Nova Iorque

13 de junho de 2014

cap12

Um rapaz e uma rapariga caminham de braço dado.

Dirigem-se à Knitting Factory, e, como a maior parte das coisas em Williamsburg, não é o que parece, não é uma oficina de artes manuais ou um lugar onde se pode fiar, mas um local preparado para concertos, na extremidade norte de Brooklyn.

É o aniversário de Henry.

Tempos antes, quando lhe perguntou quando era o aniversário dela e quando Addie lhe disse que fora em março, uma sombra atravessou o rosto de Henry.

— Desculpa tê-lo perdido.

— É isso que é bom nos aniversários — disse ela, encostando-se a ele. — Acontecem todos os anos.

Rira-se um pouco então, e ele também, mas havia algo oco na voz dele, uma tristeza que confundiu com mera distração.

Os amigos de Henry já marcaram lugar perto do palco, deixando caixinhas empilhadas na mesa, entre eles.

— Henry! — grita Robbie, com duas garrafas já vazias à frente.

Bea despenteia-lhe o cabelo.

— O nosso querido bebé de verão, literalmente.

A atenção desvia-se para lá dele e fixa-se em Addie.

— Ei — diz ele —, esta é a Addie.

— Finalmente! — diz Bea. — Estávamos mortos por te conhecer.

Claro que já tinham conhecido.

Andavam há semanas a pedir para conhecer a rapariga nova na vida de Henry. Estavam sempre a acusá-lo de a esconder, mas Addie conhecera-os uma vez à volta de umas quantas cervejas, fora a uma noite de cinema em casa de Bea, cruzara-se com eles em galerias e parques. E, de cada uma das vezes, Bea fala de déjà vu e depois, mais uma vez, de movimentos artísticos, e, de cada uma das vezes, Robbie amua, apesar dos melhores esforços de Addie para o acalmar.

O facto parece incomodar mais Henry do que ela própria. Deve pensar que ela fez paz com esse assunto, mas a verdade é que não há paz à vista. O ciclo interminável de olá, quem é esta, prazer em conhecer-te, olá desgasta-a como água sobre pedra — danos lentos, mas inevitáveis. Aprendeu simplesmente a viver com isso.

— Sabes — diz Bea, estudando-a —, pareces-me tão familiar.

Robbie levanta-se da mesa para ir buscar uma rodada de bebidas, e o peito de Addie aperta-se ao pensar no reset, em ter de começar tudo outra vez, mas Henry intervém, toca no braço de Robbie.

— Eu vou — diz ele.

— O aniversariante não paga! — protesta Bea, mas Henry agita a mão na sua direção e desaparece por entre a multidão crescente.

E Addie fica sozinha com os seus amigos.

— É mesmo fixe ver-vos juntos — diz ela. — O Henry está sem- pre a falar de ti.

Os olhos de Robbie semicerram-se de desconfiança.

Addie sente o muro erguer-se entre eles, mais uma vez, mas já conhece as oscilações de humor de Robbie, sim, e por isso insiste.

— És ator, certo? Adorava assistir a um dos teus espetáculos. O Henry diz que és fantástico.

Ele brinca com o rótulo da cerveja.

— Pois, pois... — murmura, mas Addie capta a sombra de um sorriso quando o diz.

E depois Bea interrompe.

— O Henry parece estar feliz. Realmente feliz.

— E estou — diz Henry, pousando uma rodada de cervejas.

— Aos 29 — diz Bea, levantando o copo.

Começam a debater as vantagens da idade e concordam que é um ano bastante inútil, no que diz respeito a aniversários, ficando mesmo atrás dos monumentais 30.

Bea agarra Henry pelo pescoço.

— Mas, para o ano, serás oficialmente adulto.

— Tenho quase a certeza de que isso foi quando fiz 18 — diz ele.

— Não sejas ridículo. Os 18 são suficientes para votar, os 21 para beber, mas os 30 são para tomar decisões.

— Mais perto de uma crise de meia-idade do que de uma crise dos 25 anos — brinca Robbie.

O microfone faz-se ouvir, lamentando-se ligeiramente quando um homem sobe ao palco e anuncia uma atuação especial de abertura.

— É uma estrela em ascensão. Tenho a certeza de que já ouviram este nome, mas, se não for o caso, ouvirão dentro de muito pouco tempo. Os vossos aplausos para Toby Marsh!

O coração de Addie tem um baque.

A multidão aclama e aplaude, e Robbie assobia, e Toby sobe ao palco, o mesmo rapaz belo e corado, mas, quando acena para a multidão, o seu queixo levanta-se, o sorriso fixa-se, orgulhoso. A diferença entre as primeiras linhas exploratórias de um esboço e o desenho acabado.

Senta-se ao piano e começa a tocar, e as primeiras notas atingem-na numa vaga de nostalgia. E então ele começa a cantar.

Estou apaixonado por uma rapariga que nunca conheci.

