Villon-sur-Sarthe

29 de julho de 1914

cap1

Chove torrencialmente em Villon.

O Sarthe incha contra as margens, e a chuva transforma os caminhos em rios de lama. Derrama-se sobre as soleiras das portas, enche-lhe os ouvidos com o ruído branco regular de água a precipitar-se, e, quando Addie fecha os olhos, os anos dissolvem-se, e tem de novo 10 anos, tem 15, tem 20, as saias encharcadas e o cabelo a esvoaçar atrás dela enquanto corre, descalça, por um campo lavado pela chuva.

Mas depois abre os olhos de novo, e passaram-se duzentos anos, e não consegue negar que aquela aldeiazinha de Villon mudou. Reconhece cada vez menos coisas, estranha cada vez mais coisas. Aqui e ali, ainda consegue divisar o lugar que outrora conheceu, mas as suas memórias estão puídas, com os anos anteriores à sua partida a definhar e a esbater-se.

E, no entanto, algumas coisas são constantes.

A extensão da rua que percorre a vila.

A igrejinha mesmo no centro.

O muro baixo do cemitério, imune ao lento desfilar da mudança.

Addie demora-se à porta da capela, observando a tempestade. Tinha um chapéu de chuva quando começou, mas uma rajada de vento violenta dobrou a estrutura, e sabe que deverá esperar que a chuva abrande, que tem apenas aquele vestido. Mas, enquanto ali está, com uma mão estendida para colher a água que cai, pensa em Estele, que costumava ficar de pé sob as tempestades, de braços abertos, em boas-vindas.

Addie abandona o seu abrigo e dirige-se ao portão do cemitério.

Em pouco tempo, fica encharcada, mas a chuva é quente, e ela dificilmente derreterá. Passa por umas quantas lápides novas e por muitas antigas, coloca uma rosa selvagem em cada uma das sepulturas dos pais e vai à procura de Estele.

Teve saudades da velha durante todos aqueles anos, saudades do seu consolo, do seu conselho, teve saudades da força do seu abraço e do seu riso lenhoso e da forma como acreditava em Addie quando esta era Adeline, quando ainda ali estava, quando ainda era humana. E, apesar de se agarrar ao que pode, a voz de Estele fez tudo menos desaparecer com os anos decorridos. É o único lugar onde ainda a consegue invocar, sentindo a sua presença nas velhas pedras, na terra emaranhada de ervas, na árvore retorcida por cima da sua cabeça.

Mas a árvore não está ali.

A sepultura afunda-se, abatida, no talhão, a pedra a desfazer-se e fendida, mas a bela árvore, com os seus troncos amplos e as suas raízes profundas, desapareceu.

Resta apenas um cepo entalhado.

Addie arqueja de forma audível, deixando-se cair de joelhos, passa as mãos pela cabeça e pela madeira lascada. Não. Não, isto não. Perdeu muito e já se lamentou por tudo antes, mas, pela primeira vez em anos, é acometida por uma sensação de perda tão intensa que lhe rouba o fôlego, a força, a vontade.

A mágoa, profunda como um poço, abre-se dentro dela.

De que vale plantar sementes?

Porque se há de cuidar delas?

Porque se deve ajudá-las a crescer?

Tudo se desmorona no fim.

Tudo morre.

E ela é tudo o que resta, um fantasma solitário de vela sobre coisas esquecidas. Fecha os olhos com força e tenta invocar Estele, tenta chamar a voz da idosa, para lhe poder dizer que tudo ficará bem, que é apenas madeira — mas a voz desapareceu, perdida sob a tempestade furiosa.

Addie ainda ali está, à espera, ao fim do dia.

A chuva abrandou, transformando-se numa morrinha, o pingar ocasional de água contra pedra. Está encharcada, mas já não o consegue sentir, não consegue sentir grande coisa — até sentir o ar mudar e a chegada da sombra, atrás dela.

— Lamento — diz ele, e é a primeira vez que ouviu aquelas palavras naquela voz sedosa, a única vez que irão soar sinceras.

— Foste tu que fizeste isto? — sussurra sem olhar para cima.

E, para sua surpresa, Luc ajoelha-se ao seu lado na terra ensopada. A sua roupa não parece molhada.

— Não me podes culpar por todas as perdas — diz ele.

Só se apercebe de que está a tremer quando o braço dele lhe envolve os ombros, quando sente os membros tiritar contra o seu peso firme.

— Sei que posso ser cruel — diz ele. — Mas a natureza ainda consegue ser mais.

Agora é óbvia, a linha escura no centro do cepo. O corte rápido e quente de um relâmpago. Não alivia a sensação de perda.

Não suporta olhar para a árvore.

Não aguenta ficar ali mais tempo.

— Anda — diz ele, fazendo-a levantar-se, e não sabe onde vão e não quer saber, desde que seja outro sítio qualquer. Addie vira a cabeça para o cepo destruído, para a sepultura desgastada até ao nada. Mesmo as rochas, pensa enquanto segue Luc para longe do cemitério e da aldeia e do passado.

Nunca mais voltará.

Claro que Paris mudou muito mais do que Villon.

Com os anos, viu-a ser polida até reluzir, os edifícios brancos serem cobertos com telhados de carvão. Janelas longas e varandas de ferro e avenidas amplas carregadas de floristas e cafés sob toldos vermelhos.

