Nova Iorque

31 de dezembro de 2013

cap17

O relógio marca o tempo com o seu tiquetaquear, os últimos minutos do ano a esvaírem-se. Toda a gente diz para se viver no presente, para saborear o momento, mas é difícil quando o momento envolve centenas de pessoas apinhadas num apartamento alugado em Bed-Stuy que Robbie partilha com outros atores. Henry está encurralado num canto, onde o bengaleiro se encontra com um guarda-fato. Tem uma cerveja na mão e a outra enredada na camisa do tipo que o está a beijar, um tipo que decididamente está fora do campeonato de Henry, ou estaria, se Henry ainda tivesse um campeonato.

Acha que o nome do fulano é Mark, mas é difícil ouvir por cima de toda a algazarra. Também pode ser Max ou Malcolm. Henry não sabe. E quer dizer que é a primeira pessoa que beijou nessa noite, o primeiro homem até, mas a verdade é que não tem a certeza de nenhuma das duas hipóteses. Não tem a certeza de quantas bebidas tomou ou se o sabor que se derrete na sua língua neste momento é de açúcar ou de outra coisa qualquer.

Henry tem bebido demasiado, demasiado depressa, tentando não pensar, e há demasiadas pessoas no Castelo.

Castelo é o que chamam à casa de Robbie, embora Henry não se consiga lembrar bem quando o batizaram assim ou porquê. Procura Bea, não a vê desde que serpenteou por entre a multidão até à cozinha, uma hora antes, a viu empoleirada na bancada, a brincar aos empregados de balcão e a fazer a corte a um grupo de mulheres e...

Subitamente, o tipo começa a debater-se com o cinto de Henry.

— Espera — diz ele, mas a música está tão alta que tem de gritar, tem de puxar o ouvido de Mark/Max/Malcolm para junto da boca, o que Mark/Max/Malcolm interpreta como um sinal para o continuar a beijar.

Espera — grita, empurrando-o. — Queres mesmo isto?

O que é uma pergunta estúpida. Ou, no mínimo, a pergunta errada.

O fumo claro rodopia nos olhos do estranho.

— Porque não haveria de querer? — pergunta, caindo de joelhos. Mas Henry agarra-o pelo cotovelo.

— Para. Para, por favor. — Puxa-o para cima. — O que vês em mim?

Uma pergunta que começou a fazer a toda a gente, na esperança de ouvir algo de semelhante à verdade. Mas o tipo olha para ele, com os olhos toldados de névoa, e diz as palavras de rompante:

— És lindo. Sexy. Inteligente.

— Como é que sabes? — grita Henry por cima da música.

— O quê? — grita o rapaz de volta.

— Como sabes que sou inteligente? Mal falámos.

Mas Mark/Max/Malcolm limita-se a esboçar um sorriso lamechas, de olhos entornados, com a boca vermelha de beijar, e diz:

— Sei simplesmente — e já não é suficiente, já não está certo, e Henry começa a libertar-se dele quando Robbie dobra a esquina e vê Mark/Max/Malcolm praticamente a copular com Henry no corredor. Robbie olha para ele como se lhe tivesse atirado uma cerveja à cara.

Vira costas e vai-se embora, e Henry geme, e o tipo que se meneia contra ele parece julgar que o som é para ele, e está demasiado calor ali para Henry pensar, para respirar.

A divisão começa a rodopiar, e Henry murmura qualquer coisa sobre ter de ir fazer chichi, mas caminha para lá da casa de banho e entra no quarto de Robbie, fechando a porta atrás de si. Vai até à janela, puxa o vidro para cima e é atingido em cheio no rosto por uma explosão de frio gelado. Este morde-lhe a pele enquanto salta para a escada de incêndio.

Aspira uma lufada de ar frio, deixa que este lhe queime os pulmões, tem de se inclinar para a janela para a voltar a fechar, mas, no instante em que o vidro desce, o mundo aquieta.

Não é silêncio — Nova Iorque nunca é silenciosa —, e o Ano Novo enviou uma corrente que reverbera pela cidade, mas pelo menos consegue respirar, consegue pensar, consegue esquecer a noite — o ano — numa paz relativa.

