Chicago, Illinois
29 de julho de 1928
Há um anjo por cima do bar.
Um painel de vidro pintado, iluminado por trás, com uma única figura, o cálice erguido e a mão estendida, como que a chamar à oração.
Mas não se trata de uma igreja.
Os bares clandestinos ultimamente são como ervas daninhas, florescendo entre as pedras da Lei Seca. Este não tem nome, à exceção do anjo com o seu cálice, da indicação XII na porta doze, meio-dia e meia-noite, as cortinas de veludo e as cadeiras reclinadas como pessoas adormecidas, pelo chão de madeira, com máscaras a serem oferecidas aos clientes, à porta.
É, como a maior parte, apenas um boato, um segredo passado de boca alcoolizada em boca alcoolizada.
E Addie adora-o.
Há um ardor selvagem neste sítio.
Dança — por vezes sozinha e por vezes na companhia de estranhos. Perde-se no jazz que retumba contra as paredes, que ressoa, enchendo de música o espaço apinhado. Dança, até as plumas da máscara se lhe colarem ao rosto, e Addie fica ofegante e corada e só então para, deixando-se cair numa cadeira de couro.
É quase meia-noite, e os seus dedos movem-se como os ponteiros de um relógio pela sua garganta, onde o anel está pendurado de um fio de prata, o anel de madeira quente contra a sua pele.
Está sempre ao seu alcance.
Uma vez, quando o fio se partiu, pensou que o perdera, para depois o descobrir em segurança, dentro do bolso da blusa. Outra vez, deixou-o em cima do parapeito de uma janela e encontrou-o, horas mais tarde, de novo ao pescoço.
A única coisa que não perde.
Brinca com ele, um hábito ocioso, agora, como enrolar uma madeixa de cabelo à volta de um dedo. Aflora a extremidade do anel com a unha, fá-lo rodar, tendo o cuidado de nunca o deixar deslizar para lá do nó do dedo.
Procurou-o centenas de vezes: quando se sentia só, quando estava entediada, quando via algo belo e pensava nele. Mas é demasiado teimosa, e ele é demasiado orgulhoso, e ela está decidida a ganhar esta batalha.
Durante catorze anos resistiu ao impulso de o pôr.
E durante catorze anos ele não apareceu.
Por isso tinha razão — é um jogo. Outra espécie de cedência, uma versão mais suave de rendição.
Catorze anos.
E sente-se só, e um pouco ébria, e pergunta-se se será esta noite que cede. Seria uma queda, mas a altura não é assim tão grande. Talvez... talvez... Tem de ocupar as mãos, por isso decide ir buscar outra bebida.
Vai até ao bar e pede um gim tónico, mas homem da máscara branca deixa-lhe antes um copo de champanhe à frente. Uma única pétala de rosa cristalizada flutua entre as bolhinhas, e, quando pergunta, o empregado do bar acena para uma sombra num canto forrado a veludo. A sua máscara pretende dar a ideia de ramos, com as folhas a formarem uma moldura perfeita para uns olhos perfeitos.
E Addie sorri ao vê-lo.
Estaria a mentir a si mesma se dissesse que foi apenas de alívio. Um peso retirado de cima. Uma respiração libertada.
— Ganhei — diz ela, sentando-se no banco ao seu lado.
E, embora ele tenha vergado primeiro, tem os olhos brilhantes de triunfo.
— Em que medida?
— Não te chamei, mas mesmo assim vieste.
O queixo dele levanta-se, a imagem do desprezo.
— Presumes que estou aqui por tua causa.
— Já me esquecia — diz ela, entrando na sua cadência suave e baixa. — Há por aqui tantos seres humanos doidos para negociar a alma.
Um sorriso irónico repuxa os lábios perfeitos de Luc.
— Garanto-te, Adeline, poucos são tão doidos como tu.
— Poucos? — brinca ela. — Tenho de me esforçar mais.
Ele ergue o copo e inclina-o na direção do bar.
— Os factos falam por si: foste tu que me procuraste. Este lugar é meu.
Addie olha em volta e, subitamente, torna-se óbvio.
