Greenacres, 2011
Ocorreu a Laurel, quando se sentou à mesa para jantar feijões assados com torradas, que era muito provavelmente a primeira vez que se encontrava sozinha em Greenacres. Nem a mãe nem o pai entregues aos seus afazeres noutra divisão, nem irmãs excitáveis a fazer ranger os soalhos por cima da sua cabeça, nem irmão bebé, nem animais de estimação. Nem sequer uma galinha empoleirada lá fora na capoeira. Laurel morava sozinha em Londres, e assim fora durante boa parte dos últimos quarenta anos; para ser franca, apreciava bastante a sua própria companhia. Esta noite, porém, rodeada de imagens e sons da sua infância, a solidão afectava-a com uma profundidade que não deixava de a surpreender.
— Tens a certeza de que ficas bem? — perguntara-lhe Rose nessa tarde antes de se ir embora. Deixara-se ficar à entrada do quarto, a torcer a ponta do seu longo colar de contas africanas e com a cabeça inclinada em direcção da cozinha. — Porque, se quiseres, sabes que posso ficar aqui contigo. Não achas que seria melhor eu ficar cá? Basta-me telefonar à Sadie e dizer-lhe que não chego a tempo de estar com ela.
Era um acontecimento inaudito, Rose a afligir-se com Laurel, e Laurel fora apanhada de surpresa.
— Que disparate! — retorquira ela, talvez num tom demasiado áspero. — Não vais fazer nada disso.
Rose não se deixou convencer.
— Não sei, Lol, é que... não é nada o teu género telefonares assim, sem mais nem menos. Em geral, andas sempre tão ocupada, e agora... — As contas ameaçavam soltar-se do fio. — Já sei o que vamos fazer: e se eu ligasse à Sadie e lhe dissesse que amanhã logo falava com ela? Não é maçada nenhuma.
— Rose, por favor... — Laurel representou na perfeição o papel da irmã exasperada — ... pelo amor de Deus, vai lá ter com a tua filha. Já te disse que só vim para aqui a fim de gozar uns dias de descanso antes de começar as filmagens de Macbeth. Para ser sincera, estou ansiosa por ter paz e sossego.
E era verdade. Laurel estava grata a Rose por esta se ter prontificado a levar-lhe as chaves, mas tinha a cabeça às voltas com a lista de coisas que sabia e as que ainda lhe faltava descobrir acerca do passado da mãe e estava ansiosa por ficar sozinha e pôr os pensamentos em ordem. Ao ver o automóvel de Rose desaparecer ao fundo do caminho de acesso a casa, sentira-se inundar por uma enorme expectativa. Parecia-lhe assinalar o início de algo. Finalmente, estava ali; conseguira, deixara a vida londrina organizada de modo a poder chegar ao âmago do grande segredo da família.
Agora, porém, sozinha na sala de estar vazia com um prato de jantar vazio por companhia e uma longa noite que se estendia à sua frente, Laurel sentiu a determinação a esmorecer. Arrependeu-se de não ter pensado melhor na proposta de Rose; a conversa amável da irmã era o ideal para impedir que o seu espírito vagueasse para recantos obscuros, e a sua ajuda viria agora a calhar. O problema eram os fantasmas, pois era óbvio que ela estava tudo menos sozinha, eles andavam por todo o lado: escondidos atrás dos cantos, a deambular escada acima, escada abaixo, a ecoar contra os azulejos da casa de banho. Meninas descalças e de bibe em diferentes etapas magricelas de crescimento; a figura alta e esbelta do pai a assobiar nas sombras; mas, acima de tudo, a mãe, que estava em todo o lado em simultâneo, que era aquela casa, Greenacres, cuja paixão e energia infundiam cada tábua de madeira, cada vidraça, cada pedra.
Achava-se agora a um canto da sala: Laurel via-a de onde estava, a embrulhar um presente de aniversário para Iris. Era um livro sobre a história da Antiguidade, uma enciclopédia infantil, e Laurel ainda se recordava de, na altura, se ter deixado entusiasmar pelas lindas ilustrações que revestiam as suas páginas, ilustrações a preto e branco de locais de tempos idos das quais se desprendia um certo mistério. O livro, enquanto objecto, afigurara-se nitidamente importante a Laurel, e lembrava-se da inveja que sentira ao ver Iris desembrulhá-lo na cama dos pais, na manhã seguinte, quando a irmã começara a folheá-lo com um cuidado de proprietária e a ajeitar a fita que servia de marcador. Havia qualquer coisa num livro que inspirava dedicação e um desejo crescente de posse, sobretudo em Laurel, que na altura não tinha muitos.
Não eram uma família particularmente dedicada à leitura (as pessoas mostravam-se sempre surpreendidas ao ouvir isto), mas nunca lhes tinham faltado histórias. O pai possuía um vasto repertório de episódios para contar à mesa de jantar e Dorothy Nicolson era o género de mãe mais capaz de narrar contos de fadas da sua própria lavra do que aqueles que vinham nos livros.
— Alguma vez te falei — disse ela certa vez quando Laurel era pequena e se mostrava relutante em adormecer — do Estrela Rouxinol?