Sentam-se numa esplanada, o vestido dela a secar sob a brisa de verão, uma garrafa de Porto aberta entre ambos. Addie bebe avidamente, tentando varrer a imagem da árvore, sabendo que não haverá vinho que chegue para limpar as suas memórias.

Isso não a impede de tentar.

Algures ao longo do Sena, um violino começa a tocar. Sob as notas altas, ouve a trepidação do motor de um automóvel. O casco teimoso de um cavalo. A estranha música de Paris.

Luc ergue o copo.

— Feliz aniversário, minha Adeline.

Ela olha para ele, os lábios a abrirem-se no trejeito habitual, mas logo se interrompe abruptamente. Se ela é dele — então, por esta altura, ele também deve ser dela.

— Feliz aniversário, meu Luc — responde, só para ver a cara que ele irá fazer.

É recompensada por uma sobrancelha arqueada, pelo contorcer da sua boca, pelo verde dos olhos a mudar, de surpresa.

Então Luc olha para baixo, roda o copo de Porto entre os dedos.

— Uma vez disseste-me que éramos parecidos — diz ele, quase para si mesmo. — Ambos... solitários. Odiei-te por o teres dito. Mas suponho que, em alguns sentidos, tens razão. Suponho — continua lentamente — que há algo na ideia de companhia.

É o mais próximo que alguma vez chegou de parecer humano.

— Tens saudades minhas — pergunta ela — quando não estás aqui?

Aqueles olhos verdes desviam-se, com o verde-esmeralda a brilhar, mesmo no escuro.

— Estou aqui, contigo, mais vezes do que pensas.

— Claro — diz ela —, tu apareces e desapareces sempre que queres. Eu não tenho remédio senão esperar.

Os olhos dele escurecem de prazer.

— Esperas por mim?

E agora é Addie quem desvia o olhar.

— Tu próprio o disseste. Todos ansiamos por companhia.

— E se me pudesses chamar, tal como eu te chamo?

O coração dela acelera um pouco.

Não olha para cima, e é por isso que o vê, a rolar na mesa, na sua direção. Um anel fino, de madeira de freixo, esculpido.

É um anel.

É o seu anel.

A dádiva que ofereceu às trevas, naquela noite.

A dádiva de que ele desdenhou e que transformou em fumo.

A imagem invocada numa igreja à beira-mar.

Mas, se é uma ilusão agora, é uma ilusão extraordinária. Aqui, o entalhe onde o cinzel do pai se afundou com um pouco mais de profundidade. Ali, a curva alisada como pedra por anos de preocupação.

É real. Tem de ser real. E, no entanto...

— Destruíste-o.

— Aceitei-o — diz Luc, olhando por cima do copo. — Não é a mesma coisa.

A irritação acende-se nela.

— Disseste que não valia nada.

— Disse que não era suficiente. Mas não destruo a beleza sem motivo. Foi meu, por algum tempo, mas sempre foi teu.

Addie maravilha-se perante o anel.

— O que devo fazer?

— Sabes como chamar os deuses.

A voz de Estele, suave como uma brisa.

Tens de te prostrar perante eles.

— Se o puseres, eu venho. — Luc inclina-se para trás, na cadeira, com a brisa noturna a soprar por entre os seus cabelos de corvo. — Pronto — diz ele. — Agora estamos em pé de igualdade.

— Nunca estaremos em pé de igualdade — diz ela enquanto roda o anel entre dedo e polegar e decide que não o irá usar.

É um desafio. Um jogo, apresentado como uma concessão. Mais uma aposta do que uma batalha. Uma guerra de vontades. Para ela, pôr o anel, chamar Luc, seria vergar-se, reconhecer a derrota.

Render-se.

Enfia o objeto no bolso da saia, obriga os dedos a soltarem o talismã.

Só então repara na tensão que existe no ar, nessa noite. É uma energia que já sentiu antes, mas que não consegue situar, até que Luc diz:

— Está prestes a deflagrar uma guerra.

Addie não sabia. Ele conta-lhe do assassinato do arquiduque, o rosto como uma máscara de desagrado terrível.

— Detesto a guerra — diz de forma sombria.

— Pensei que gostavas de conflito.

— O rescaldo alimenta a arte — diz ele. — Mas a guerra transforma cínicos em crentes. Delatores em pessoas desesperadas por salvação, com toda a gente a agarrar-se subitamente às suas almas, a apertá-las com força, como uma mãe de família às suas melhores pérolas. — Luc abana a cabeça. — Devolvam-me a Belle Époque.

— Quem diria que os deuses eram tão nostálgicos?

Luc termina a bebida e levanta-se.

— Devias partir, antes que comece. — Addie ri-se. Quase parece que se importa. O anel permanece, um peso súbito no bolso. Estende a mão. — Posso levar-te.

Devia ter aceitado, devia ter dito que sim. Devia tê-lo deixado levá-la pela escuridão terrível e novamente para fora dela e poupado um oceano, uma semana miserável a bordo de um navio, no mar, com a beleza da água maculada pela sua natureza interminável.

Mas aprendeu demasiado bem a manter-se firme.

Luc abana a cabeça.

— Continuas a ser uma tola obstinada.

Brinca com a possibilidade de ficar, mas, depois de ele se ir embora, não consegue evitar lembrar as sombras no seu olhar, a forma sinistra como falou do conflito futuro. É um sinal, quando os deuses e os demónios receiam uma contenda.

Uma semana mais tarde, Addie foge e embarca num navio para Nova Iorque. Quando atraca, o mundo já está em guerra.