Capítulo 16

Londres, Janeiro de 1941

Os últimos quinze dias haviam sido um verdadeiro suplício e Dolly não podia deixar de culpar Jimmy por isso. Se ao menos ele não tivesse estragado tudo com aquela insistência toda. Ela ia toda feita para ter uma conversa com ele acerca de os dois manterem uma atitude mais discreta e Jimmy lembrara-se de a pedir em casamento, e, desde então uma brecha abrira-se dentro dela que se recusava a fechar. De um lado, encontrava-se Dolly Smitham, a jovem ingénua de Coventry que considerava que casar-se com o namorado e viverem felizes para sempre numa quinta à beira de um riacho era tudo quanto desejava da vida; do outro, achava-se Dorothy Smitham, amiga da glamorosa e abastada Vivien Jenkins, herdeira e acompanhante de Lady Gwendolyn Caldicott — uma mulher adulta que não precisava de inventar fantasias elaboradas quanto ao futuro porque sabia exactamente as aventuras fabulosas que a esperavam.

O que não queria dizer que Dolly não tivesse ficado transtornada por sair do restaurante daquela maneira, deixando os empregados embasbacados a olhar para ela; contudo, tivera a sensação premente de que, se continuasse ali, acabaria por dizer que sim, só para que Jimmy se levantasse do chão. E em que situação isso a teria deixado? Dividir um apartamento acanhado com Jimmy e o Sr. Metcalfe, com a preocupação constante de não saber de onde viria o próximo jarro de leite? Em que situação a deixaria com Lady Gwendolyn? A velha senhora mostrara-se de uma amabilidade extrema para com Dolly, ao ponto de esta acabar por a considerar quase como se fosse da família; como reagiria ela se se visse abandonada pela segunda vez? Não, Dolly tomara a decisão correcta. O Dr. Rufus concordara quando a vira lastimar-se por causa disso durante o almoço; era jovem, dissera ele, tinha a vida toda pela frente, não fazia sentido estar a comprometer-se tão cedo.

Kitty (obviamente) reparara que qualquer coisa de estranho se passava e reagira fazendo desfilar o seu novo namorado da RAF pela porta do número 7 a cada oportunidade que lhe surgia, exibindo a sua aliança pelintra de noivado e fazendo-lhe perguntas acintosas acerca do paradeiro de Jimmy. Em comparação, o serviço na cantina era quase um alívio. Ou, pelo menos, teria sido se Vivien alguma vez lá pusesse os pés para lhe levantar o ânimo. Mal tinham falado uma com a outra depois da noite em que Jimmy lá aparecera de surpresa. Vivien fora entregar uma caixa com roupa doada, e Dolly já se preparava para ir ter com ela para a cumprimentar quando a Sr.ª Waddingham a recambiara para a cozinha sob pena de morte. Bruxa. Quase mais valia inscrever-se no Labour Exchange só para se ver livre da mulher de uma vez para sempre. Não que tivesse grandes esperanças disso. Dolly recebera uma carta do Ministério do Trabalho, todavia, quando Lady Gwendolyn ficara a par do sucedido, apressara-se a tomar medidas para que os funcionários ao mais alto nível compreendessem que Dolly era indispensável no seu actual cargo e não podia de forma alguma ser dispensada para ir fabricar bombas.

Nesse momento, dois bombeiros com a cara toda suja de fuligem chegaram ao balcão e Dolly compôs um sorriso, pondo uma covinha em cada face à medida que enchia duas tigelas de sopa.

— Têm tido uma noite muito atarefada, rapazes? — perguntou-lhes.

— O diabo do gelo nas mangueiras — respondeu-lhe o mais baixo dos dois. — A menina devia ver como está aquilo lá fora. Estamos a apagar um incêndio numa casa e, logo de seguida, vemos pedaços de gelo pendurados precisamente na porta atingida pela água.

— Que horror! — exclamou Dolly, e os homens concordaram, arrastando-se em seguida pela sala e sentando-se pesadamente a uma mesa de cavalete, deixando-a uma vez mais entregue a si própria na cozinha.