Laurel abanara avidamente a cabeça. Gostava das histórias da mãe.
— Não falei? Bom, então, o caso está explicado. Eu já estava admirada de nunca te ter visto por lá.
— Onde, mãezinha? O que é o estrela rouxinol?
— Bom, é o caminho para casa, claro, minha avezinha. E é o caminho para lá, também.
Laurel ficara confusa.
— O caminho para onde?
— Para todo o lado... todo o lado... — Nesse momento, a mãe sorriu, um sorriso que deixava sempre Laurel contente por estar junto dela, e chegou-se mais à filha, como se lhe quisesse contar um segredo, o cabelo escuro a cair-lhe para a frente, por cima de um ombro. Laurel adorava que lhe contassem segredos; e, como também tinha muito jeito para os guardar, ouviu atentamente a explicação da mãe: — O Estrela Rouxinol é um grande navio que todas as noites parte do cais do sono. Já alguma vez viste uma fotografia de um barco-pirata, com velas brancas enfunadas e escadas de corda sacudidas com violência pelas rajadas de vento?
Laurel assentiu esperançosamente com a cabeça.
— Então, quando o vires, irás reconhecê-lo, pois é tal e qual assim. O mastro mais aprumado que tu possas imaginar, e uma bandeira lá no alto, de tecido prateado com uma estrela branca e duas asas no meio.
— E como é que eu faço para subir a bordo, mãe? Vou ter de nadar? — Laurel não era grande nadadora.
Dorothy riu-se.
— Essa é a melhor parte de todas. A única coisa que vais ter de fazer é formular esse desejo, e esta noite, quanto adormeceres, vais dar por ti no convés ameno, pronta para zarpar rumo a uma grande aventura.
— E a mãezinha também lá vai estar?
Dorothy tinha uma expressão distante no rosto, uma expressão misteriosa que às vezes afivelava, como se se lembrasse de qualquer coisa que lhe causasse uma certa tristeza. Todavia, não tardou a sorrir e a despentear o cabelo de Laurel.
— Claro que sim, minha querida. Julgavas que eu te deixava ir sozinha, porventura?
*
Um comboio tardio que vinha a entrar na estação apitou ao longe e Laurel soltou um suspiro. Parecia ecoar entre as paredes, e ela considerou acender o televisor, só para ter alguma espécie de ruído. Todavia, uma vez que a mãe se recusara terminantemente a mudar para um aparelho com controlo remoto, sintonizou a velha telefonia na BBC Radio 3 e pegou no seu livro.
Era o segundo romance de Henry Jenkins que lia, A Musa Relutante, e, verdade fosse dita, Laurel estava com uma certa dificuldade para o ler. De facto, começava a achar que o indivíduo tinha tendências machistas. Pelo menos, a personagem principal, Humphrey (tão irresistível quanto o protagonista masculino do seu outro livro), tinha algumas ideias questionáveis a respeito das mulheres. Adoração era uma coisa, mas ele parecia considerar a esposa, Viola, como um bem precioso, não tanto uma mulher de carne e osso, mas mais um espírito jovial que ele capturara e, por conseguinte, resgatara. Viola era um «elemento do mundo selvagem» trazido para Londres a fim de ser civilizado — por Humphrey, naturalmente — mas que a cidade nunca deveria ser autorizada a «corromper». Laurel revirou os olhos de impaciência. Dera por ela a desejar que Viola agarrasse as suas lindas saias e desatasse a fugir a sete pés para de onde tinha vindo.
Não fugiu, obviamente; aceitou casar-se com o seu herói — afinal de contas, tratava-se da história de Humphrey. Laurel, a princípio, simpatizara com a rapariga, parecera-lhe uma heroína enérgica e valorosa, imprevisível e fresca, mas, quanto mais lia, menos sinal dessa rapariga via. Laurel apercebeu-se de que estava a ser injusta: a pobre Viola pouco mais do que uma criança era e, por conseguinte, não se lhe podia levar a mal o discernimento questionável. E, sinceramente, o que percebia Laurel do assunto? Nunca fora capaz de manter uma relação por mais de dois anos. Não obstante, o casamento de Viola com Humphrey não correspondia à ideia de Laurel de um belo romance. Perseverou durante mais dois capítulos, que levaram o casal para Londres e consolidaram a criação da gaiola dourada de Viola, até que não aguentou mais e fechou o livro abruptamente, tal era a sua frustração.
Ainda agora tinham dado as nove, mas Laurel decidiu que era uma boa altura para se ir deitar. Ao fim de um dia de viagem, estava cansada e queria levantar-se cedo na manhã seguinte para conseguir chegar ao hospital a horas e, com sorte, encontrar a mãe com boa disposição. O marido de Rose, Phil, emprestara-lhe um automóvel que tinha de reserva na sua garagem — um Mini dos anos 60, mais verde do que um gafanhoto — e, logo que estivesse despachada, pôr-se-ia a caminho da cidade. Com A Musa Relutante enfiada debaixo do braço, lavou o prato e foi deitar-se, deixando o rés-do-chão sombrio de Greenacres entregue aos fantasmas.