Tenta dar um gole na cerveja, mas a garrafa está vazia.

— Merda — murmura para si mesmo apenas.

Está gelado, o casaco ficou enterrado algures num monte, em cima da cama de Robbie, mas não se consegue obrigar a entrar de novo para ir buscar um agasalho ou uma bebida. Não consegue suportar a maré de cabeças a virarem-se, o fumo a encher-lhes os olhos, não quer o peso da sua atenção. E alcança a ironia de tudo aquilo, mesmo. Naquele momento, daria tudo por um dos chapelinhos de chuva cor-de-rosa de Muriel, mas já se acabaram, por isso senta-se nos degraus de metal gelados, diz para si mesmo que é feliz, diz para si mesmo que foi aquilo que desejou.

Pousa a garrafa vazia ao lado de um vaso que outrora foi o lar de uma planta.

Neste momento, contém apenas uma pequena montanha de beatas.

Às vezes Henry desejava fumar, apenas pelo pretexto de ir apanhar ar.

Tentou, uma vez ou duas, mas não conseguia suportar o sabor a alcatrão, o cheiro bafiento que lhe deixava na roupa. Quando era miúdo, tinha uma tia que fumava até as unhas ficarem amarelas e a pele estalada, como couro puído, até que cada ataque de tosse dava a impressão de que tinha moedas soltas a matraquearem-lhe dentro do peito. Sempre que aspirava uma baforada, pensava nela e sentia-se maldisposto e não sabia se era da memória ou do sabor, sabia apenas que não valia a pena.

Claro que havia a erva, mas a erva era algo que se partilhava com outras pessoas, ninguém se escapulia para a fumar sozinho, e, fosse como fosse, fazia-o sempre sentir-se com fome e triste. Ou, na verdade, ainda mais triste. Não lhe alisava nenhuma das rugas que tinha no cérebro, depois de várias tentativas, limitava-se a transformá-las em espirais, com os pensamentos a virarem-se cada vez mais para dentro, para sempre.

Tem uma memória muito clara de ter ficado pedrado no último ano de faculdade, ele e Bea e Robbie, deitados num emaranhado de membros na praça de Columbia, às três da manhã, completamente nas nuvens e a olhar para o céu. E, apesar de terem de semicerrar os olhos para conseguir divisar quaisquer estrelas e possam ter sido apenas os seus olhos a debater-se para captar alguma coisa daquela extensão negra, Bea e Robbie não paravam de falar sobre quão grande tudo era, quão maravilhoso, quão calmos os fazia sentir o facto de serem tão pequenos, e Henry não disse nada porque estava demasiado ocupado a suster a respiração para evitar gritar.

— Que raio estás a fazer aqui fora?

Bea assoma à janela. Passa a perna por cima do parapeito e junta-se a ele no degrau, assobiando quando as leggings tocam no metal frio. Ficam sentados em silêncio por alguns instantes. Henry olha por cima dos edifícios. As nuvens estão baixas, com as luzes de Times Square a brilharem contra elas.

— O Robbie está apaixonado por mim — diz ele.

— O Robbie sempre esteve apaixonado por ti — diz Bea.

— Mas o problema é precisamente esse — diz ele, abanando a cabeça. — Não estava realmente apaixonado por quem eu era. Estava apaixonado por quem eu poderia ter sido. Queria que eu mudasse, e não mudei, e...

— Porque haverias de mudar? — Bea vira-se para olhar para ele, com a névoa a rodopiar-lhe nos olhos. — És perfeito exatamente como és.

Henry engole em seco.

— E isso é como? — pergunta. — Como é que eu sou?

Tem tido medo de perguntar, medo de saber o significado do brilho nos olhos dela, o que vê quando olha para ele. Naquele preciso instante, deseja ter retirado o que disse. Mas Bea limita-se a sorrir e diz:

— És o meu melhor amigo, Henry.

O peito dele alivia, apenas um pouco. Porque é real.

É verdade.

Mas depois ela continua.

— És delicado e sensível e espantoso a ouvir os outros.

E aquela última parte causa-lhe um baque no estômago, porque Henry nunca soube ouvir os outros. Perdeu a conta ao número de discussões em que se viu envolvido por não estar a prestar atenção.