Apoiou um cotovelo no balcão e pousou o queixo na mão. Não havia dúvida de que ultimamente Vivien andava muito ocupada com aquele médico dela. Dolly sentira uma certa desilusão quando Jimmy lhe contara (teria preferido saber do romance directamente por Vivien), mas compreendia a necessidade de segredo. Henry Jenkins não era o género de homem que apreciasse que a mulher andasse a ter aventuras ilícitas; bastava olhar para ele para perceber isso. Se alguém ouvisse a confidência da amiga, ou reparasse em algo suspeito e fosse contar ao marido, a amiga ver-se-ia metida num grande sarilho. Não admirava que ela tivesse insistido tanto com Jimmy para que não repetisse a ninguém o que lhe contara.

— Sr.ª Jenkins? Está a ouvir-me, Sr.ª Jenkins?

Dolly levantou rapidamente o olhar. Teria Vivien chegado quando ela estava distraída?

— Oh, Menina Smitham... — A voz perdeu alguma da jovialidade — ... É só a menina.

Maud Hoskins, impecável como sempre, estava ao balcão, um camafeu a apertar-lhe a blusa no pescoço, justa como o colarinho de um vigário. Não havia sinal de Vivien e Dolly sentiu o coração cair-lhe aos pés.

— Sou só eu, Sr.ª Hoskins.

— Sim — fungou a idosa com ar de desdém —, bem vejo que sim. — Olhou ao seu redor como uma galinha atarantada, fazendo um estalido com o bico e acrescentando: — Ora esta agora, calculo que não a tenha visto... a Sr.ª Jenkins, quero eu dizer?

— Deixe-me pensar. — Dolly bateu com a ponta de um dedo nos lábios repetida e pensativamente enquanto tornava a enfiar os pés nos sapatos atrás do balcão. — Não, não, creio que não.

— Mas que maçada. Sabe, tenho uma coisa para ela. Deve ter-se esquecido cá dela da última vez que cá esteve e eu guardei-a, à espera de me cruzar com ela. Mas há dias que não a vejo por cá.

— Ai sim? Não dei por nada.

— A semana toda. Espero que não tenha acontecido nada de cuidado.

Dolly ponderou contar à Sr.ª Hoskins que via Vivien todos os dias, sã como um pêro, da janela do quarto de Lady Gwendolyn, mas acabou por concluir que isso acarretaria mais perguntas do que respostas.

— Tenho a certeza de que está tudo bem.

— Oxalá tenha razão. Tão bem quanto se possa esperar em tempos tão exigentes como os que vivemos.

— É verdade.

— Só que é de facto uma maçada. Eu vou para a Cornualha, para casa da minha irmã, e espero poder devolver-lhe isto antes de me ir embora. — A Sr.ª Hopkins olhou à sua volta, hesitante. — Calculo que será melhor...

— Deixá-la comigo? Com certeza. — Dolly estampou o seu sorriso mais cativante na cara. — Não se preocupe que eu cá me encarregarei de que lhe chegue às mãos.

— Oh... — A Sr.ª Hoskins espreitou-a por detrás dos óculos aprumados. — Eu não tencionava... Não sei se será boa ideia deixá-la aqui.

— Sr.ª Hoskins, por favor. Eu tenho todo o gosto em poder ajudá-la. Estou certa de que em breve irei ver a Vivien.

A idosa fez uma inspiração curta e seca, reparando que Dolly se referia a Vivien pelo nome próprio.

— Bom — disse ela, um tom de admiração a insinuar-se-lhe na voz. — Se está assim tão certa...

— Estou.

— Obrigada, Menina Smitham. Obrigada, é muito gentil da sua parte. Assim, sei que posso ficar descansada. É uma peça bastante valiosa, julgo eu. — A Sr.ª Hoskins abriu a carteira e retirou um pequeno embrulho de papel de seda. Passou-o por cima do balcão para a mão estendida de Dolly. — Eu embrulhei-o para ficar mais protegido. Tenha cuidado com ele, por favor... Seria extremamente desagradável se fosse parar às mãos erradas, não lhe parece?

*

Dolly só desembrulhou o papel quando chegou a casa. Fora preciso um grande esforço de contenção da sua parte para não o rasgar mal a Sr.ª Hoskins virou costas, mas conseguiu. Guardou o embrulho dentro da carteira, e este lá ficou durante o resto do seu turno na cantina e o regresso apressado a Campden Grove.