*
— Está cheia de sorte — disse a enfermeira azeda a Laurel à sua chegada ao hospital na manhã seguinte, esmerando-se por lhe dar um tom de circunstância lamentável. — Está a pé e toda bem-disposta. A festa da semana passada deixou-a esgotada, mas as visitas da família parecem fazer-lhe um bem imenso. Só lhe peço que não a excite demasiado. — E, com isto, exibiu um sorriso marcado por um considerável défice de afectuosidade e tornou a concentrar a sua atenção na prancheta de plástico onde estava a escrever.
Laurel abandonou os planos que trazia para uma estimulante sessão de dança irlandesa e encaminhou-se pelo corredor bege fora. Chegou ao quarto da mãe e bateu com delicadeza. Ao ver que não obtinha resposta, abriu a porta devagar. Dorothy estava recostada na poltrona, o corpo inclinado para o lado contrário à porta, e a primeira coisa que ocorreu a Laurel foi que a mãe estava a dormir. Só quando se aproximou sorrateiramente percebeu que a mãe estava acordada, muito atenta a qualquer coisa que tinha nas mãos.
— Ora viva, mãe — cumprimentou-a Laurel.
A velha senhora assustou-se e voltou a cabeça. Parecia ter a vista enevoada, mas sorriu ao dar pela chegada da filha.
— Laurel — disse ela baixinho. — Julguei que estavas em Londres.
— E estava, mas resolvi passar por cá.
A mãe não lhe perguntou o motivo e Laurel interrogou-se se uma pessoa chegaria a uma idade em que tanta coisa lhe era escondida, tantos pormenores da vida eram discutidos longe da sua presença, eram mal interpretados ou mal entendidos, que as surpresas já não a desconcertavam. Interrogou-se se também ela haveria um dia de descobrir que a clareza absoluta não era nem possível nem tão-pouco desejável. Que perspectiva tão aterradora. Afastou o tabuleiro de rodas para um canto e sentou-se na cadeira sobresselente de vinil.
— O que é isso que aí tem? — Acenou com a cabeça para o objecto no colo da mãe. — É uma fotografia?
A mão de Dorothy tremeu quando lhe estendeu a pequena moldura de prata que embalava. Era antiga e estava danificada, mas tinha sido recentemente recuperada. Laurel não se lembrava de a ter visto antes.
— Do Gerry — disse a mãe. — Um presente do meu aniversário.
Era a prenda ideal para Dorothy Nicolson, a santa padroeira das coisas boas para deitar fora, e era típico de Gerry. No preciso momento em que parecia completamente desligada do mundo e de tudo o que nele habitava, vinha com um rasgo espantoso de visão. Laurel sentiu uma pontada de angústia quando se lembrou do irmão: deixara-lhe uma mensagem no voice mail da universidade; três mensagens, na verdade, desde que decidira sair de Londres. A última gravada a altas horas da noite depois de meia garrafa de vinho tinto, e que ela receava tivesse sido bastante mais explícita do que as anteriores. Laurel comunicara-lhe que se encontrava em Greenacres, decidida a descobrir o que fora que acontecera «quando éramos miúdos», que as outras irmãs ainda não estavam a par dos pormenores e que ela precisava da ajuda dele. Na altura, afigurara-se-lhe uma boa ideia, mas ainda não tivera notícias de Gerry.
Laurel pôs os óculos de ver ao perto para poder observar a fotografia a sépia com mais atenção.
— Um casamento — disse ela, abarcando o grupo de estranhos em pose e traje a rigor atrás do vidro sarapintado. — Mas não é ninguém nosso conhecido, pois não?
A mãe não lhe respondeu, pelo menos não como esperava.
— Uma coisa deveras preciosa — comentou ela, abanando a cabeça com lenta tristeza. — Uma loja de beneficência... Foi lá que ele a encontrou. Essas pessoas... deviam estar penduradas na parede de alguém, não numa caixa de coisas que ninguém quer. É terrível, não é, Laurel, a facilidade com que as pessoas são deitadas fora?
Laurel concordou que sim.
— A fotografia é muito bonita, não é? — disse ela, fazendo deslizar o polegar pelo vidro. — Dos tempos da guerra, pelo aspecto das roupas, embora ele não esteja fardado.
— Nem toda a gente andava.
— Quer dizer, aqueles que se esquivavam à guerra.
— Havia outros motivos. — Dorothy tirou-lhe a fotografia da mão. Examinou-a uma vez mais e, em seguida, estendeu uma mão trémula para a colocar ao lado da fotografia emoldurada do seu casamento austero.
Ao ouvir mencionar a guerra, Laurel vira a oportunidade apresentar-se diante dela, a vertigem da expectativa. Não haveria seguramente melhor momento para abordar o assunto do passado da mãe.
— O que é que fazia no tempo da guerra, mãe? — indagou ela com indiferença estudada.
— Colaborava com o Serviço Voluntário Feminino.
