, uma simetria terrível, ressonante.

Foi a mesma pergunta que Melrose lhe fez naquele dia de outono em que chamou Henry ao seu gabinete, três anos depois de começar o doutoramento, e lhe disse que terminara. Em certa medida, Henry sabia o que o esperava. Já pedira transferência do seminário teológico para um plano de estudos religiosos mais lato, com a concentração a desviar-se para outros temas que centenas de pessoas já haviam explorado, incapaz de descobrir novos pontos de apoio, incapaz de acreditar.

— O que deseja para si? — perguntara, e Henry ponderou dizer o orgulho dos meus pais, mas não a considerara uma boa resposta, por isso dissera a coisa que lhe parecera mais verdadeira, a seguir a essa — que sinceramente não tinha a certeza. Que piscara os olhos e, de alguma forma, os anos tinham passado, e toda a gente marcara o seu trilho, fizera o seu caminho, e ele ainda estava de pé, num campo, sem saber onde cavar.

O professor ouvira e pousara os cotovelos em cima da mesa e dissera-lhe que ele era bom.

Mas não era suficientemente bom.

O que significava, claro, que ele não era suficiente.

— O que deseja para si? — pergunta agora o professor. E Henry continua a não ter outra resposta.

— Não sei.

E esta é a parte em que o professor abana a cabeça, quando se apercebe de que Henry Strauss continua tão perdido como dantes. Só que não o faz, claro. Sorri e diz:

— Não faz mal. É bom manter-se aberto. Mas quer voltar, não quer?

Henry está calado. Pondera a pergunta.

Sempre gostou de aprender. Na verdade, sempre adorou. Se pudesse passar a vida inteira numa sala de conferências, a tirar apontamentos, se pudesse ter saltado de departamento em departamento, atrás de estudos diferentes, a assimilar a língua e a história e a arte, talvez se sentisse cheio, feliz.

Foi assim que passou os primeiros dois anos.

E nesses primeiros dois anos foi feliz. Tinha Bea e Robbie e só tinha de aprender. De construir os alicerces. Foi a casa, aquela que deveria ter construído sobre essa superfície suave, que foi o problema.

Era tão... permanente.

Escolher um curso tornou-se em escolher uma área, e escolher uma área tornou-se em escolher uma carreira, e escolher uma carreira tornou-se em escolher uma vida, e como era possível fazê-lo quando só se tinha uma?

Mas ensinar, ensinar poderia ser uma forma de obter o que desejava.

Ensinar é uma extensão de aprender, uma forma de ser um eterno estudante.

E, no entanto.

— Não tenho as qualificações necessárias.

— É uma escolha pouco convencional — reconhece o professor —, mas isso não significa que seja uma escolha errada.

Só que, neste caso, é precisamente o que significa.

— Não fiz o doutoramento.

A névoa espalha-se numa camada de gelo que atravessa a visão do professor.

— Tem uma perspetiva diferente.

— Mas não há requisitos mínimos?

— Há, mas há alguma latitude, de modo a abranger diferentes antecedentes.

— Não acredito em Deus.

As palavras caem como pedras, aterrando na secretária, entre ambos.

E Henry apercebe-se, agora que lhe saíram da boca, de que não são completamente verdadeiras. Não sabe em que acredita, não sabe há muito tempo, mas é difícil descartar por completo a presença de um poder maior quando ainda há pouco tempo vendeu a alma a um poder menor.

Henry apercebe-se de que a divisão continua em silêncio.

O professor olha para ele longamente, e Henry pensa que conseguiu, que quebrou o feitiço.

Mas nesse momento Melrose inclina-se para a frente e diz, num tom contido:

— Eu também não. — Volta a sentar-se. — Sr. Strauss, somos uma instituição académica, não uma igreja. A divergência está no cerne da evolução.

Mas o problema é precisamente esse. Ninguém irá divergir. Henry olha para o professor Melrose e imagina ver essa mesma aceitação cega no rosto de todos os membros da faculdade, de todos os professores, de todos os alunos, e sente-se indisposto. Todos olharão para ele e verão exatamente o que desejam. Quem desejam. E, mesmo que se cruze com alguém que queira argumentar, que aprecie o confronto ou o debate, não será real.

Nada voltará a ser real.

Do outro lado da mesa, os olhos do professor são de um cinza leitoso.

— Pode fazer tudo o que desejar, Sr. Strauss. Ser quem desejar. E gostaríamos de o ter connosco. — Levanta-se e estende a mão. — Pense nisso.

Henry diz:

— Vou pensar.

E pensa.

Pensa nisso enquanto atravessa o campus e no metro, com cada estação a afastá-lo mais daquela vida. Da vida que foi e da que não foi. Pensa nisso enquanto abre a loja, despe o casaco que lhe assenta mal e o atira para a prateleira mais próxima, desfaz a gravata na garganta. Pensa nisso enquanto dá de comer ao gato e abre a última caixa de livros, agarrando neles até lhe doerem os dedos, mas pelo menos são sólidos, são reais, e consegue sentir as nuvens de tempestade formarem-se na cabeça, por isso vai até à divisão das traseiras, pega na garrafa de uísque de Meredith, alguns dedos que restaram do dia que se seguiu ao pacto, e leva-a para a parte da frente da loja.

Ainda nem é meio-dia, mas Henry não quer saber.

Tira a tampa e enche uma chávena de café enquanto os clientes começam a entrar, esperando que alguém o fuzile com um olhar de repulsa, que abane a cabeça em sinal de desaprovação, que murmure alguma coisa ou que saia, mesmo. Mas todos eles continuam as suas compras, continuam a sorrir, continuam a olhar para Henry como se este não pudesse fazer nada de errado.

Finalmente, um polícia fora de serviço entra, e Henry nem sequer tenta esconder a garrafa junto à caixa registadora. Em vez disso, olha diretamente para o homem e dá um gole demorado da chávena, na certeza de que está a transgredir alguma lei, seja pela garrafa aberta seja pela intoxicação pública.

Mas o polícia limita-se a sorrir e ergue um copo imaginário.

— À sua! — diz, os olhos a enevoarem-se enquanto fala.

Bebe um copo sempre que ouvires uma mentira.

És um excelente cozinheiro.

(Dizem quando deixas queimar as torradas.)

És tão engraçado.

(Nunca contaste uma anedota.)

És tão...

... bonito.

... ambicioso.

... bem-sucedido.

... forte.

(Já estás a beber?)

És tão...

... encantador.

... inteligente.

... sexy.

(Bebe.)

Tão confiante.

Tão tímido.

Tão misterioso.

Tão aberto.

És impossível, um paradoxo, uma coleção de opostos.

És tudo para toda a gente.

O filho que nunca tiveram.

O amigo que sempre desejaram.

Um estranho generoso.

Um filho bem-sucedido.

Um perfeito cavalheiro.

Um companheiro perfeito.

Um perfeito...

Perfeito...

(Bebe.)

Gostam do teu corpo.

Dos teus abdominais.

Do teu riso.

Do teu cheiro.

Do som da tua voz.

Desejam-te.

(Não a ti.)

Precisam de ti.

(Não de ti.)

Amam-te.

(Não a ti.)

És quem quer que eles querem que sejas.

És mais do que suficiente, porque não és real.

És perfeito, porque tu não existes.

(Tu não.)

(Tu nunca.)

Olham para ti e veem o que quer que desejem...

Porque não te veem, de todo.