Quando por fim fechou a porta do seu quarto, a curiosidade de Dolly era já uma dor física. Saltou para cima da cama, sem se descalçar sequer, e vasculhou a carteira à procura do embrulho de papel de seda. Ao abri-lo, caiu-lhe qualquer coisa no colo. Dolly pegou nela e revirou-a entre os dedos, um delicado medalhão oval pendurado num fino fio de ouro rosa. Um dos elos, reparou ela, estava ligeiramente aberto, permitindo que o respectivo parceiro se soltasse. Dolly inseriu o elo aberto no seguinte e depois, com a unha do polegar, fechou-o cuidadosamente.

Pronto — estava arranjado. E muito bem, ademais; alguém dificilmente daria com o sítio onde estivera a abertura. Dolly sorriu, satisfeita, enquanto dirigia a sua atenção para o medalhão. Era do género que se usava para guardar fotografias, constatou ela, esfregando com o polegar o delicado motivo em espiral gravado na sua bonita face. Quando finalmente conseguiu abri-lo, deparou com uma fotografia de quatro crianças, duas raparigas e dois rapazes, sentados numa escada de madeira e de olhos semicerrados ao sol radioso. A imagem fora cortada ao meio para encaixar na moldura díptica.

Dolly reconheceu Vivien de imediato, a mais pequena das raparigas. De pé com um braço apoiado no corrimão da escada, a outra mão pousada no ombro de um dos rapazes, um garoto pequeno de ar simples. Eram os irmãos dela, concluiu Dolly, em casa, na Austrália, e o retrato fora obviamente tirado algum tempo antes de Vivien ser mandada para Inglaterra. Antes de ela reencontrar o tio havia muito perdido e de ter sido criada até à idade adulta numa torre da grande propriedade da família, precisamente onde mais tarde haveria de conhecer e de se casar com o atraente Henry Jenkins. Dolly teve um arrepio de prazer. Era tal como nos contos de fadas; tal e qual como no livro de Henry Jenkins, na verdade.

Sorriu perante a imagem de Vivien em criança. «Quem me dera tê-la conhecido naquela época», disse Dolly em voz baixa, o que era uma tolice, porque era obviamente de longe melhor conhecê-la agora, ter a oportunidade de ser uma das metades de Dolly e Viv de Campden Grove. Observou atentamente o rosto da menina, identificando a versão infantil das feições que tanto admirava na mulher adulta, e causou-lhe estranheza poder gostar tanto de alguém que conhecia havia tão pouco tempo.

Fechou o medalhão e reparou que havia uma inscrição em caracteres elaborados no verso. «Isabel», leu ela em voz alta. A mãe de Vivien, talvez? Dolly não se lembrava de saber como se chamava a mãe da amiga, mas fazia sentido. Parecia-lhe o tipo de fotografia que uma mãe haveria de acarinhar: a prole toda reunida, a sorrir para o fotógrafo de passagem. Dolly ainda era muito nova para pensar em ter filhos, mas sabia que, quando os tivesse, haveria de trazer uma fotografia como aquela sempre consigo.

Uma coisa era certa, se em tempos pertencera à mãe, aquele medalhão deveria ser extremamente importante para Vivien. Dolly iria ter de o pôr a salvo. Reflectiu momentaneamente e, logo de seguida, a sua expressão rasgou-se num sorriso — já sabia onde o iria guardar, no sítio mais seguro possível. Dolly abriu o fecho e enfiou o fio por baixo do cabelo, pendurando-o ao pescoço. Soltou um suspiro de satisfação, e de alegria, também, quando viu o medalhão desaparecer sob o decote da blusa e o metal frio tocar-lhe na pele quente.

Dolly descalçou os sapatos e atirou o chapéu para a banqueta da janela, recostando-se nas almofadas com os pés cruzados. Acendeu um cigarro e soprou anéis de fumo em direcção ao tecto, imaginando o entusiasmo que Vivien não sentiria quando lhe devolvesse o medalhão. O mais certo seria envolver Dolly nos seus braços, dar-lhe um abraço apertado e chamar-lhe «minha querida», ao mesmo tempo que os seus lindos olhos escuros se lhe toldavam de lágrimas. Convidaria Dolly para se sentar a seu lado no sofá e conversariam sobre tudo e mais alguma coisa. Dolly tinha o pressentimento de que, ao fim de algum tempo juntas, Vivien seria mesmo capaz de lhe falar do tal indivíduo, o amigo médico.

