Nova Iorque
19 de março de 2014
Addie encosta-se à janela, vendo o sol nascer sobre Brooklyn.
Pousa os dedos à volta de uma chávena de chá, saboreando o calor contra as palmas das mãos. O vidro está embaciado do frio, os restos do inverno a agarrarem-se aos contornos do dia. Traz vestida uma das sweatshirts de Henry, algodão com o logótipo da Columbia estampado. Tem o cheiro dele. A livros antigos e café acabado de fazer.
Volta para o quarto descalça, onde Henry está deitado, de bruços, com os braços dobrados por baixo da almofada, a face virada para o outro lado. E, nesse momento, parece-se imenso com Luc, e, no entanto, não se parece nada com Luc. A semelhança entre ambos hesita, como visão dupla. Os seus caracóis, espalhados como plumas pretas sobre a almofada branca, transformando-se numa penugem mais rala na nuca. As costas sobem e descem, numa regularidade resultante do curso suave e pouco profundo do sono.
Addie pousa a chávena na mesinha de cabeceira, entre os óculos de Henry e um relógio com bracelete de couro. Passa o dedo pela orla de metal preto, pelos números dourados fixos no mostrador preto. Oscila sob o seu toque, revela a pequena inscrição no verso.
Vive bem.
É percorrida por um calafrio minúsculo, e está prestes a pegar nele quando Henry geme na almofada, um protesto suave dirigido à manhã.
Addie larga o relógio e volta para a cama, instalando-se ao seu lado.
— Olá. — Ele procura os óculos às apalpadelas, põe-nos, olha para ele e sorri, e esta é a parte que nunca se desgastará. O conhecimento. O presente a empoleirar-se sobre o passado, em vez de o apagar, de o substituir. Volta a puxá-la para si.
— Olá — sussurra ele para o seu cabelo. — Que horas são?
— Quase oito.
Henry queixa-se e aperta-a com mais força. Ele está quente, e Addie diz-lhe que desejava poderem ficar assim o dia inteiro. Mas agora está acordado, com aquela energia imparável a enrolar-se à sua volta como uma corda. Consegue senti-lo na tensão dos braços, na transferência subtil do seu peso.
— Tenho de ir — diz ela, porque presume que é aquilo que se deve dizer quando se está na cama de outra pessoa. Quando nos lembramos de como lá fomos parar. Mas não diz «Tenho de ir para casa», e Henry capta a palavra em falta.
— Onde moras? — pergunta.
Em lado nenhum, pensa ela. Em todo o lado.
— Desenvencilho-me. A cidade está cheia de camas.
— Mas não tens um sítio teu.
Addie olha para a sweatshirt emprestada, todos os seus atuais pertences atirados para cima da cadeira mais próxima.
— Não.
— Então podes ficar aqui.
— Depois de três encontros, estás a convidar-me para viver contigo?
Henry ri-se, porque é obviamente absurdo. Mas não é a coisa mais estranha nas suas vidas.
— Que tal então convidar-te a ficares... por enquanto?
Addie não sabe o que dizer. E, antes de conseguir pensar em alguma coisa, ele já saiu da cama, abrindo a gaveta de baixo. Empurra o conteúdo para um dos lados, arranjando espaço.
— Podes pôr as tuas coisas aqui.
Olha para ela, subitamente hesitante.
— Tens coisas?
Addie acabará por explicar os pormenores da sua maldição, a forma como esta se contorce e enrola à sua volta. Mas ele ainda não os conhece — não há necessidade. Para ele, a história dela principiou agora mesmo.
— Na verdade, não vale a pena ter mais do que aquilo que se consegue transportar quando não temos um sítio onde o pôr.
— Então, se arranjares coisas, se as quiseres, podes pô-las ali.
E, com essas palavras, dirige-se de forma sonolenta para o duche, e ela olha para o espaço que Henry arranjou para ela e pergunta-se o que aconteceria se tivesse coisas para pôr lá dentro. Desapareceriam imediatamente? Perder-se-iam lenta e despreocupadamente, como meias engolidas por uma máquina de secar? Nunca se conseguiu agarrar a algo por muito tempo. Apenas ao blusão de cabedal e ao anel de madeira, e sempre soube que era porque Luc queria que tivesse ambos — porque os associara a ela, como presentes.
Vira-se e observa a roupa atirada para cima da cadeira.
Está manchada de tinta da High Line. Tem verde na camisa, uma mancha roxa no joelho das calças de ganga. As botas também estão sarapintadas de amarelo e azul. Sabe que a tinta se irá esbater, molhada numa poça de água ou simplesmente dissipada pelo tempo, mas é assim que as memórias devem funcionar.
Presentes... e depois, pouco a pouco, já não.
Veste a roupa do dia anterior e pega no blusão de cabedal, mas, em vez de o enfiar, dobra-o cuidadosamente e coloca-o na gaveta vazia. Fica ali, rodeado de espaço vazio, à espera de ser preenchido.
Addie volta para a cama e quase pisa o caderno.
Encontra-se aberto no chão — deve ter deslizado da cama durante a noite —, e levanta-o delicadamente, como se fosse feito de cinza e teias de aranha, em vez de papel e cola. Quase espera que se desfaça sob o seu toque, e, quando arrisca abrir a capa, descobre as primeiras páginas preenchidas. Addie arrisca de novo, passa os dedos levemente por cima das palavras, sente a indentação da caneta, os anos escondidos por detrás de cada palavra.
Começa assim, escreveu ele por baixo do nome dela.
A primeira coisa de que ainda se lembra é da ida ao mercado. O pai no banco, ao seu lado, a carroça carregada com as suas peças...
Sustém a respiração enquanto lê, com o som do duche a encher o quarto numa quietude tranquila.
O pai conta-lhe histórias. Não se lembra das palavras, mas lembra-se da forma como as dizia...
Addie endireita-se nesse ponto, lendo até ficar sem palavras, a caligrafia a dar lugar a página após página de espaço vazio, à espera de ser preenchido.
Quando ouve Henry fechar a torneira, obriga-se a encerrar o caderno e volta a pousá-lo suavemente, quase de forma reverencial, em cima da cama.