Assim, sem mais nem menos. Nem hesitação, nem relutância, nada que sugerisse que era a primeira vez que mãe e filha afloravam o tópico. Laurel fez o possível por não perder o fio à meada da conversa. — Está a referir-se a tricotar meias e a dar de comer aos soldados?
A mãe assentiu com a cabeça.
— Tínhamos uma cantina numa cripta da zona. Servíamos sopa... Às vezes, dirigíamos uma cantina móvel.
— O quê... Na rua, a esquivarem-se às bombas?
Outro leve aceno de cabeça.
— Mãe... — Laurel estava sem palavras. A resposta em si, o mero facto de ter obtido uma resposta. — A mãe era corajosa.
— Não — retorquiu Dorothy com inesperada brusquidão. Os lábios tremeram-lhe. — Havia pessoas de longe mais corajosas do que eu.
— A mãe nunca nos falou disso.
— Não.
«E porque não?», sentiu Laurel vontade de lhe suplicar. «Explique-me.» Para quê tanto segredo? Henry Jenkins e Vivien, a infância da mãe em Coventry, os anos da guerra antes de conhecer o pai... O que fora que acontecera para levar a mãe a agarrar a sua segunda oportunidade com tanta determinação, para a transformar numa pessoa capaz de matar o homem que ameaçava trazer-lhe o passado de volta para a assombrar. Ao invés, Laurel disse:
— Quem me dera tê-la conhecido naquela altura.
Dorothy esboçou um sorriso ténue.
— Teria sido difícil.
— A mãe percebe o que eu quero dizer.
A mãe ajeitou-se na cadeira, uma expressão incomodada a repuxar-lhe as rugas da testa vincada.
— Não me parece que tivesses gostado muito de mim.
— Então, mas porquê? Porque não?
A boca de Dorothy contraiu-se num esgar, como se aquilo que quisesse dizer se recusasse a sair.
— Porque não, mãe?
Dorothy forçou um sorriso, mas uma sombra na sua voz e nos seus olhos desmentiu-o.
— As pessoas mudam com a idade... tornam-se mais sensatas, tomam decisões mais acertadas... Eu sou muito velha, Laurel. Qualquer pessoa que tenha vivido tantos anos como eu vivi não pode deixar de coleccionar remorsos pelo caminho... coisas que fizeram no passado... coisas que gostariam de ter feito de outra maneira.
O passado, os remorsos, as pessoas que mudavam... Laurel sentiu a emoção de ter enfim chegado ao seu objectivo. Esforçou-se por aparentar ligeireza, qual filha carinhosa que revela curiosidade pelo passado da mãe.
— Que espécie de coisas, mãe? O que gostaria de ter feito de outra maneira?
Mas Dorothy não lhe prestava atenção. O seu olhar parecia perdido na distância; os dedos estavam entretidos com os cantos da manta que tinha no colo.
— O meu pai costumava dizer-me que, se eu não tivesse cuidado, acabaria por me meter em sarilhos...
— Todos os pais dizem coisas desse tipo — retorquiu Laurel com prudência delicada. — Estou certa de que a mãe nunca fez nada pior do que qualquer um de nós.
— Ele bem me tentou prevenir, mas eu nunca lhe dei ouvidos. Estava convencida de que era a dona da razão. Fui castigada pelas minhas más decisões, Laurel... Perdi tudo... tudo o que amava.
— Como? O que foi que aconteceu?
Todavia, este discurso, quaisquer que fossem as recordações que trouxera atrás de si, cansara Dorothy, e esta perdera o ímpeto e deixara-se afundar nas almofadas. Os seus lábios movimentaram-se ligeiramente, mas não emitiram qualquer som e, passado um instante, ela deu-se por vencida e virou a cabeça para a janela nevoeirenta.
Laurel observou a mãe de perfil, desejando ter sido outro tipo de filha, desejando dispor de mais tempo, poder voltar atrás e começar tudo do princípio, não deixar nada para a última e dar por ela sentada na cama da mãe no hospital com tantas lacunas por preencher.
— Ah, bom — disse ela em tom animador, experimentando mudar de táctica —, a Rose mostrou-me algo verdadeiramente especial. — Foi buscar o álbum de família à respectiva prateleira e retirou do interior a fotografia da mãe ao lado de Vivien. Apesar do esforço por manter a compostura, reparou que os dedos lhe tremiam. — Estava dentro de um malão, creio eu, em Greenacres.
Dorothy pegou no retrato que a filha lhe estendia e olhou para ela.
Portas abriram-se e fecharam-se no corredor, uma campainha soou ao longe, automóveis pararam e tornaram a arrancar na pequena rotunda lá fora.
— Vocês eram amigas — encorajou-a Laurel.
A mãe assentiu com a cabeça, hesitante.
— Durante a guerra.
Novo aceno de cabeça.
— O nome dela era Vivien.
Desta feita, Dorothy olhou para a filha. A surpresa perpassou pelo seu rosto enrugado, seguida de algo mais. Laurel já se preparava para começar com explicações acerca do livro e a inscrição que este continha quando a mãe disse:
— Ela morreu — com uma voz tão sumida que Laurel mal a ouviu. — A Vivien morreu durante a guerra.