Puxou o medalhão de entre os seios e contemplou a sua bonita superfície espiralada. A pobre Vivien deveria estar destroçada, a pensar que o tinha perdido irremediavelmente. Dolly interrogou-se se não seria melhor ir avisá-la de imediato de que o medalhão se achava em segurança — quem sabe enfiar-lhe uma carta através da ranhura da porta da rua? —, mas depressa concluiu que não era boa ideia. Não tinha papel de carta seu, apenas com o monograma de Lady Gwendolyn, e isso não lhe parecia lá muito correcto. Seria melhor ir falar pessoalmente com ela. O problema agora era saber o que haveria ela de vestir.

Dolly virou-se de barriga para baixo e pegou no seu Livro de Ideias que tinha escondido debaixo da cama. Mrs. Beeton’s Book of Household Management não despertara o interesse de Dolly quando a mãe lho oferecera, mas nos tempos que corriam o papel valia o seu peso em ouro, e as páginas do livro tinham demonstrado ser o repositório ideal para as suas fotografias preferidas da The Lady. Dolly andava havia mais de um ano a recortá-las e a colá-las por cima das regras e das receitas da Sr.ª Beeton. Folheou as páginas, prestando a máxima atenção ao que as mulheres da alta sociedade usavam, comparando as imagens com artigos em que reparara no quarto de vestir do último piso. Deteve-se ao chegar a uma fotografia recente. Era de Vivien, fotografada numa tarde de angariação de fundos no Ritz, deslumbrante, com um delicado vestido de fina seda. Dolly fez deslizar o dedo pensativamente ao longo dos contornos do corpete e da saia — havia um igualzinho lá em cima; com algumas alterações, seria perfeito. Sorriu para consigo ao imaginar a sensação que não causaria, toda elegante a atravessar a rua, quando fosse da sua conveniência, para tomar chá com Vivien Jenkins.

*

Três dias decorridos, com uma atitude prestativa pouco habitual nela, Lady Gwendolyn deixou cair o saco das guloseimas e ordenou a Dolly que corresse os cortinados à prova de luz e a deixasse fazer a sua sesta em paz e sossego. Eram quase três da tarde e Dolly não precisou de que lhe dissessem duas vezes. Aguardou até ter a certeza de que a velha senhora adormecia e, em seguida, enfiou-se no vestido amarelo que tinha pendurado no quarto, já a postos, esgueirando-se de imediato de casa para ir ao encontro de Vivien.

Quando pisou o degrau superior de tijoleira, já a preparar-se para tocar à campainha, Dolly imaginou a cara da amiga quando abrisse a porta e deparasse com ela ali; o sorriso agradecido de alívio quando se sentassem as duas a tomar chá e ela lhe mostrasse o medalhão. A sua expectativa era tanta que só lhe apetecia dançar.

Deteve-se um instante a dar um último jeito ao cabelo, a desfrutar do momento à medida que sentia o coração a acelerar, e, por fim, tocou à campainha.

Aguardou, à escuta do ruge-ruge indiciador do outro lado da porta, e em seguida esta abriu-se de rompante para o interior e uma voz disse:

— Olá, querida...

Dolly recuou abruptamente um passo. Diante dela, achava-se Henry Jenkins, mais alto visto de perto do que lhe parecera ao longe, atraente como todos os homens poderosos. A sua atitude tinha qualquer coisa de quase brutal, mas desvaneceu-se rapidamente, e Dolly concluiu que deveria ter sido apenas a sua surpresa a colorir os factos. O que era certo era que, em todas as suas muitas fantasias, Dolly nunca contemplara semelhante cenário. Henry Jenkins tinha um cargo importante no Ministério da Informação e raramente estava em casa durante o dia. Dolly abriu a boca e tornou a fechá-la; sentia-se intimidada pela sua presença, altura e expressão tão carregada.