— Estás sempre presente quando preciso de ti — continua ela, e o peito dói-lhe, porque sabe que não esteve, e esta não é como todas as outras mentiras, esta não tem a ver com abdominais definidos ou com um maxilar acentuado ou com uma voz profunda, isto não é um encanto espirituoso ou o filho que sempre se desejou ou o irmão de quem se tem saudades, isto não é nenhum dos milhares de coisas que outras pessoas veem quando olham para ele, coisas fora do seu controlo.

— Gostava que te visses como eu te vejo.

O que Bea vê é um bom amigo.

E Henry não tem desculpa para não o ser.

Põe a cabeça entre as mãos, comprime as palmas contra os olhos até ver estrelas e pergunta-se se poderá resolver isto, isto apenas, se poderá tornar-se a versão de Henry que Bea vê, se isso fará com que névoa nos seus olhos se dissipe, se pelo menos ela o poderá ver claramente.

— Desculpa — sussurra para o espaço entre os joelhos e o peito. Sente-a passar-lhe os dedos pelo cabelo.

— Porquê?

E o que poderá ele dizer?

Henry estremece ao expirar e olha para cima.

— Se pudesses ter alguma coisa — diz —, o que pedirias?

— Depende — diz ela. — Qual é o preço a pagar?

— Como sabes que há um preço?

— Há sempre dar e receber.

— Muito bem — diz Henry —, se vendesses a tua alma por uma coisa, o que seria? Bea morde o lábio.

— Felicidade.

— O que é isso? — pergunta ele. — Quero dizer, é apenas sentires-te feliz sem motivo? Ou é fazeres outras pessoas felizes? É seres feliz no emprego ou na vida ou...

Bea ri-se.

— Pensas sempre demasiado nas coisas, Henry. — Olha para fora, por cima da escada de incêndio. — Não sei, talvez queira apenas dizer que gostaria de ser feliz comigo própria. Estar satisfeita. E tu?

Ele pensa em mentir, não o faz.

— Acho que gostaria de ser amado.

Bea olha para ele então, com os olhos num turbilhão de névoa e, apesar da neblina, parece de súbito incomensuravelmente triste.

— Não podes obrigar as pessoas a gostarem de ti, Hen. Se não for uma opção, não é real.

A boca de Henry fica seca.

Ela tem razão. Claro que tem razão.

E ele é um idiota, preso num mundo onde nada é real.

Bea choca com o ombro no dele.

— Vem para dentro — diz ela. — Arranja alguém para beijares antes da meia-noite. Dá sorte.

Levanta-se, à espera, mas Henry não se consegue levantar.

— Está tudo bem — diz. — Vai tu.

E sabe que é por causa do pacto que fez, sabe que é o que ela vê e não o que ele é — mas, ainda assim, fica aliviado quando Bea volta a sentar-se e se encosta a ele, um melhor amigo a fazer-lhe companhia no escuro. E, passado pouco tempo, o volume da música começa a baixar, e as vozes sobem de tom, e Henry ouve a contagem decrescente atrás deles.

Dez, nove, oito.

Oh, meu Deus.

Sete, seis, cinco.

O que foi ele fazer?

Quatro, três, dois.

Está a avançar demasiado depressa.

Um.

O ar está enche-se de assobios e de vivas, e Bea encosta os lábios aos dele, um momento de calor contra o frio. De um momento para o outro, o ano passou, os relógios recomeçam, um três substituído por um quatro, e Henry sabe que cometeu um erro terrível.

Pediu a coisa errada ao deus errado, e agora é suficiente porque não é nada. É perfeito porque não está presente.

— Vai ser um ano bom — diz Bea. — Sinto-o. — Suspira uma nuvem de nevoeiro para o ar entre ambos. — Foda-se, está frio! — levanta-se, esfregando as mãos. — Vamos para dentro.

— Vai tu andando — diz ele. — Eu já vou.

E ela acredita nele, os passos a retinir enquanto atravessa a escada de incêndio e se esgueira de novo pela janela, deixando-a aberta para que ele a siga.

Henry fica ali sentado, sozinho, no escuro, até não conseguir aguentar mais o frio.