O tempo salta, e ela está na sala de estar dele, empoleirada no banco do piano, com o chá a libertar vapor no parapeito da janela, enquanto os seus dedos ausentes tocam as notas.

Mas parece que a vejo todas as noites...

Está na cama dele, com as suas mãos largas a tocarem a melodia na sua pele. O rosto incendeia-se com essa memória, enquanto ele canta.

E tenho tanto medo, medo de a esquecer, apesar de só a ter conhecido nos meus sonhos.

Nunca lhe disse a letra, mas, mesmo assim, ele acabou por a descobrir.

A sua voz é mais nítida, mais forte, o tom mais confiante. Precisava apenas da canção certa. De algo que fizesse a multidão inclinar-se e escutar.

Addie fecha os olhos com força, o passado e o presente enredados na sua cabeça.

Todas as noites no Alloway, a vê-lo tocar.

Todas as vezes que ele a encontrou no bar e sorriu.

Todas as estreias que não foram estreias para ela.

O palimpsesto a perpassar o papel.

Toby olha por cima do piano, e não há forma de a poder ver num sítio tão grande, mas ela tem a certeza de que os seus olhos se cruzaram, e a sala rodopia um pouco, e ela não sabe se é das cervejas que bebeu demasiado depressa ou da vertigem da memória, mas depois a canção chega ao fim, substituída por uma salva de aplausos, e ela levanta-se, dirigindo-se para a porta.

— Addie, espera — diz Henry, mas ela não consegue, apesar de saber o que significa virar costas, de saber que Robbie e Bea se irão esquecer dela e que terá de recomeçar, e Henry também, mas, naquele momento, não quer saber.

Não consegue respirar.

A porta abre-se de par em par, e a noite precipita-se para o interior, e Addie arqueja, obrigando o ar a entrar nos pulmões.

E devia ser bom ouvir a sua música, devia parecer acertado.

Afinal, foi visitar tantas vezes peças da sua arte.

Mas eram apenas peças, retiradas do contexto.

Pássaros esculpidos em bases de mármore e quadros atrás de cordas. Caixas didáticas afixadas a paredes pintadas de branco e caixas de vidro que mantêm o presente separado do passado.

É diferente quando o vidro se parte.

É a mãe à porta, consumida até aos ossos.

É Remy, no salão de Paris.

É Sam, a convidá-la a ficar, de cada uma das vezes.

É Toby Marsh, a tocar a sua canção.

A única forma que Addie conhece de persistir é continuar em frente. Eles são Orfeu, ela é Eurídice, e, sempre que eles olham para trás, ela é destruída.

— Addie? — Henry está mesmo atrás dela. — O que se passa?

— Desculpa — diz ela. Limpa as lágrimas e abana a cabeça porque a história é demasiado longa e demasiado curta. — Não consigo voltar lá para dentro, pelo menos por enquanto.

Henry olha por cima do ombro e deve ter visto a cor desaparecer-lhe do rosto durante a atuação porque diz:

— Conhece-lo? Esse Toby Marsh?

Não lhe contou essa história — ainda não chegaram lá.

— Conheci — diz ela, o que não é propriamente verdade, porque o faz parecer como se fosse algo do passado, quando o passado é algo a que Addie não tem direito, e Henry deve ouvir a mentira enterrada nas palavras, porque franze a testa. Entrelaça as mãos atrás da cabeça.

— Ainda sentes alguma coisa por ele?

E ela quer ser sincera, dizer que, obviamente, sente. Nunca termina as coisas, nunca chega a dizer adeus — não há pontos finais ou pontos de exclamação, apenas uma vida de elipses. Todas as outras pessoas começam de novo, têm direito a uma página em branco, mas as dela estão cheias de texto. As pessoas dizem transportar archotes com chamas antigas, mas não se trata de um verdadeiro incêndio. Contudo, as mãos de Addie estão cheias de velas. Como se pretende que as pouse ou apague? Há muito que ficou sem fôlego.

Mas não é amor.

Não é amor, e é isso que ele está a perguntar.

— Não — diz ela. — Ele só... apanhou-me desprevenida. Desculpa.

Henry pergunta-lhe se quer ir para casa, e Addie não sabe se isso significa os dois ou apenas ela, não quer descobrir, por isso abana a cabeça, e voltam para dentro, e as luzes mudaram, e o palco está vazio, com a house music a criar ambiente até ao espetáculo principal, e Bea e Robbie estão a conversar, com as cabeças inclinadas, tal como estavam quando eles entraram. E Addie faz os possíveis por sorrir quando chegam à mesa.

— Aí está ele! — diz Robbie.

— Onde te meteste? — pergunta Bea, com os olhos a saltar de Henry para Addie. — E quem é esta?

Henry envolve-a pela cintura.

— Ei, esta é a Addie.

Robbie olha-a de cima a baixo, mas Bea limita-se a mostrar-se radiante.

— Finalmente! — diz Bea. — Estávamos mortos por te conhecer...