— Sim? — indagou ele. Tinha a tez ruborizada e Dolly perguntou-se se não teria estado a beber. — É de restos de tecido que vem à procura? Porque eu já vos dei tudo o que tinha para dar.

Dolly lá conseguiu falar.

— Não, não, queira desculpar — disse ela. — Não estou aqui por causa dos tecidos. Vim à procura da Vivien... da Sr.ª Jenkins. — Pronto, estava a recuperar a compostura. Sorriu-lhe. — Sou amiga da sua mulher.

— Estou a ver. — A surpresa dele era notória. — Amiga da minha mulher. E posso saber como se chama a amiga da minha mulher?

— Dolly... isto é, Dorothy. Dorothy Smitham.

— Muito bem, Dorothy Smitham, nesse caso, talvez seja melhor entrar, não acha? — Recuou um passo e fez um gesto convidativo com a mão.

Ocorreu a Dolly, ao transpor a porta da casa de Vivien, que, ao fim de tanto tempo a morar em Campden Grove, era a primeira vez que punha os pés no número 25. Ao que lhe era dado a ver, a disposição era em tudo idêntica à do número 7, um hall de entrada com um lanço de escadas que conduzia ao primeiro andar e uma porta à esquerda. À medida que seguia Henry Jenkins para a sala de estar, porém, verificou que as semelhanças se ficavam por aí. A decoração do número 25 datava obviamente do presente século e, em contraste com o mobiliário de mogno cheio de curvas e das paredes atafulhadas de Lady Gwendolyn, aquela casa era toda ela luz e contornos rectilíneos.

A casa era um deslumbramento: o soalho era de parquet, e um conjunto de lustres tubulares de vidro fosco pendia do tecto. Ao longo das paredes, estavam dispostas fotografias dramáticas de arquitectura contemporânea, e o sofá verde-lima tinha uma pele de zebra estendida num dos braços. Tão elegante, tão moderno — Dolly teve o cuidado de que não lhe entrasse nenhuma mosca para a boca tal era o seu espanto.

— Sente-se. Faça favor — sugeriu-lhe Henry Jenkins, indicando-lhe uma poltrona em forma de concha junto à janela. Dolly assim fez, ajeitando a bainha do vestido antes de cruzar as pernas. De repente, sentiu-se constrangida com a indumentária que trazia. Era bastante elegante, para a sua época, todavia, ali sentada, naquela sala esplêndida, mais parecia uma peça de museu. Achara-se tão elegante no quarto de vestir de Lady Gwendolyn, à medida que se virava para um lado e para o outro diante do espelho; agora, a única coisa que via eram os seus debruns e adornos antiquados: tão diferente, na verdade (como era possível que não tivesse reparado antes?), das linhas sóbrias do vestido de Vivien.

— Eu oferecia-lhe um chá — disse-lhe Henry Jenkins tocando ao de leve nas pontas do bigode de uma forma estranha que, no entanto, tinha o seu quê de sedutor —, mas ficámos sem empregada esta semana. Uma grande desilusão... a rapariga foi apanhada a roubar.

Ele não tirava os olhos, apercebeu-se Dolly com um arroubo de entusiasmo, das suas pernas cruzadas. Sorriu-lhe, com ligeiro embaraço (afinal de contas, tratava-se do marido de Vivien), mas não sem uma certa satisfação.

— Lamento — disse ela, lembrando-se em seguida de um comentário que ouvira a Lady Gwendolyn. — Hoje em dia é extremamente difícil arranjar empregados de jeito, não é?

— Sem dúvida. — Henry Jenkins achava-se de pé junto à lareira deveras extraordinária, decorada com azulejos a preto e branco, qual tabuleiro de xadrez. Contemplou Dolly com um ar intrigado e perguntou-lhe: — Mas, então, conte-me lá: de onde é que conhece a minha mulher?

— Conhecemo-nos no Serviço Voluntário Feminino e chegámos à conclusão de que temos muito em comum.