Laurel recordava-se de ter lido qualquer coisa a este respeito no obituário de Henry Jenkins.
— Durante um bombardeamento aéreo — acrescentou ela.
A mãe não deu sinal de a ter ouvido. Estava novamente concentrada na fotografia. Os seus olhos estavam vítreos, as faces, subitamente húmidas.
— Eu mal me reconheço — confessou ela com uma voz fina e remota.
— Foi há muito tempo.
— Noutra vida. — Dorothy puxou um lenço de assoar amarrotado de algures e levou-o ao rosto.
A mãe continuava a falar baixinho atrás do lenço, mas Laurel não conseguia perceber tudo o que ela dizia: qualquer coisa a respeito de bombas e barulho e de ter medo de começar uma nova vida. Chegou-se mais a ela, a sensação de que as respostas estavam ao seu alcance, formigando intensamente na sua pele.
Dorothy virou-se para Laurel e, a julgar pela sua expressão amedrontada, dir-se-ia que tinha acabado de ver um fantasma. Estendeu uma mão e agarrou na manga da filha; quando falou, a voz saiu-lhe entrecortada.
— Eu fiz uma coisa, Laurel — murmurou ela —, durante a guerra... Não estava em mim, tudo me tinha corrido mal... Eu não sabia que mais havia de fazer e parecia-me ser o plano perfeito, uma maneira de pôr as coisas novamente nos eixos, mas ele descobriu... zangou-se.
Laurel sentiu um sobressalto no coração. Ele.
— Foi por isso que o tal homem veio a nossa casa, mãe? Foi por isso que ele veio naquele dia, o dia de anos do Gerry? — O peito retesou-se-lhe. Tinha outra vez dezasseis anos.
Dorothy continuava agarrada à manga da filha, o rosto macilento e a voz reduzida a um fio.
— Ele descobriu onde eu morava, Laurel... Não descansou enquanto não me encontrou.
— Por causa do que a mãe fez durante a guerra?
— Sim. — Quase inaudível.
— E o que foi, mãe? O que foi que fez?
A porta abriu-se e a enfermeira Rachel entrou com um tabuleiro.
— Horas de almoço — declarou ela em tom abrupto, pondo a mesa com rodas a jeito. Encheu um copo com chá morno até meio e verificou se ainda havia água no jarro. — Quando acabar, é só tocar a campainha, querida — entoou ela com a sua voz demasiado sonora. — Nessa altura, eu volto e ajudo-a a ir à casa de banho. — Lançou uma olhadela à mesa para ver se estava tudo como devia ser. — Mais alguma coisa de que precise antes de eu me ir embora?
Dorothy estava atordoada, exausta, os seus olhos perscrutavam o rosto da enfermeira.
Este rasgou-se num sorriso animador, dobrando-se pela cintura de modo a poder chegar mais a ela.
— Precisa de mais alguma coisa, minha querida?
— Oh. — Dorothy pestanejou e esboçou um ténue sorriso perplexo que partiu o coração de Laurel. — Sim, sim, por favor. Eu preciso de falar com o Dr. Rufus...
— O Dr. Rufus? Está a quer dizer Dr. Cotter, querida...
Uma nuvem de confusão projectou-lhe uma breve sombra sobre o rosto pálido, posto o que ela respondeu:
— Sim... — com um sorriso ainda mais débil. — Claro, o Dr. Cotter.
A enfermeira assegurou-lhe de que pediria ao médico para a vir ver assim que tivesse oportunidade e, em seguida, virou-se para Laurel, apontando um dedo para a testa e dirigindo-lhe um Olhar Significativo. Laurel resistiu à tentação de estrangular a mulher com a alça da carteira enquanto esta fazia chiar os seus sapatos de solas de borracha pelo quarto fora.
A espera por que a enfermeira se fosse embora pareceu-lhe interminável: recolheu copos usados, tomou notas na ficha médica, interrompeu-se para tecer comentários demorados acerca da chuva intensa. Laurel já estava quase a arder de expectativa quando a porta finalmente se fechou atrás nas suas costas.
— Mãe? — incentivou-a ela, com mais brusquidão do que era seu desejo.
Dorothy Nicolson olhou para a filha. O seu rosto achava-se agradavelmente inexpressivo, e Laurel apercebeu-se subitamente de que o que quer que a tivesse afligido com tanta premência antes da interrupção entretanto se desvanecera. Retrocedera, de volta ao sítio onde se escondem os velhos segredos. A sua frustração era de cortar o fôlego. Poderia insistir, perguntar-lhe: «E o que foi que a mãe fez para aquele homem vir atrás de si? Foi alguma coisa que tivesse que ver com a Vivien? Conte-me, por favor, para eu poder arrumar este assunto de uma vez por todas», todavia, o rosto querido, o rosto cansado da velha senhora, estava agora fixo nela com uma expressão de ligeira perplexidade, um sorriso ténue e apreensivo a formar-se ao dizer:
— Sim, Laurel?
