Paris, França
29 de julho de 1789
Paris está em chamas.
Lá fora, o ar tresanda a pólvora e a fumo, e, embora a cidade nunca tenha sido propriamente silenciosa, nos últimos quinze dias o barulho tem sido incessante. São saraivadas de mosquetes e disparos de canhão, são soldados a gritar ordens e a retaliação carregada de boca em boca.
Vive la France. Vive la France. Vive la France.
Duas semanas desde a Tomada da Bastilha, e a cidade parece determinada a dividir-se ao meio. E, no entanto, tem de continuar, tem de sobreviver, e todos os que se encontram nela estão entregues à descoberta de um caminho por entre a tempestade diária.
Addie decidiu deslocar-se preferencialmente de noite.
Deambula por entre a escuridão, com um sabre a pender-lhe da cintura e um chapéu de três bicos sobre a testa. As roupas, surripiou-as a um homem que fora morto na rua, o tecido rasgado e a mancha escura no estômago escondidos sob um casaco recuperado de outro cadáver. Os pedintes não podem ser esquisitos, e é demasiado perigoso viajar como mulher sozinha. Pior ainda, nestes tempos, fazer de conta que se é nobre — é preferível passar despercebido de outras formas.
Uma vaga varreu a cidade, outrora triunfante e intoxicante, e, com o tempo, Addie aprenderá a saborear as mudanças no ar, a sentir a linha entre o vigor e a violência. Mas, nessa noite, a rebelião ainda é nova, a energia estranha e impossível de interpretar.
Quanto à cidade em si, as avenidas de Paris transformaram-se todas num labirinto, com o levantamento súbito de barreiras e barricadas a transformar todos os caminhos numa espécie de becos sem saída. Não é, portanto, surpreendida, quando, ao dobrar outra esquina, depara com um monte de caixas e destroços a arder, um pouco adiante.
Addie pragueja baixinho, está prestes a voltar para trás, quando ouve botas na rua, atrás de si, e uma arma dispara, acertando na barricada, por cima da sua cabeça.
Vira-se para dar de caras com meia-dúzia de homens a barrarem-lhe a retirada, vestidos com a indumentária sarapintada da rebelião. Os seus mosquetes e sabres brilham pesadamente sob a luz noturna. Sente-se, então, grata por as suas roupas terem outrora pertencido a um homem do povo.
Addie pigarreia, tendo o cuidado de tornar a voz mais grave, rude, enquanto grita Vive la France!
Os homens devolvem a aclamação, mas, para sua consternação, não recuam. Em vez disso, continuam a avançar para ela, com as mãos pousadas nas armas. À luz das chamas, os seus olhos afiguram-se brilhantes do vinho e da energia inexprimível da noite.
— O que andas a fazer por aqui? — pergunta um.
— Pode ser um espião — diz outro. — Há muitos soldados por aí a desfilar em roupas comuns. A roubarem os corpos dos mortos valorosos.
— Não quero problemas — grita ela. — Estou simplesmente perdido. Deixem-me passar e desaparecerei destas paragens.
— E regressarás com mais dez — murmura o segundo.
— Não sou espião, nem soldado, nem cadáver — grita ela de volta. — Andava apenas à procura...
— ... de sabotagem — atalha um terceiro.
— Ou de assaltar as nossas reservas — sugere outro.
Já não estão a gritar. Não precisam. Aproximaram-se o suficiente para falar em níveis normais, empurrando-a contra a barricada a arder. Se conseguisse apenas passar por eles, fugir, para longe da vista e da mente — mas não há maneira de correr. As ruas laterais foram todas barradas. As caixas ardem, quentes, atrás do seu corpo.
— Se és amigo, prova-o.
— Pousa a espada.
— Tira o chapéu. Deixa-nos ver a tua cara.
Addie engole em seco e atira o chapéu para o lado, na esperança de que a escuridão seja suficiente para esconder a suavidade dos seus traços. Mas, nesse mesmo instante, a barricada desaba atrás dela, com uma das vigas a dar lugar às chamas, e, por um instante, o fogo incendeia o ar, e ela sabe que a luz é suficientemente forte para tornar tudo visível. Sabe-o pela mudança nos seus rostos.
— Deixem-me passar — volta a dizer, com a mão a descer até à espada, na anca. Sabe como empunhá-la, também sabe que eles são cinco e ela apenas uma e que, se partir para o confronto, só conseguirá sobreviver à situação passando por eles. A promessa de sobrevivência é um escasso consolo face à perspetiva do que poderá acontecer primeiro.
Aproximam-se, e Addie empunha a espada.
— Para trás — ruge.
E, para sua surpresa, os homens detêm-se. Os seus passos interrompem-se, e uma sombra passa-lhes pelos rostos, com as expressões a aquietarem. As mãos caem das armas, as cabeças tombam sobre os ombros, e a noite silencia, à exceção do estampido das caixas a arder e do surgimento de uma voz atrás dela, como o vento.
— Os seres humanos estão muito pouco preparados para a paz.
Vira-se, de espada ainda em riste, e depara com Luc, o seu perfil negro contra as chamas. Não se afasta da espada, levanta simplesmente a mão e passa-a pelo aço com toda a elegância de um amante a aflorar pele, de um músico a acariciar um instrumento. Addie quase espera que a lâmina cante sob os seus dedos.
— Minha Adeline — diz a escuridão —, tens realmente queda para te meter em sarilhos. — Aquele olhar verde intenso desvia-se para os homens imobilizados. — Que sorte eu andar por aqui.
— Tu és a própria noite — papagueia ela. — Não devias estar por todo o lado?
Um sorriso acende-se no rosto dele.
— Que bela memória. — Os dedos fecham-se à volta da espada, e esta começa a enferrujar. — Deve ser muito cansativo.