— A dedicação das senhoras é impressionante, sem dúvida. — Sorriu, ainda que não completamente à vontade, e a sua pausa, os olhares que lhe lançava, causou a Dolly a nítida impressão de que havia algo que fazia tenções de descobrir, que estava à espera de que ela adiantasse mais alguma coisa. Não fazia ideia do que pudesse ser e, por conseguinte, retribuiu-lhe o sorriso e não disse nada. Henry Jenkins deitou uma olhadela ao relógio de pulso.

— Veja-se o dia de hoje, por exemplo. Ao pequeno-almoço, a minha mulher informou-me de que tinha uma reunião que acabaria às duas. Eu voltei para casa mais cedo para lhe fazer uma surpresa, mas já são três e um quarto, e nem sinal dela. Presumo que tenha sofrido algum contratempo, mas uma pessoa não pode deixar de ficar preocupada.

As palavras dele deixavam transparecer irritação e Dolly compreendia bem o motivo: era um homem importante que deixara trabalho essencial de guerra por fazer de modo a poder estar com a mulher e agora ela deixava-o plantado à espera e andava a passear pela cidade.

— Tinha algum encontro combinado com a minha mulher? — perguntou-lhe ele de repente, como se só então lhe tivesse ocorrido que a demora de Vivien também poderia estar a causar transtorno a Dolly.

— Ah, não — apressou-se ela a responder. A ideia parecia insultá-lo e desejava tranquilizá-lo. — A Vivien não sabe da minha visita. Eu vim devolver-lhe uma coisa que ela perdeu.

— Ai sim?

Dolly retirou o fio da carteira e estendeu-o delicadamente sobre os dedos. Tinha pintado propositadamente as unhas com os restos de verniz carmesim Coty de Kitty.

— O medalhão dela — disse ele em voz sumida, tirando-lho da mão. — Tinha-o ao pescoço quando nos conhecemos.

— É um fio muito bonito.

— A Vivien usa-o desde miúda. Compre-lhe eu o que lhe comprar, por muito bonito e requintado que seja, ela não troca esse fio por nada deste mundo. Nem mesmo quando usa um colar de pérolas o tira. Não estou lembrado de alguma vez a ter visto sem ele e, no entanto — estava a inspeccionar o fio —, uma vez que está intacto, deve tê-lo tirado. — Deitou uma olhadela de viés a Dolly e ela retraiu-se ligeiramente perante a intensidade do seu olhar. Seria assim que ele olharia para Vivien, interrogou-se ela, quando lhe levantava o vestido, afastando o medalhão para a beijar? — Disse-me que o encontrou? — prosseguiu ele. — E onde, posso saber?

— Eu... — Dolly sentiu o rubor aflorar-lhe às faces perante aqueles pensamentos. — Lamento, mas não sei... Sabe, não fui eu quem o encontrou, deram-mo a mim para que eu o entregasse à Vivien. Dada a nossa amizade.

Ele assentiu lentamente com a cabeça.

— Pergunto-me, Sr.ª Smitham...

Menina Smitham.

— Menina Smitham. — Os lábios contraíram-se-lhe, o laivo de um sorriso que ainda a fez corar mais. — Correndo o risco de parecer impertinente, pergunto-me porque foi que não devolveu isto à minha mulher na cantina do Serviço Voluntário Feminino? Com certeza teria sido mais conveniente para uma senhora ocupada, como calculo que seja.

«Uma senhora ocupada.» A expressão agradou a Dolly.

— Não é impertinência nenhuma, Sr. Jenkins. A verdade é que eu sei o quanto o fio significa para a Vivien e quis devolver-lho o quanto antes. Os nosso turnos nem sempre coincidem, compreende?

— Que estranho! — O punho fechou-se-lhe pensativamente em volta do medalhão. — A minha mulher apresenta-se ao serviço todos os dias.

Antes de Dolly ter tempo de esclarecer que ninguém trabalhava na cantina todos os dias, que havia um livro de turno e uma Sr.ª Waddingham que geria o serviço com pulso de ferro, uma chave rodou na fechadura.

Vivien chegara a casa.