Armando-se de toda a paciência de que dispunha (havia sempre o dia de amanhã, poderia fazer nova tentativa), Laurel retribuiu-lhe o sorriso e perguntou-lhe:
— Quer que a ajude com o almoço, mãe?
*
Dorothy não estava com grande apetite; tinha definhado na última meia hora, e Laurel apercebeu-se uma vez mais do estado de fragilidade em que a mãe se encontrava. A poltrona verde era um traste velho que tinham trazido de casa, e Laurel perdera a conta às vezes que vira a mãe sentada nela ao longo das décadas. No entanto, sem saber bem como nem porquê, as proporções da poltrona haviam-se alterado nos últimos meses, e agora era um autêntico estorvo que devorava o corpo franzino da mãe como um urso rezingão.
— E se eu lhe escovasse o cabelo? — sugeriu-lhe Laurel. — Apetece-lhe?
O laivo de um sorriso aflorou aos lábios de Dorothy e ela acenou ligeiramente com a cabeça.
— A minha mãe costumava escovar-me o cabelo.
— A sério?
— Eu fingia que não gostava... queria ser independente... mas na verdade deliciava-me.
Laurel sorriu-lhe enquanto ia buscar à prateleira atrás da cama a escova que comprara num antiquário; pressionou-a com delicadeza contra a penugem de dente-de-leão da mãe e tentou imaginar como teria sido ela na infância. Desejosa de aventura, sem dúvida, malandra às vezes, mas com um género de vivacidade mais capaz de despertar o afecto das pessoas do que de as fazer zangar. Laurel calculou que nunca haveria de descobrir, a menos que fosse a própria mãe a revelar-lho.
As pálpebras de Dorothy, finas como papel, tinham-se fechado, e as finas nervuras tesas que as sulcavam tremiam ocasionalmente perante quaisquer misteriosas imagens que se estivessem a formar na escuridão subjacente. A respiração dela foi abrandando à medida que Laurel lhe escovava o cabelo e, quando adoptou o ritmo do sono, a filha pôs a escova de parte esforçando-se por não fazer barulho. Aconchegou a manta de croché um pouco mais ao colo da mãe e deu-lhe um beijo ao de leve na face.
— Adeus, mãe — sussurrou-lhe. — Amanhã, eu volto.
Estava prestes a sair do quarto, pé ante pé, com cuidado para não agitar a carteira ou fazer barulho com as solas dos sapatos, quando ouviu uma voz sonolenta dizer:
— Aquele rapaz.
Laurel virou-se de repente, apanhada de surpresa. A mãe continuava de olhos fechados.
— Aquele rapaz — tartamudeou ela.
— Que rapaz?
— Aquele com quem tu andas... o Billy. — Os seus olhos enevoados abriram-se e ela virou a cabeça para Laurel. Levantou um dedo trémulo e, ao falar, a sua voz era suave, triste. — Tu achas que eu não dei por isso? Achas que eu em tempos também não fui jovem? Que eu não sei o que é uma rapariga apaixonar-se por um rapaz bonito?
Laurel apercebeu-se de que a mãe já não estava no quarto do hospital; que se achava de regresso a Greenacres, a falar com a filha adolescente. Sentiu um súbito desalento.
— Estás a ouvir o que te digo, Laurel?
Engoliu em seco, a tentar recuperar a voz.
— Estou a ouvi-la, mãezinha. — Havia muito tempo que não tratava a mãe assim.
— Se ele te pedir em casamento e tu sentires amor por ele, então deves aceitar... Entendes o que te digo?
Laurel assentiu com a cabeça. Sentia-se estranha, estonteada e cheia de calor. As enfermeiras já a tinham avisado de que ultimamente a mãe andava com tendência para divagar, entrando e saindo do presente como o sintonizador de um rádio que falha a estação. Mas o que fora que a trouxera ali? Porque haveria a sua atenção de se dirigir para um rapaz que mal conhecera, uma paixoneta passageira de Laurel de há tanto tempo?
Os lábios de Dorothy movimentaram-se um contra o outro com suavidade e, em seguida, ela disse:
— Eu fiz tantos disparates... tantos disparates. — As suas faces estavam húmidas das lágrimas. — Amor, Laurel, é a única razão por que uma pessoa se deve casar. Por amor.
*
Laurel ainda conseguiu chegar aos lavabos do corredor do hospital. Abriu a torneira, uniu as mãos em concha e encheu-as de água para humedecer a cara; em seguida, apoiou as palmas no lavatório. Reparou em finas rachas em volta do ralo que, à medida que a sua visão se toldava, confluíam umas nas outras. Laurel fechou os olhos. Sentia a pulsação a martelar-lhe os ouvidos. Santo Deus, tremia por todos os lados.
Não se tratava apenas de a mãe ter falado com ela como se fosse uma adolescente, de ter obliterado instantaneamente cinquenta anos, de ter ido buscar um rapaz a um passado tão distante, a sensação longínqua do primeiro amor a esvoaçar ao redor. Eram as próprias palavras, a urgência na voz da mãe, a sinceridade que sugeria que ela estava a oferecer à filha adolescente a sabedoria resultante da sua própria experiência. Que estava a pressionar Laurel para fazer escolhas que ela, Dorothy, não fizera... para evitar que cometesse os mesmos erros que ela.
