Villon-sur-Sarthe, França
29 de julho de 1854
Villon não deveria mudar.
Quando estava a crescer, era sempre tão dolorosamente imóvel, como o ar de verão antes de uma tempestade. Uma aldeia esculpida em pedra. E, no entanto, o que dissera Luc?
Mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
Villon ainda não estava desgastada. Ao invés, mudara, crescera, com novas raízes a espraiarem-se, outras cortadas. O bosque fora obrigado a recuar, as árvores na orla da floresta acabaram todas por alimentar os lumes das lareiras e abrir caminho para campos e colheitas. Há agora mais muros do que havia dantes. Mais edifícios. Mas estradas.
Enquanto Addie caminha pela vila, com o cabelo enfiado numa touca apertada, destaca um nome, um rosto, um fantasma de um fantasma de uma família que em tempos conheceu. Mas a Villon da sua juventude finalmente dissipou-se, e pergunta-se se é assim que os outros vivem a memória, este apagar lento de pormenores.
Pela primeira vez, não reconhece cada atalho.
Pela primeira vez, não tem a certeza se sabe o caminho.
Vira num ponto, esperando encontrar uma casa, mas, em vez disso, encontra duas, divididas por um muro de pedra baixo. Dirige-se para a esquerda, mas, em vez de um campo aberto, encontra um estábulo, rodeado por uma vedação. Finalmente, reconhece o caminho para casa, sustém a respiração enquanto percorre a alameda, sente algo dentro de si soltar-se ao divisar o velho teixo, ainda inclinado e enredado na extrema da propriedade.
Mas, para lá da árvore, o local está mudado. Roupas novas cobrem ossos novos.
A oficina do pai foi eliminada, com a pegada da cabana apenas marcada por uma sombra no chão, tendo a erva selvagem há muito preenchido o seu lugar, num tom ligeiramente diferente. E, embora Addie se tenha preparado para a imobilidade bafienta dos lugares abandonados, depara em vez disso com movimento, vozes, riso.
Alguém se mudou para a casa de família, um dos recém-chegados à vila em crescimento. Uma família, com uma mãe que sorri mais e um pai que não o faz, e dois rapazes a correrem no pátio, com o cabelo cor de palha. O mais velho vai atrás de um cão, que fugiu com uma meia, e o mais novo trepa ao velho teixo, com os pés descalços a encontrarem os mesmos nós e curvas que ela, quando era criança, com o caderno de desenho debaixo do braço. Devia ter aquela idade... ou seria mais velha?
Fecha os olhos, tenta reter a imagem, mas esta desliza e escorrega-lhe por entre os dedos. Essas primeiras memórias não estão presas dentro do prisma. Esses anos anteriores, perdidos para uma outra vida. Os olhos fecham-se apenas por um momento, mas, quando os abre, a árvore está vazia. O rapaz desapareceu.
Mesmo as rochas se desgastam até se transformarem em nada.
— Olá — diz uma voz, algures atrás dela.
É o mais novo, o rosto aberto e virado para cima.
— Olá — diz ela.
— Está perdida?
Ela hesita, dividida entre sim e não, sem saber qual está mais perto da verdade.
— Sou um fantasma — diz ela. Os olhos do rapaz abrem-se de surpresa, de assombro, e pede-lhe que o prove. Ela diz-lhe que feche os olhos e, quando o faz, desaparece.
No cemitério, a árvore que Addie transplantou ganhou raízes.
Ergue-se sobre a campa de Estele, mergulhando os seus ossos num charco de sombra.
Addie passa a mão pela casca, maravilha-se com a facilidade com que o rebento se transformou uma árvore de tronco grosso, com as raízes e ramos a escapulirem-se para todos os lados. Cem anos depois de ter sido plantada — um período de tempo outrora demasiado longo para imaginar e agora demasiado difícil de medir. Até agora, contou o tempo em segundos, e em estações, em vagas de frio e em degelos, em insurreições e rescaldos. Viu edifícios desabar e nascer, cidades arder e serem refeitas, o passado e o presente confundidos em algo fluido e efémero.
Mas isto, isto é tangível.
Os anos marcados em madeira e casca, raiz e solo.
Addie senta-se com as costas apoiadas na pedra tumular da mulher e repousa os seus próprios ossos antigos na sombra sarapintada e calcula o tempo desde a sua última visita. Conta a Estele histórias sobre Inglaterra e sobre Veneza e Espanha, sobre Matteo e a galeria, sobre Luc e sobre a sua arte e sobre todas as formas como o mundo mudou. E, apesar de não haver resposta, à exceção do restolhar de folhas, sabe o que a velha diria.