Tanto Dolly como Henry dirigiram a sua atenção para a porta fechada da sala de estar, à escuta dos passos dela no parquet do hall de entrada. O coração de Dolly pôs-se a gorjear à medida que ela imaginava a alegria da amiga assim que Henry lhe mostrasse o fio, quando ele lhe explicasse que fora Dolly quem lho trouxera; a gratidão que tomaria conta dela e, sim, porque não o amor e o sorriso radiante que se lhe haveria de espraiar no rosto ao dizer: «Henry, meu querido. Estou tão contente por teres finalmente conhecido a Dolly. Há tanto tempo que ando para te convidar para vires cá tomar chá, minha querida, mas temos andado tão ocupadas, não é verdade?» E depois o comentário jocoso de Vivien sobre a tirana que dirigia a cantina, as duas a desatar na gargalhada e, a rematar, a sugestão de Henry para que jantassem os três, talvez no seu clube...

A porta da sala de estar abriu-se e Dolly empoleirou-se na beira da poltrona. Henry levantou-se apressadamente para abraçar a mulher. O abraço foi demorado, romântico, como se ele lhe estivesse a sentir o cheiro, e Dolly apercebeu-se, com uma pontada de inveja, da paixão que Henry Jenkins tinha pela mulher. Ela já sabia, claro, tendo lido A Musa Relutante, mas vê-los à sua frente naquela sala tirou-lhe qualquer dúvida que ainda pudesse alimentar. O que teria Vivien na cabeça, a envolver-se com um médico, quando tinha um marido como Henry, que a amava tanto?

O médico. Dolly olhou para a cara de Henry, de olhos fechados enquanto encostava a cabeça de Vivien firmemente contra o peito; a enlaçava num abraço que se poderia esperar de quem não a visse havia meses e receasse o pior; e, subitamente, apercebeu-se de que ele sabia. A inquietação pela demora de Vivien, as perguntas pertinentes que fizera a Dolly, o tom de frustração com que se referia à sua amada esposa... Ele sabia. Isto é, suspeitava. E tivera esperanças de que Dolly lhe pudesse confirmar as suspeitas, de uma maneira ou de outra. «Oh, Vivien», pensou ela, entrelaçando os dedos com o olhar fixo nas costas da amiga, «tem cuidado.»

Henry largou-a por fim, levantando o queixo da mulher para a olhar nos olhos.

— Como foi o teu dia, meu amor?

Vivien esperou que ele a soltasse por completo e depois tirou o chapéu do SVF.

— Atarefado — respondeu ela, alisando o cabelo na nuca. Pousou o chapéu numa mesinha ali próximo, lado a lado com uma fotografia do dia do casamento. — Andamos a encaixotar cachecóis e a procura é enorme. Estamos a demorar muito mais do que o previsto. — Fez uma pausa, ajeitando com extremo cuidado a aba do chapéu. — Não fazia ideia de que chegarias a casa tão cedo; se soubesse, teria feito por ter saído a tempo de te encontrar.

Henry sorriu, um sorriso pesaroso, pareceu a Dolly, e disse:

— Queria fazer-te uma surpresa.

— Eu não sabia.

— Nem terias como saber. É por isso que se lhe chama surpresa, não é? Para apanhar as pessoas desprevenidas? — Agarrou-a por um cotovelo e deslocou ligeiramente o corpo da mulher de modo a ela ficar de frente para a sala. — Por falar em surpresas, querida, temos uma visita. A Menina Smitham está cá em casa.

Dolly levantou-se, o coração a martelar-lhe o peito. Finalmente, o seu momento chegara.

— A tua amiga veio ver-te — continuou Henry. — Temos estado a ter uma conversa esplêndida a respeito da tua dedicação ao Serviço Voluntário Feminino.

Vivien pestanejou em direcção a Dolly, com um ar perfeitamente inexpressivo, e em seguida disse:

— Eu não sei quem é esta mulher.

Dolly susteve a respiração. A sala começou a andar à roda.

— Mas, querida — disse-lhe Henry —, claro que sabes. Ela veio devolver-te isto. — Ele tirou o fio do bolso e depositou-o nas mãos da mulher. — Deves tê-lo tirado e esquecido dele nalgum lado.

Vivien revirou-o, abriu o medalhão e olhou para as fotografias no interior.

— Onde foi que encontrou o meu fio? — questionou-a ela, com uma frieza tal que Dolly sentiu um arrepio.