Mas não fazia sentido. A mãe amara o pai; Laurel estava tão certa disto como do próprio nome. Haviam sido casados durante cinquenta e cinco anos, até à morte do pai, sem o mais leve indício de discórdia conjugal. Se Dorothy se tivesse casado por outro motivo, se tivesse passado tantos anos arrependida da sua decisão, saíra-se lindamente a fingir o contrário. Não haveria seguramente ninguém capaz de representar tão bem. Era óbvio que não. Para além disso, Laurel ouvira vezes sem conta a história de como os pais se haviam conhecido e apaixonado um pelo outro; vira o ar embevecido da mãe a olhar para o pai enquanto este contava como ele soubera instantaneamente que os dois estavam destinados a ser marido e mulher.
Laurel ergueu o olhar. Não obstante, a avó Nicolson tivera lá as suas dúvidas, não fora? Laurel sempre se apercebera da existência de um certo mal-estar entre a mãe e a avó; uma formalidade na maneira como falavam uma com a outra, a rigidez dos lábios da mulher mais velha quando olhava para a nora e julgava que ninguém a estava a ver. E depois houvera aquela ocasião, Laurel teria os seus quinze anos e estavam de visita à pousada da avó Nicolson à beira-mar, em que ela entreouvira uma conversa que não era destinada aos seus ouvidos. Certa manhã, estivera demasiado tempo ao sol e voltara para casa com uma dor de cabeça terrível e um forte escaldão nos ombros. Estava deitada no quarto às escuras, com uma flanela molhada na testa e uma grande aflição no peito, quando a avó Nicolson e uma hóspede já de idade, a Menina Perry, calharam de passar no corredor.
— O mérito pelo filho que tem é todo seu, Gertrude — estava a Menina Perry a dizer. — Claro que sempre foi um bom rapaz.
— É verdade, vale quanto pesa, o meu Stephen. Ajuda-me mais aqui do que o pai alguma vez ajudou. — A avó fez uma pausa, à espera do resmungo de concordância entendida proveniente da sua consorte, e em seguida prosseguiu: — E, para além do mais, tem um bom coração. Sempre foi incapaz de resistir a um animal vadio.
Foi neste momento que o interesse de Laurel despertou. As palavras vinham carregadas de ecos de outras conversas, e não havia dúvida de que a Menina Perry parecia saber precisamente ao que a avó se referia.
— Não — comentou ela. — O rapaz não teve qualquer hipótese, pois não? Bonita como é, o contrário é que seria de admirar.
— Bonita? Bom, admito que sim, para quem aprecia o género. Um pouco... — a avó fez nova pausa, e Laurel empertigou o pescoço para ouvir a palavra que ela iria escolher — ... um pouco madura de mais para o meu gosto.
— Ah, sim — a Menina Perry arrepiou caminho a toda a velocidade —, madura, sem dúvida. Soube reconhecer uma boa oportunidade quando a viu aparecer-lhe pela frente...
— Lá isso soube.
— Soube reconhecer uma boa alma.
— Nem mais.
— E pensar que ele se poderia ter casado com uma boa rapariga aqui das redondezas, como a Pauline Simmonds, que mora ao fundo da rua, por exemplo. Eu sempre achei que ela tinha um fraquinho por ele.
— Claro que tinha — ripostou a avó —, e quem lhe poderia levar a mal por isso? Mas nenhuma de nós contava que a Dorothy aparecesse, pois não? A pobre Pauline não teve a mínima hipótese, logo com uma da laia dela, e para mais estando com ela fisgada.
— Foi pena! — A Menina Perry trazia o seu papel bem ensaiado. — Uma pena, de facto!
— Enfeitiçou-o, foi o que ela fez. O meu querido filho já nem sabia de que terra era. Ele estava convencido de que ela era uma ingénua, claro, e quem lhe poderia levar a mal por isso?... Quando se casaram, tinha regressado de França há meia dúzia de meses. Ela deu-lhe a volta à cabeça... É mesmo daquele género de mulheres, não acha?, que, quando enfiam uma coisa na ideia, não descansam enquanto não conseguem os seus intentos.
— E ela queria-o.
— Ela queria alguém que a salvasse e apanhou o meu filho mesmo a jeito. Mal se casaram, afastou-o de tudo e todos que ele conhecia para começar uma nova vida numa quinta a cair aos bocados. E a culpada fui eu, claro!
— Não diga uma coisa dessas nem a brincar!
— Quem a trouxe cá para casa fui eu.
— Estávamos em guerra, era quase impossível arranjar criadagem que se aproveitasse... A Gertrude não poderia ter adivinhado!
— Mas a questão é precisamente essa. Eu deveria ter adivinhado; deveria ter feito por me informar sobre ela. Fui demasiado crédula. Pelo menos, a princípio. Só passado uns tempos é que fiz averiguações a respeito dela e, nessa altura, já era tarde de mais.
— Tarde de mais como? Tarde de mais para o quê? O que foi que descobriu?