Tudo muda, sua tola. Faz parte da natureza do mundo. Nada permanece igual.
Exceto eu, pensa ela, mas Estele responde, seca como gravetos.
Nem mesmo tu.
Sentiu falta dos conselhos da idosa, mesmo dentro da sua cabeça. A voz tornou-se frágil, desgastada com o passar dos anos, esbatida como todas as memórias mortais.
Mas ali, pelo menos, regressa a ela.
O sol já atravessou o céu no momento em que se levanta e caminha até à orla da aldeia, à orla do bosque, ao sítio a que a velha em tempos chamara casa. Mas o tempo também reclamou ali o seu lugar. O jardim, outrora demasiado crescido, foi engolido pela mata invasora, e a natureza selvagem ganhou a guerra contra a cabana, arrastou-a, com árvores jovens a rebentarem junto às estruturas. A madeira apodreceu, as pedras tombaram, o telhado desapareceu, e as ervas daninhas e a hera começam lentamente a desmantelar o resto.
Da próxima vez que ali for, não haverá vestígios, os despojos terão sido engolidos pelo avanço do bosque. Mas, por enquanto, ainda persiste o esqueleto, a ser lentamente enterrado pelo musgo.
Addie está a meio caminho da cabana decrépita quando se apercebe de que esta não está completamente deserta.
Um estremecimento no monte destruído, e semicerra os olhos, esperando encontrar um coelho ou talvez um veado jovem. Em vez disso, depara com um rapaz. Está a brincar entre as ruínas, trepando ao que resta das velhas paredes de pedra, esmagando as ervas com um ramo arrancado da mata.
Conhece-o. É o filho mais velho, o rapaz que viu antes a perseguir um cão pelo pátio. Deve ter 9 ou 10 anos. Idade suficiente para que os olhos se estreitem de desconfiança quando a vê.
Segura o pau como se fosse uma espada.
— Quem és tu? — pergunta.
E desta vez Addie não se satisfaz em ser um fantasma.
— Sou uma bruxa.
Não sabe porque o diz. Talvez simplesmente para se divertir. Talvez porque, quando a verdade não é uma opção, a ficção ganha vontade própria. Ou talvez porque seria o que Estele diria, se ali estivesse.
Uma sombra atravessa o rosto do rapaz.
— As bruxas não existem — diz, mas a sua voz vacila, quando o diz, e, quando ela se aproxima, com os sapatos a estalar sobre ramos ressequidos pelo sol, ele começa a recuar.
— Estás a brincar com os meus ossos — avisa ela. — Sugiro que saias daí antes de caíres.
O rapaz tropeça de surpresa, quase escorrega num pedaço de musgo.
— A menos que prefiras ficar — reflete ela. — Tenho a certeza de que também haverá espaço para os teus.
O rapaz desce dos escombros e vai-se embora a correr. Addie vê-o partir, com o riso de corvo de Estele a crocitar-lhe aos ouvidos.
Não se sente mal por ter assustado o rapaz; não espera que ele se lembre. E, no entanto, amanhã, ele voltará, e Addie ficará escondida na orla do bosque e observá-lo-á trepar às ruínas, para hesitar, com uma sombra nervosa nos olhos. Voltará a vê-lo ir-se embora e perguntar-se-á se estará a pensar em bruxas e ossos meio enterrados. Se a ideia lhe cresceu na cabeça como uma erva daninha.
Mas hoje Addie está sozinha e pensa apenas em Estele.
Passa as mãos por uma parede meio desabada e pensa em ficar, em tornar-se a bruxa do bosque, a invenção do sonho de outra pessoa. Imagina reconstruir a casa da velha, até se ajoelha para empilhar umas quantas pedras. Mas, à quarta, o monte desmorona-se, com as pedras a aterrarem na erva alta precisamente nos sítios de onde antes as tirara.
A tinta apaga-se.
A ferida desfaz-se.
A casa desconstrói-se.
Addie suspira quando uma mão-cheia de pássaros levanta voo na mata próxima, num riso crocitado. Volta-se para as árvores. Ainda há luz, uma hora talvez até ser noite, e, no entanto, ao olhar para a floresta, consegue sentir a escuridão fitá-la de volta. Anda por entre as pedras meio enterradas e pisa na sombra, sob as árvores.
É percorrida por um arrepio.
É como passar por um véu.
Vagueia por entre as árvores. Outrora, teria tido medo de se perder. Agora, os passos estão-lhe cravados na memória. Não se conseguiria perder, mesmo que tentasse.