— Eu... — Tinha a cabeça às voltas. Não compreendia o que se estava a passar, a que se devia aquele comportamento de Vivien; depois de todos os olhares que tinham trocado, breves, era certo, mas carregados de lealdade; depois de tantas vezes que se tinham observado das respectivas janelas; depois de todos os planos que Dolly imaginara para o futuro de ambas. Seria possível que Vivien não tivesse reparado, que não tivesse consciência da importância que tinham uma para a outra, que também não andasse a sonhar com a Dolly e a Viv?

— Ficou esquecido na cantina. A Sr.ª Hoskins encontrou-o e pediu-mo que to devolvesse, tendo em conta que... — «Tendo em conta que somos almas gémeas, melhores amigas.» — Tendo em conta que somos vizinhas.

As sobrancelhas perfeitas de Vivien arquearam-se de forma repentina e ela olhou fixamente para Dolly. Houve um momento de consideração e, em seguida, o rosto dela iluminou-se, ainda que subtilmente.

— Sim. Agora me lembro. Esta mulher é criada de Lady Gwendolyn Caldicott.

A palavra «criada» foi acompanhada por uma olhadela significativa a Henry, e a alteração na atitude do marido foi imediata. Dolly recordou-se da forma como ele se referira à criada do casal, a rapariga que fora recentemente despedida, acusada de roubar. Olhou para a preciosa peça de joalharia e perguntou-lhe:

— Então, afinal, não é tua amiga?

— Claro que não — retorquiu Vivien, como se a mera ideia fosse para ela uma abominação. — Tu conheces todas as minhas amigas, meu querido. Estás farto de saber isso.

Henry fitou a esposa com ar perplexo e, em seguida, assentiu rigidamente com a cabeça.

— Eu também achei estranho, mas ela insistiu tanto. — Simultaneamente, virou-se para Dolly, a dúvida e a contrariedade a cristalizarem-se-lhe num sobrolho franzido que lhe repuxava a testa. Estava desiludido com ela, via Dolly; pior do que isso, à sua desilusão não era alheio um certo desprezo. — Menina Smitham — disse ele —, estou-lhe muito agradecido por ter devolvido o fio da minha mulher, mas agora creio que está na altura de se retirar.

Dolly não sabia o que dizer. Só poderia estar a sonhar, com certeza; não era nada daquilo que imaginara, o que merecia, o que esperava da vida. A todo o momento, iria acordar e, ao invés, dar por ela a rir-se na companhia de Vivien e Henry, enquanto saboreavam os três um uísque e se sentavam a conversar acerca das agruras da vida, e ela e Vivien, juntas no sofá, virar-se-iam uma para a outra na risota à custa da Sr.ª Waddingham da cantina, e Henry haveria de sorrir afectuosamente ao vê-las assim, e comentar que duas que elas lhe tinham saído, que dois encantos de raparigas incorrigíveis.

— Menina Smitham?

Dolly ainda conseguiu assentir com a cabeça, agarrar na carteira e passar por ambos de fugida, a caminho do hall de entrada.

Henry Jenkins foi atrás dela, hesitando por breves instantes antes de abrir a porta da rua. O braço dele impediu-lhe a passagem e Dolly não teve outro remédio se não ficar onde estava e esperar que ele a deixasse sair. Parecia estar a decidir o que haveria de dizer.

— Menina Smitham? — Dirigiu-se a ela como se falasse com uma criança tola; pior, uma simples criada que se esquecera do seu lugar, se entregara a fantasias e sonhos ambiciosos de uma vida muito acima do que a sua condição lhe permitia aspirar. Dolly não tinha coragem de o encarar; sentia as forças faltarem-lhe. — Seja uma linda menina e ponha-se a andar daqui — aconselhou-a. — Trate bem de Lady Gwendolyn e veja se não se torna a meter em sarilhos.

Começava a anoitecer, e Dolly viu Kitty e Louisa no passeio oposto, de regresso do emprego. Kitty olhou para ela e a sua boca abriu-se num O de espanto quando percebeu o que se passava. Dolly, porém, não teve oportunidade de sorrir, acenar ou fazer uma cara bem-disposta. Como poderia, quando tudo estava perdido? Quando todos os seus desejos, todas as suas esperanças, haviam sido recebidos com semelhante desprezo e crueldade?