— De todo — diz ela secamente. — É uma bênção. Pensa em tudo o que há para aprender. E eu, com todo o tempo q...
É interrompida por uma saraivada de tiros ao longe, a resposta de um canhão, pesado como um trovão. Luc franze a testa de desagrado, e ela diverte-se por o ver agitado. Ouve-se de novo o canhão, e ele agarra-a pelo pulso.
— Anda — diz ele —, nem me consigo ouvir a pensar.
Roda rapidamente sobre os calcanhares e arrasta-a atrás de si. Mas, em vez de avançar, mete por uma rua lateral, penetrando na sombra profunda da parede mais próxima. Addie salta para trás, esperando esbarrar contra a pedra, mas a parede abre-se, e o mundo cede, e, antes de conseguir respirar, recua, Paris desapareceu, e Luc também.
E fica mergulhada numa escuridão total.
Não é tão silencioso como a morte, não é tão vazio ou calmo. Existe violência naquele vazio negro e cedo. São asas de pássaros a bater-lhe contra a pele. É a fúria do vento no seu cabelo. São milhares de vozes a sussurrar. É o medo, e é estar a cair, e é uma sensação selvagem, feroz, e, na altura em que pensa em gritar, a escuridão volta a desaparecer, a noite forma-se de novo, e Luc está mais uma vez ao seu lado.
Addie vacila, encosta-se à ombreira de uma porta, sentindo-se indisposta e vazia e confusa.
— O que foi aquilo? — pergunta, mas Luc não responde. Encontra-se a alguns passos dela, com as mãos abertas sobre a balaustrada de uma ponte, enquanto olha por cima do rio.
Mas não é o Sena.
Não há barricadas em chamas. Não há tiros de canhão. Não há homens à espreita, com armas à ilharga. Apenas um rio a correr sob uma ponte estranha e edifícios estranhos a erguerem-se ao longo de margens estranhas, com os telhados forrados a telhas vermelhas.
— Assim está melhor — diz ele, ajeitando os punhos. Inesperadamente, no instante do nada, mudou de roupa, exibindo agora um colarinho subido, as peças cortadas numa seda mais suave, enquanto Addie enverga a mesma túnica mal-amanhada, recuperada de uma rua de Paris.
Um casal passa de braço dado, e ela capta apenas os altos e baixos de uma língua estrangeira.
— Onde estamos? — pergunta.
Luc olha por cima do ombro e diz algo no mesmo tom irregular, antes de o repetir em francês.
— Estamos em Florença.
Florença. Já ouviu esse nome antes, mas sabe pouco acerca dele, além do óbvio — que não fica em França, mas na Toscana.
— O que fizeste? — pergunta. — Como é que... Não, esquece. Leva-me simplesmente de volta.
Luc arqueia uma sobrancelha.
— Adeline, para alguém que só tem tempo, estás sempre com pressa.
E com essas palavras afasta-se tranquilamente, e Addie não tem outro remédio senão segui-lo.
Absorve a estranheza da nova cidade. Florença é toda feita de formas estranhas e contornos pronunciados, cúpulas e pináculos, paredes de pedra branca e telhados cobertos de tons acobreados. É um lugar pintado numa paleta diferente, com música tocada num acorde distinto. O seu coração vacila perante a sua beleza, e Luc sorri como se conseguisse captar o seu deslumbramento.
— Preferias as ruas a arder de Paris?
— Pensei que gostavas de guerra.
— Aquilo não é guerra — diz brevemente. — É apenas uma escaramuça.
Segue-o até um grande espaço aberto, uma praça cheia de bancos de pedra, o ar pesado do aroma das flores de verão. Luc caminha à frente, a imagem de um cavalheiro a aproveitar o ar noturno, abrandando apenas quando vê um homem, com uma garrafa de vinho debaixo do braço. Contrai os dedos, e o homem muda de rumo, aproximando-se dele como um cão. Luc fala nessa outra língua, um dialeto que ela acabará por conhecer como florentino, e, embora ainda não conheça as palavras, identifica o fascínio na voz dele, aquele lustro leve que ganha forma no ar que os envolve. Também identifica o ar sonhador nos olhos do florentino quando entrega o vinho com um sorriso plácido e se afasta distraidamente.
Luc senta-se num banco e faz aparecer dois copos do nada.
Addie não se senta. Fica de pé e vê-lo retirar a rolha da garrafa, verter o vinho e dizer:
— Porque haveria de gostar de guerra?
É a primeira vez, pensa Addie, que ele lhe fez uma pergunta sincera, uma pergunta não destinada a acicatar, a exigir, a forçar.
— Não és um deus do caos?
A sua expressão azeda.
— Sou um deus de promessas, Adeline, e as guerras são amos terríveis. — Oferece-lhe um copo e, vendo que ela não o aceita, ergue o seu, como que para brindar a ela. — A uma vida longa.
Addie não se contém. Abana a cabeça, perplexa.
— Umas noites, gostas de me ver sofrer, para eu ceder. Outras, pareces desejar poupar-me a isso. Gostava muito que te decidisses.
Uma sombra passa-lhe pelo rosto.
— Acredita em mim, minha querida, não irias gostar. — Um pequeno arrepio percorre-a enquanto ele leva o copo de vinho até aos lábios. — Não confundas isto, nada disto, com bondade, Adeline. — Os seus olhos brilham de travessura. — Quero apenas ser aquele que te faz ceder.
Ela olha em volta, para a praça rodeada de árvores, iluminada por candeias, com o luar a brilhar nos telhados vermelhos.
— Bem, então terás de te esforçar mais...
Mas para de falar quando a sua atenção regressa ao banco de pedra.
— Oh, raios — murmura, olhando em volta para a praça vazia.
Porque, evidentemente, Luc desapareceu.