Nova Iorque
29 de julho de 2014
É mais um dia, apenas.
É o que Addie diz para si mesma.
É um dia, apenas — como todos os outros —, mas claro que não é.
Passaram-se trezentos anos desde que se deveria ter casado — um futuro recebido contra a sua vontade.
Trezentos anos desde que se ajoelhou na floresta e invocou as trevas e perdeu tudo, exceto a liberdade.
Trezentos anos.
Devia haver uma tempestade, um eclipse. Alguma forma de assinalar a monumentalidade da data.
Mas o dia amanhece perfeito e sem nuvens e azul.
A cama está vazia ao seu lado, mas consegue ouvir o arrastar baixo dos passos de Henry a andar pela cozinha, e deve ter agarrado os cobertores com força, porque os dedos lhe doem, um nó de sofrimento no centro da palma esquerda.
Quando abre a mão, o anel de madeira cai de dentro dela.
Afasta-o para fora da cama como se fosse uma aranha, um mau agouro, ouve-o aterrar e saltar e rolar pelo soalho de madeira. Addie ergue os joelhos e deixa a cabeça cair sobre eles e respira para o espaço entre as costelas e lembra-se de que é apenas um anel e de que é um dia, apenas. Mas tem uma corda dentro do peito, um terror surdo a apertá-la com mais força, a dizer-lhe que parta, que se afaste o máximo possível de Henry, para o caso de ele aparecer.
Não vai aparecer, diz para si mesma.
Mas não quer correr esse risco.
Os dedos de Henry martelam na porta aberta, e ela olha para cima vendo-o trazer uma travessa com um donut, no qual se encontram espetadas três velas.
E, apesar de tudo, ri-se.
— O que é isto?
— Então, não é todos os dias que a nossa namorada faz trezentos anos.
— Não faço anos hoje.
— Eu sei, mas não sabia bem como lhe chamar.
E, sem mais nem menos, a voz ergue-se como fumo dentro da sua cabeça.
Feliz aniversário, meu amor.
— Pede um desejo — diz Henry.
Addie engole em seco e sopra as velas.
Deita-se na cama ao lado dela.
— Tenho o dia inteiro — diz. —A Bea ficou a substituir-me na loja, e pensei que podíamos apanhar o comboio para... — mas cala-se quando vê o rosto dela.
— O que foi?
O terror crava as unhas no seu estômago, mais profundo do que a fome.
— Não acho que devamos estar juntos — diz ela. — Pelo menos hoje.
O rosto dele afunda-se.
— Oh.
Addie apoia o rosto dele nas suas mãos e mente.
— É apenas um dia, Henry.
— Tens razão — diz ele. — É um dia. Mas de quantos é que ele deu cabo? Não deixes que to roube. — Beija-a. — Que no-lo roube.
Se Luc os encontrar juntos, roubará mais do que isso.
— Vá lá — insiste Henry. — Trago-te muito antes de te transformares numa abóbora. E depois, se quiseres que passemos a noite separados, eu compreendo. Preocupa-te com ele quando for noite, mas ainda faltam horas até lá, e mereces um dia bom. Uma recordação boa.
E Henry tem razão. Addie merece.
O terror abranda um pouco no seu peito.
— Muito bem — diz ela, duas palavrinhas, e todo o rosto de Henry se acende de prazer. — Em que estavas a pensar?
Desaparece na casa de banho e volta a aparecer envergando uns calções de banho amarelos, com uma toalha atirada por cima de um ombro. Atira-lhe um biquíni azul e branco.
— Vamos.
Rockaway Beach é um mar de toalhas coloridas e de bandeiras plantadas na areia.
O riso rola como a maré enquanto as crianças fazem castelos de areia e as pessoas ficam deitadas sob o sol ofuscante. Henry estende as toalhas numa extensão estreita de areia por reclamar, fixa-as com sapatos, e depois Addie pega-lhe na mão e correm praia fora, com as plantas dos pés a ferver até chegarem à linha húmida do mar e mergulharem na água.
Addie arqueja ao sentir o aflorar bem-vindo das ondas, frias, mesmo no calor do verão, e avança um pouco até o oceano lhe envolver a cintura. Henry mergulha a cabeça ao seu lado e regressa à tona, com a água a escorrer-lhe dos óculos. Puxa-a para si, beija-lhe o sal dos dedos. Ela afasta-lhe o cabelo do rosto. Ficam ali, enredados na rebentação.
— Estás a ver — diz ele —, não achas melhor assim?
E é.
Nadam juntos até lhes doerem os membros e a pele começar a ficar engelhada e depois regressam às toalhas que os esperam na praia e estendem-se a secar ao sol. Está demasiado calor para ficar ali muito tempo, e logo o aroma de comida soprada do passadiço é suficiente para os fazer levantar de novo.
Henry arruma as suas coisas e começa a sair da praia, e Addie levanta-se para ir atrás dele, sacudindo a areia da toalha.
E o anel de madeira cai.
Fica ali, um pouco mais escuro do que a areia, como uma gota de chuva num passeio seco. Um lembrete. Addie inclina-se diante dele e enterra-o sob uma mão-cheia de areia, antes de ir a correr atrás de Henry.
Dirigem-se à fiada de bares que dão para a praia, pedem tacos e um jarro de margaritas geladas, saboreando o seu sabor pungente e o arrepio doce e salgado. Henry limpa a água dos óculos, e Addie olha para o oceano e sente o passado envolver o presente, como as marés.
Déjà vu. Déjà su. Déjà vecu.
— O que foi? — pergunta Henry.
Addie olha para ele.
— Hum?
— Estás com aquele ar — diz ele —, o ar de quando te estás a lembrar de alguma coisa.
Addie volta a olhar para o Atlântico, para o debrum infinito da praia, as memórias a desenrolarem-se sobre o horizonte. E, enquanto comem, fala-lhe de todos os litorais que viu, da vez em que passou o canal da Mancha de barco, com as falésias brancas de Dover a erguerem-se no nevoeiro. Da vez em que navegou pela costa de Espanha, uma passageira clandestina nas entranhas de um barco roubado, e, depois, quando fez a travessia para a América, de toda a tripulação do barco ter adoecido e de também se ter fingido enferma para não pensarem que era uma bruxa.
E, quando se cansa de falar e ambos chegam ao fim das bebi- das, passam as próximas horas a saltar entre a sombra das bancas e o beijo fresco da rebentação, demorando-se na areia apenas o suficiente para secar.
O dia passa demasiado depressa, como acontece com os dias bons.
E, quando chega a hora da partida, dirigem-se à estação e enterram-se no banco, ébrios de sol e de sono, enquanto o comboio parte.
Henry tira um livro, mas os olhos de Addie ardem, e encosta-se a ele, saboreando o seu aroma e sol e a papel, e o assento é de plástico e o ar está saturado, e ela nunca se sentiu tão confortável. Sente-se afundar em Henry, com a cabeça a baloiçar no seu ombro.
E então ele sussurra-lhe duas palavras contra o cabelo.
— Amo-te — diz, e Addie pergunta-se se será amor, aquele sentimento delicado.
Se deverá ser assim tão suave, tão delicado.
A diferença entre fogo e calor.
Paixão e contentamento.
— Também te amo — diz.
Deseja que seja verdade.