O ar ali está mais fresco, a noite mais próxima sob a copa das árvores. Agora é fácil perceber como naquele dia poderá ter perdido a noção das horas. Como a linha entre o crepúsculo e a escuridão se tornou tão esbatida. E pergunta-se se porventura teria pedido ajuda, caso soubesse que horas eram?
Teria rezado, sabendo que deus responderia?
Não é ela quem responde.
Não precisa de o fazer.
Não sabe quanto tempo ele esteve ali, atrás dela, se a seguiu por algum tempo, em silêncio. Sabe apenas no momento em que ouve ramos estalar atrás de si.
— Que estranha peregrinação insistes em fazer.
Addie sorri para si mesma.
— Achas?
Vira-se para deparar com Luc, encostado a uma árvore.
Não é a primeira vez que o vê desde a noite em que colheu a alma de Beethoven. Mas ainda não se esqueceu do que viu. Nem se esqueceu de que ele queria que o testemunhasse, que olhasse para ele e alcançasse a verdade do seu poder. Mas foi algo tolo de se fazer. Como mostrar o jogo, quando as apostas mais altas se encontram em cima da mesa.
Vejo-te, pensa enquanto ele se desencosta da árvore e se endireita. Vi-te na tua verdadeira forma. Já não me consegues assustar.
Luc avança para uma clareira estreita de luz.
— O que te traz de volta aqui? — pergunta.
Addie encolhe os ombros.
— Nostalgia, talvez.
Ele levanta o queixo.
— Diria antes fraqueza. Andar apenas em círculos, quando podias criar caminhos novos.
Addie franze o sobrolho.
— Como posso criar um caminho quando nem sequer consigo empilhar uma mão-cheia de pedras? Liberta-me e verás quão bem me desenvencilho.
Ele suspira e dissolve-se na escuridão.
Quando volta a falar, encontra-se atrás dela, a sua voz como uma brisa pelo cabelo.
— Adeline, Adeline — ralha, e ela sabe que, se se virar de novo, Luc não estará ali e por isso não se mexe, mantém os olhos fixos na floresta. Não estremece quando as mãos dele deslizam pela sua pele. Quando o seu braço serpenteia pelos seus ombros.
De perto, cheira a carvalho e a folhas e a campos encharcados pela chuva.
— Não estás cansada? — sussurra ele.
E ela estremece ao ouvir as palavras.
Estava preparada para o seu ataque, para as suas farpas verbais, mas não estava preparada para aquela pergunta, não estava preparada para a forma quase delicada como a faz.
Passaram-se cento e quarenta anos. Um século e meio, a viver como um eco, como um fantasma. Claro que está cansada.
— Não gostavas de descansar, minha querida?
As palavras arrastam-se como teias de aranha pela pele.
— Podia enterrar-te ali, ao lado da Estele. Plantar uma árvore, fazê-la crescer por cima dos teus ossos.
Addie fecha os olhos.
Sim, está cansada.
Pode não sentir os anos enfraquecer-lhe os ossos, o corpo ficar mais frágil com a idade, mas a fadiga é uma coisa física, como a decomposição, dentro da sua alma. Há dias em que lamenta a perspetiva de mais um ano, de mais uma década, de mais um século. Há noites em que não consegue dormir, momentos em que fica acordada e sonha morrer.
Mas depois acorda e vê a madrugada rosa e laranja contra as nuvens ou ouve o lamento de um violino solitário, a música e a melodia, e lembra-se que há uma beleza imensa no mundo.
E não quer perdê-la... nem um pedaço.
Addie vira-se no círculo dos braços de Luc e olha para cima, para o seu rosto.
Não sabe se é da noite que se aproxima ou da natureza do próprio bosque, mas ele parece diferente. Nestes últimos anos, viu-o envolvido em veludo e renda, ataviado ao último grito da moda. E viu-o como o vazio, desenfreado e violento. Mas, ali, não é nenhum dos dois.
Ali, é a escuridão que conheceu naquela noite. Magia selvagem na forma de um amante.
Os seus olhos turvam-se em sombras, a pele fica da cor do luar, os olhos precisamente do mesmo tom que o musgo, atrás dele. É selvagem.
Mas ela também é.
— Cansada? — diz ela, invocando um sorriso. — Ainda agora acabo de acordar.
Prepara-se para o seu desagrado, para a sombra selvagem, para o lampejo dos dentes.
Mas não há vestígio de amarelo nos seus olhos.
Na verdade, têm um tom de verde novo e sinistro.
Demorará anos a aprender o significado dessa cor, a interpretá-la como divertimento.
Nessa noite, há apenas esse breve vislumbre e depois o aflorar dos seus lábios contra o rosto de Adeline.
— Mesmo as rochas... — murmura ele e depois desaparece.