Vê as marcas por todo o lado.
Apercebe-se, pela primeira vez, de que o anjo por cima do bar não tem asas. De que os caracóis que lhe emolduram o rosto são negros. De que o anel que confundiu com uma auréola também poderia ser o luar.
E pergunta-se o que a atraiu ali em primeiro lugar.
Pergunta-se se serão como ímanes, ela e Luc.
Se andaram tanto tempo um à volta do outro que agora partilham uma órbita.
Tornar-se-á um hobby dele, aquele tipo de bares. Instalá-los-á em dezenas de cidades, cuidará deles como jardins e deixá-los-á crescer livremente.
Tão abundantes como igrejas, dirá, com o dobro da popularidade.
E muito depois dos tempos da Lei Seca, continuarão a florescer, agradando a todos os gostos, e ela perguntar-se-á se é a sua energia que o atiça ou se serão terreno fértil para almas. Um lugar para frequentar e observar e prometer. E, num certo sentido, um lugar para rezar, embora num tipo diferente de adoração.
— Por isso, estás a ver — diz Luc —, talvez tenha sido eu quem ganhou.
Addie abana a cabeça.
— Foi apenas sorte — diz ela. — Eu não te chamei.
Ele sorri, com o olhar a dirigir-se para o anel contra a pele dela.
— Conheço o teu coração. Senti-o vacilar.
— Mas eu não vacilei.
— Não — diz ele, a palavra como uma mera respiração. — Mas cansei-me de esperar.
— Então tu tiveste saudades minhas — diz ela com um sorriso, e há um lampejo muito breve naqueles olhos verdes. Uma fração de luz.
— A vida é longa, e os seres humanos são aborrecidos. A tua companhia é melhor.
— Esqueces-te de que sou humana.
— Adeline — diz ele, com uma sombra de piedade na voz. — Não és humana desde a noite em que nos conhecemos. Nunca mais serás humana.
O calor percorre-a ao ouvir aquelas palavras. Já não um calor agradável, mas raiva.
— Ainda sou humana — diz ela, com a voz a apertar-se em torno das palavras como se estas fossem o seu nome.
— Andas por entre eles como um fantasma — diz Luc, com a testa a inclinar-se contra a dela — porque não és um deles. Não podes viver como eles. Não podes amar como eles. Não podes pertencer-lhes.
A sua boca paira sobre a dela, a voz a reduzir-se ao ponto de não passar de uma brisa.
— Pertences-me a mim.
Ouve-se um som semelhante a um trovão no fundo da sua garganta.
— És minha.
E, quando ela olha para cima, para os seus olhos, vê um novo tom de verde e sabe exatamente o que é. A cor de um homem desequilibrado. O peito dele sobe e desce como se fosse humano.
No lugar onde se pode introduzir uma faca.
— Preferia ser um fantasma.
E, pela primeira vez, a escuridão bruxuleia. Recua como sombras diante da luz. Os seus olhos empalidecem de raiva, e ali está o deus que conhece, o monstro que aprendeu a enfrentar.
— Como queiras — murmura Luc, e Addie espera que ele se esvaia no escuro, prepara-se para o vazio súbito e ilimitado, espera ser engolida e cuspida do outro lado do mundo.
Mas Luc não desaparece, e ela também não.
Acena com a cabeça para o bar.
— Vai lá, então — diz —, volta para eles.
E ela preferia que a tivesse expulsado. Em vez disso, levanta-se, apesar de ter perdido a vontade de beber, de dançar, de qualquer tipo de companhia.
É como sair da luz do sol, com a divisão húmida a arrefecer-lhe a pele, enquanto se senta ali, no banco forrado a veludo, e revê os movimentos da noite e pela primeira vez sente a distância entre os seres humanos e ela própria e receia que ele tenha razão.
Acabará por ser ela a ter de partir.
E, no dia seguinte, o bar clandestino é fechado, e Luc desaparece. E, de um momento para o outro, desenham-se novas linhas, as peças são posicionadas, a batalha começa.
Não o voltará a ver até à guerra.