Todavia, fosse o que fosse que a avó Nicolson tivesse descoberto, permanecera envolto em mistério para Laurel, pois antes de a avó ter oportunidade para se alongar, as duas afastaram-se do alcance dos seus ouvidos. Para ser franca, na altura, Laurel não se preocupara muito com isso. A avó Nicolson era puritana por natureza e gostava de chamar a atenção sobre si própria tornando a vida da neta um autêntico inferno: bastava ela olhar, de relance que fosse, para um rapaz na praia, para a avó ir logo fazer queixa aos pais. O que quer que a avó julgasse que tinha descoberto a respeito da mãe, concluiu Laurel, ainda deitada a maldizer a cabeça latejante, seria seguramente um exagero, se não mesmo pura ficção.
Agora, porém (Laurel secou a cara e as mãos), agora já não estava tão certa disso. As suspeitas da avó (que Dorothy andava à procura de alguém que a salvasse, que não era tão ingénua quanto aparentava, que o casamento apressado fora de conveniência) pareciam, sob alguns aspectos, coincidir com aquilo que a mãe acabara de lhe revelar.
Viria Dorothy Smitham fugida de um noivado desfeito quando fora dar à pousada da Sr.ª Nicolson? Teria sido isso que a avó descobrira? Era possível, mas não poderia ser apenas isso. Um relacionamento anterior talvez fosse suficiente para azedar os ânimos da avó — Deus sabia que não era preciso muito —, mas não seria certamente motivo para continuar a fazer a mãe chorar sessenta anos decorridos (de sentimento de culpa, parecia a Laurel: aquela conversa toda sobre disparates, de não saber tomar decisões acertadas), a menos que tivesse fugido do noivo sem o avisar? Mas, se estava tão apaixonada por ele, porque teria a mãe feito semelhante coisa? Porque não se casara ela com ele? E o que é que isso tinha que ver com Vivien e Henry Jenkins?
Havia qualquer coisa que escapava a Laurel — muitas coisas, provavelmente. Soltou um suspiro acalorado de exaspero que ecoou na pequena casa de banho de azulejo. Sentia-se completamente frustrada. Tantas pistas díspares que, por si só, não queriam dizer nada. Laurel arrancou uma folha de papel higiénico e limpou o rímel que lhe escorrera dos olhos. Aquele mistério fazia lembrar o início do jogo de unir os pontos de uma criança, ou uma constelação no céu nocturno. Em tempos, quando Laurel era pequena, o pai levara-as a observar o céu. Tinham montado um acampamento na colina sobranceira a Blindman’s Wood e, enquanto esperavam pelo cair da noite e o aparecimento das estrelas, o pai contara-lhes de uma ocasião em que se perdera em miúdo e se orientara pelas estrelas para conseguir encontrar o caminho de casa.
«Só têm de procurar as imagens», explicara-lhes o pai, enquanto instalava o telescópio no tripé. «Se alguma vez derem por vocês sozinhas no escuro, elas indicam-vos o caminho de volta.»
« Mas eu não vejo imagens nenhumas», protestara Laurel, esfregando as luvas uma na outra e semicerrando os olhos para as estrelas que cintilavam no céu.
O pai sorrira-lhe então com carinho. «Isso é porque tu estás a olhar para as estrelas em si», disse-lhe «e não para os espaços entre elas. Tens de desenhar linhas na tua imaginação; só depois poderás começar a ver a imagem completa.»
Laurel viu-se ao espelho do hospital. Pestanejou, e a recordação do seu querido pai desvaneceu-se. Uma pontada súbita de desgosto mortal instalou-se em seu lugar: tinha saudades dele, estava a envelhecer, a mãe definhava a olhos vistos.
Mas que estado lastimoso era o seu. Laurel pegou no pente e fez o melhor possível por arranjar o cabelo. Já era alguma coisa. Encontrar imagens nas constelações nunca fora o seu ponto forte. Gerry era, dos irmãos, o que despertava a admiração geral ao conseguir dar sentido ao céu nocturno; já em miúdo, era capaz de identificar os padrões e as imagens onde Laurel não via senão estrelas dispersas.
A lembrança do irmão veio atormentar Laurel. Deveriam estar juntos naquela demanda, ora bolas! Pertencia-lhes a ambos. Pegou no telemóvel e verificou as chamadas não atendidas.
Nada. Ainda nada.
Percorreu a lista telefónica até chegar ao número do emprego de Gerry e carregou na tecla de chamada. Aguardou, roendo a unha do polegar e lastimando (e não era a primeira vez) a recusa terminante do irmão para arranjar um telemóvel, à medida que um telefone numa secretária atafulhada de papéis tocava e se fartava de tocar ao longe, em Cambridge. Por fim, um estalido e de seguida: «Olá, ligou para Gerry Nicolson. Neste momento, ando à caça de estrelas. Se quiser, pode deixar os seus dados.»
Contudo, nenhuma promessa de que ele se serviria deles para retribuir a chamada, constatou Laurel com ironia. Não deixou ficar mensagem. Por enquanto, teria de continuar por sua conta e risco.